sexta-feira, 19 de abril de 2013

O VESTIDO VERDE

O VESTIDO VERDE
 
Rogel Samuel
 
 
         Sim, toda vez que eu passava pela avenue de la Motte Picquet tinha de dar uma paradinha naquela loja de roupas caras, exclusivas, para ver o vestido verde. Era bom de ver, alegoria de nossa, da minha Amazônia. Era bom ver o traje, a indumentária transformada em arte. A toillette, coisa de arte francesa ou não, arte parisiense ou não, lembrava Burda, o magazine que ainda existe em se não me engano língua alemã com aquelas belas mulheres sob uns leves chapéus que sempre tinham o gosto das rendas desmaiadas das mantilhas das espanholas e rainhas.
         Sim, ao lado havia uma casa, talvez de doces, espécie de pâtisserie, e mais um pouco um café. Um elegante café. Em frente se ostentava a fachada da École Militaire, construída por Luiz XV, em frente ao du Champ de Mars, onde Napoleão estudou. E ficava no VIIe arrondissement, rica região de prestígio e alta burguesia. Lá atrás estava a UNESCO, que Eduardo Portella dirigiu, e várias embaixadas.  
         Por que gostava tanto eu da alta costura daquele vestido verde, exclusivo, eu que me visto tão mal, que ando pelas ruas do Rio de Janeiro como mendigo, de chinelo de dedo e uns blusões fora de moda?
         Por quê?
         Talvez porque, quando menino, minha mãe costurava e recebia o magazine Burda, em alemão, que meu pai traduzia para ela.
         Meu pai era francês de língua alemã, pois cresceu em Strasburg e ali foi educado. Sua língua “materna” era o alemão, não o francês.
         Eu vivia folheando aquelas revistas de minha mãe. Minha primeira “literatura” foi aquela, que minha mãe, enquanto costurava, me fazia ver.
         Minha mãe costurava muito bem. Durante um tempo, ela costurava “para fora”. Lembro-me de que ela estudou com a modista carioca que fazia os vestidos de Teresa de Sousa Campos, com quem minha mãe se parecia. Aquela modista, que morava na Prado Jr., esquina com Av. Atlântica, viveu um tempo em Manaus porque seu marido teve negócios por lá.
         Minha mãe era uma mulher elegante (e ainda o é, aos 84 anos). Foi uma das “10 mais elegantes de Manaus”, apesar de não ser rica. Mas costurava excelentemente.
         O vestido verde permanecia sempre lá, caríssimo e exclusivo, como no outro lado do rio Negro aquelas árvores. Na outra margem do Igarapé do Inferno, do meu “Amante das amazonas” estão elas, vejo-as, entre as colunas das folhas, vêm da curva descendente que sai do verde-escuro para o verde-cré, até a fímbria da saia de aço da fria lâmina do rio. Como nessa matéria nada é absoluto, começo afirmando que o vestido era todo feito de pedacinhos de pano verde emendados uns aos outros pela parte de cima, e os retalhos caíam como folhas das árvores, como da copa das árvores, arriadas pelo pesado sol e forte, o chão liquido filtrado pelos raios através do verde escuro, as minúcias das luzes em redes de cobertura fofa, arriscada, acamada da folhagem seca como patê silvestre, pavê molhado, folheado, cremoso, marrom, onde se deitavam flores selvagens - sim, aquilo era a vestimenta do Igarapé do Inferno re-visitado, depois de tanto tempo, invadido, muito além do ponto onde a minha imaginação e o meu delírio anterior tinha chegado, nos limites do fim do mundo.
         Aqueles tecidos escondiam a mata molhada, literária. Um observador de bom olho nada veria ali, além de um vestido, mas algo havia, por trás da glorificação daquele esplendor de veludos e de sedas de um vegetal amazônico em plena Paris. As rendas da saia eram o que se podia chamar de solares, e penetravam minhas retinas ensandecidas como lâmina de faca, sincopadas e intrusas, compridas, naquele parque aquático de gigantes antigos, insatisfeitos por serem incomodados, dignos, altaneiros. Então era o rumo ignoto do arcaico, do mítico, do inominável, do distante, da paragem dos seres mágicos como Numas. Dir-se-ia que as estruturas antigas do mundo estavam escondidas ali, que lá o mundo terminava, nos seus desconhecidos motivos...
         E súbito eu via, na margem do rio, aparecer uma mulher vestida de verde com aquele vestido, e dançava na parte mais elevada do terreno, e com o braço erguido sustentava um vaso ritual, de onde partia uma seringueira já crescida. O tronco da árvore passava por trás dela, e era a estátua, agora verde, que D. Ifigênia Vellarde tinha trazido da Europa no fim do Século passado.
 
