AS
ONDAS DO TEMPO DESTE NOVO ANO
Rogel
Samuel
Que
a última estrofe de «O cemitério marinho» de Paul Valéry assim canta:
«Ergue-se
o vento! Há que tentar viver!
O
sopro imenso abre e fecha meu livro,
A
vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai
páginas claras, deslumbradas!
Rompei
vagas, rompei contentes o
Teto
tranqüilo, onde bicavam velas! »
Uso a extraordinária tradução de
Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia.
O poema enorme, difícil.
Desde que o li, pela primeira
vez, há mais de quarenta anos, tento penetrar no mar de seu sentido. Às vezes,
parece entender-se. Outras vezes, inatravessável é o seu mar. Mas sempre o
sinto, o que importa. O que importa é sentir um poema. Não «interpretá-lo». Os
intelectuais matam o poema, intelectualizam-no. Por isso Barthes foi tão bom
crítico. Barthes fazia o texto falar, deixava-o falar-se.
«Esse
teto tranqüilo, onde andam pombas,
Palpita
entre pinheiros, entre túmulos.
O
meio-dia justo nele incende
O
mar, o mar recomeçando sempre.
Oh,
recompensa, após um pensamento,
um
longo olhar sobre a calma dos deuses! »
Seja como for, Valéry nos abre à
imaginação o grande oceano da morte. Mas «recomeçando sempre». Sempre, «sobre a
calma dos deuses».
Sei que não é algo para ser lido
no Ano Novo, mas que tema mais religioso do que a morte neste túmulo do oceano
de «tanto diamante de indistinta espuma» onde «quanta paz parece conceber-se!».
«Quando
repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas
obras de uma eterna causa
Fulge
o Tempo e o Sonho é sabedoria. »
O poema tem ímpetos de infinito,
abre-se para a eternidade, «massa de calma e nítida reserva»:
«Água
franzida, Olho que em ti escondes
Tanto
de sono sob um véu de chama,
-Ó
meu silêncio!... Um edifício na alma,
Cume
dourado de mil, telhas, Teto!»
Valery disse que seu poema é sua «poesia
verdadeira», mesmo as passagens mais abstratas. Disse que via ali uma espécie
de «lirismo» , algo «abstrato mas de uma abstração motriz mais que filosófica».
Templo
do Templo, que um suspiro exprime,
Subo
a este ponto puro e me acostumo,
Todo
envolto por meu olhar marinho.
E
como aos deuses dádiva suprema,
O
resplendor solar sereno esparze
Na
altitude um desprezo soberano.
Diz da vida, do amor, da ordem e
desordem da vida e do amor, do mar e do sol, das colinas das ondas, da chave do
mistério do «mar de nossa conversa», como dizia Cabral:
Como
em prazer o fruto se desfaz,
Como
em delícia muda sua ausência
Na
boca onde perece sua forma,
Aqui
aspiro meu futuro fumo,
Quando
o céu canta à alma consumida
A
mudança das margens em rumor.
E faz uma reflexão sobre o tempo:
Belo
céu, vero céu, vê como eu mudo!
Depois
de tanto orgulho e tanta estranha
Ociosidade
- cheia de poder -
Eu
me abandono a esse brilhante espaço,
Por
sobre as tumbas minha sombra passa
E
a seu frágil mover-se me habitua.
É uma reflexão sobre os movimentos das
ondas da vida:
A
alma expondo-se às tochas do solstício,
Eu
te afronto, magnífica justiça
Da
luz, da luz armada sem piedade!
E
te devolvo pura à tua origem:
Contempla-te!...
Mas devolver a luz
Supõe
de sombra outra metade morna.
O poema foi publicado no número de junho
de «La Nouvelle Revue française», mas ele deve
ter trabalhado no poema desde muito tempo.
Oh,
para mim, somente a mim, em mim,
Junto
ao peito, nas fontes do poema,
Entre
o vazio e o puro acontecer,
De
minha interna grandeza o eco espero,
Sombria,
amarga e sonora cisterna
-
Côncavo som, futuro, sempre, na alma.
Aqui
vindo, o futuro é indolência.
Nítido
inseto escarva a sequidão;
Tudo
queimado está desfeito e no ar
Se
perde em não sei que severa essência,
Faz-se
a amargura doce e claro o espírito.
Ergue-se
o vento! Há que tentar viver!
O
sopro imenso abre e fecha meu livro,
A
vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai
páginas claras, deslumbradas!
Rompei
vagas, rompei contentes o
Teto
tranqüilo, onde bicavam velas!
É esta tradução de Darcy Damasceno e
Roberto Alvim Correia que me ocorre das ondas do tempo neste Novo Ano.
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