segunda-feira, 29 de abril de 2013

As águas, as lembranças




      As águas, as lembranças
As águas, as lembranças

NEUZA MACHADO

As “águas” (as lembranças imperecíveis do narrador) provêm
“dos desconhecidos lugares da origem Numa”, uma tribo desconhecida
geograficamente e que ficou à margem da história do Amazonas, por
exigências sócio-substanciais. Desta tribo de índios audazes, só se
perpetuaram os referentes conhecidos e aplaudidos ligados à força
física, ao lado indômito, à imponente belicosidade do animus dessa tribo
diferenciada. As “águas” (as lembranças) desses lugares da origem
Numa ficaram desconhecidas por leis de “sobrevivência”, relegadas
friamente ao esquecimento. “Se perdem”/se perderam no esquecimento,
porque foram interditadas vergonhosamente pelo anterior regime
patriarcal. Foram/são esquecidas e passaram/passam, porque, se íntimas,
representaram/representam “perigo”, se fossem/se forem verbalizadas.
Essas “águas”, que veem de “desconhecidas origens Numas”,
são especiais, porque provêm do devaneio interno de quem narra. O
narrador rogeliano Ribamar de Sousa a designa como uma “narrativa
animal” porque ela é uma projeção da matéria primitiva que
vigorou/vigora no imaginário-em-aberto do escritor. Refiro-me àquela
matéria inovadora que surge entropicamente depois do repouso
fervilhante, intimamente relacionada com os juízos de descoberta, de
que nos fala Bachelard, em seu livro A Dialética da Duração.154
“O galho quebrado diz: “Não passarás”. E além da Curva do Tucumã, a
passagem do eixo do rio se separa. Pode-se banhar e pescar, deste lado. Mas
aos poucos os Numas se infiltravam, avançavam, atravessavam. Passavam

além de si mesmos, não respeitando seus próprios limites. Atravessando o rio
e a ordem que o rio exercia na floresta”.
“O galho quebrado diz: “Não passarás”, em outras palavras,
não havia/não há ainda permissão para que se infringisse/infrinja as leis
preconceituosas que comandaram/comandam o mundo dito social. Mas,
para “além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio se separa” e
“pode-se banhar e pescar, deste lado”. A imaginação rogeliana, como
diria Bachelard, oculta “a tonalidade profunda do devaneio criador”156,
pois ela está resguardada pelas lembranças inesquecíveis de antigas
leituras foucaultianas, bachelardianas e outras. Além da “Curva do
Tucumã, a passagem do eixo do rio”, que separa o substancialmente
dito (“gêneses lineares”) do não-dito (o que não possui história),
propicia o momento da infração ficcional, porque, daquele lado, pode-se
“banhar” no rio das ditosas ou amargas lembranças imperecíveis e
“pescar” novíssimos juízos. Michel Foucault desenvolve um assunto
interessante sobre a genealogia do poder e do saber.
“A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela
trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos”.
“Paul Rée se engana, como os ingleses, ao descrever gêneses lineares, ao
ordenar, por exemplo, toda a história da moral através da preocupação com o
útil: como se as palavras tivessem guardado seu sentido, os desejos sua
direção, as ideias sua lógica; como se esse mundo de coisas ditas e queridas
não tivesse conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias. Daí, para a
genealogia, um indispensável demorar-se: marcar a singularidade dos
acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde
menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história ─ os
sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não
para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes
cenas onde elas desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto de sua
lacuna, o momento em que eles não aconteceram”.
“A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande número de
materiais acumulados, exige paciência. Ela deve construir seus “monumentos
ciclópicos”, não a golpes de “grandes erros benfazejos” mas de “pequenas
verdades inaparentes estabelecidas por um método severo”. Em suma, uma
certa obstinação na erudição. A genealogia não se opõe à história como avisão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se
opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais
e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da “origem”.157
“O galho quebrado” da genealogia númica impediu, ao longo da
história patriarcal, que a árvore se fortalecesse e permanecesse
socialmente altiva, como as “de 70 metros de altura”. “A genealogia é
cinza”, diz Michel Foucault. Enquanto forma documental, o estudo da
procedência de uma ramificação familiar e/ou tribal poderá ser
aniquilado por reelaborações não confiáveis. A genealogia deve/deveria
construir seus “monumentos ciclópicos”, não a golpes de “grandes erros
benfazejos” mas com “pequenas verdades inaparentes estabelecidas por
um método severo”; a genealogia deveria deixar de ser cinza.

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