sábado, 7 de janeiro de 2012

JEREMIAS E OS MORTOS DA BAIXADA

JEREMIAS E OS MORTOS DA BAIXADA
(CRÔNICA ANTIGA)

Rogel Samuel


«Na sexta-feira, 1 de abril de 2005, chacinas no Rio podem ter matado 41 pessoas. Foi uma das madrugadas mais sangrentas no Estado.» Noticiários transformados em plantões  policiais.

«A esperança mói.
A esperança dói.»

Escreveu Cassiano, em «Jeremias sem chorar».

*    *    *

Antes da queda do muro de Berlin, estava eu em casa do Lothar, na Mendelsonstrasse, em Frankfurt. Via tv todos os dias, fora estava frio. Comentei, para ele: «Não vejo notícias de crimes, por aqui». Ele retrucou: «Não há, não. Uma associação de consumidores impôs, em ação na Justiça, que não se divulgasse isso».
- Por quê? Perguntou o senso comum brasileiro. Não fere a liberdade de imprensa?
- Não, disse ele. A media tem de estar a serviço da população...
- Mas a população não deve ser informada sobre o perigo?
- Não é o caso, argumentou ele. Se há um assassino, ou uma quadrilha solta na cidade, não é meu problema, mas da polícia, cabe à polícia prendê-lo. A polícia tem o dever constitucional de proteger-me, e para tal é paga. Quanto à imprensa, não tem o direito de aterrorizar-me.

Calei-me. 

*    *    *

                        Pareceu-me ter um ar
de abismo, não obstante alva
            e limpa como uma estrela-

*    *    *

Cassiano Ricardo, dos maiores poetas do Brasil. Sob certos aspectos, o maior de sua geração, na técnica, na variação de sua poética, «renovando a poesia», disse Cabral. Sobre ele, Oswaldino Marques escreveu o clássico da crítica literária brasileira: «O laboratório poético de Cassiano Ricardo». 

*    *    *

Lembra Oswaldo Mariano a observação de Mestre Alceu de que Archibald MacLeish escreveu que o poema deveria ser  um «globe fruit», integrado no «pensamento planetário», na era cósmica. Por isso, diz o autor do prefácio, no livro predomina «a esfericidade semântica», e a rima «esfera» e «espera». Ou em «Os sobreviventes»:

Milhões de crianças chorando
            na noite esférica.
Por que choram?
                        Não são
            elas que choram.

                        É o futuro.

*   *   *

 Escreveu Archibald MacLeish:
 
 
Haverá pouca coisa a esquecer: 
o vôo dos corvos, 
uma rua molhada, 
o modo do vento soprar, 
o nascer da lua, o por-do-sol, 
três palavras que o mundo sabe, 
pouca coisa a esquecer. 
 
*    *    *
Em «Os que virão depois», diz Cassiano:

não os sobreviventes 
que hoje usam máscaras
        pra fingir de vivos

não os que poderiam
 ter morrido esta noite
sob a chuva de sol
                        nuclear

mas os que acordarão
           como pássaros
 que anunciam o amanhe-
                   cer

sem nenhuma surprêsa
   de ainda estarem
                    vivos

*    *    *
É assim na tradução de Bandeira.
É assim nos mortos da Baixada.

*    *    *


Sim, acordar. Como os pássaros. Mas sem nenhuma surpresa acordaremos vivos, sem a esperança que dói. O mundo que mais parece abismo, uma estrela branca, pairando no ar. Quando morrer esquecerei de tudo, e todos me esquecerão. Haverá, de pouca coisa a esquecer, quase nada: o fracos poucos versos que fiz, os romance que construí, essas minhas crônicas. Pouca coisa. Três palavras que o mundo sabe. Para mim, será bem mais difícil esquecer: meu amor fracassado, minhas impossibilidades, meu caso perdido. Acordar, renascer? Não creio. Meus olhos fechados sob a campa. Não verei nem o nascer da lua, nem o por-do-sol.
A chuva pinga, na argila rasa.

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