         Atrás daquela mulher congelada estava - magnífico, supremo, inominável, majestoso - o Palácio Manixi!
 
         E aquela mulher desfilava pelos salões do palácio, e das janelas abertas saíam grossos e longos galhos de árvores frondosas, nascidas por dentro, e assim parecia que o Palácio tinha criado asas e ia começar a voar. O Palácio se cobrira de uma pátina de beleza extraordinária, de uma vitalidade monumental - estava ali, vivo, lavado, enlouquecido marco de seu tempo. Era um santuário, dominava o ambiente, um templo antigo, perdido no meio da floresta, de uma outra era. Toda a luz ao redor irradiava dele, de uma civilização de um outro século, de um outro mundo desconhecido, limite vivo do luxo e do esplendor da borracha do fim do Império.
         A floresta avançava contra ele, construindo um estranho cerco sobre a moldura e irisação de sua arquitetura antiga coberta de cipós e de galhos de uma folhagem abundante que vinha de dentro dos salões requintados e criavam a aura de um extasiado espetáculo.
         Mas era no “Amante das amazonas” que aquilo se dava, não em Paris.
         Pois todos os suntuosos fantasmas exsurgiam dali. Toda a História desfiava o seu curso. O tempo ali se congelava, inerme, no meio dos amplos salões, desaparecendo ao longo daqueles mesmos corredores, escorrendo ao longo das paredes pesadas de estuque, lúgubres, de uma decoração barroca. Eram seres invisíveis todos mortos que despontavam, uma vez mais, arrastando longos e pesados vestidos de veludo verde, envergando reluzentes casacas, esquálidos, saídos daquele sepulcro do luxo daquele tempo, através daqueles amplos espaços povoados de símbolos, dentro daquela enorme construção de um outro mundo, do fim de um mundo de onde todos tinham fugido, povoado de demônios, culpados, expiando suas culpas mortas.
         E à noite desfilavam, ao longo daqueles corredores, através da seriação de janelas e portas, refletindo suas sucessivas silhuetas nos espelhos apagados, misturando-se com figuras pintadas nas paredes, e famintos, gélidos, sem ousar sair ao jardim abandonado, aquém do porto as ornadas figuras de fino e feroz olhar que não permitiam a ninguém penetrar naquele santuário do desperdício da riqueza antiga e condenada, ninguém pudesse subir aquela escadaria e atravessar aquelas salas além daqueles mármores trazidos há incontáveis anos para ladear-se com o cinzento e o estilizado. Era como se dissessem: “Desaparecei!”. Ou como se ameaçassem: “Afastai-vos!”.
         E à noite a figura do antigo e descamado dono poderia ser vista, através das janelas, como se o iluminasse uma catedral, mostrando-lhe a face horrível e desesperada, os olhos mergulhados no escuro, à procura de algo, à procura do tempo, à procura de si - e passando sem que ninguém o visse na sua infinita miséria. E todo o esplendor daquele luxo antigo era uma tortura sinistramente mergulhada na destruição de um império ali por fim silenciado.
 
 
 

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