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As águas, as lembranças
NEUZA MACHADO
As “águas” (as lembranças imperecíveis do narrador) provêm
“dos desconhecidos lugares da origem Numa”, uma tribo desconhecida
geograficamente e que ficou à margem da história do Amazonas, por
exigências sócio-substanciais. Desta tribo de índios audazes, só se
perpetuaram os referentes conhecidos e aplaudidos ligados à força
física, ao lado indômito, à imponente belicosidade do animus dessa tribo
diferenciada. As “águas” (as lembranças) desses lugares da origem
Numa ficaram desconhecidas por leis de “sobrevivência”, relegadas
friamente ao esquecimento. “Se perdem”/se perderam no esquecimento,
porque foram interditadas vergonhosamente pelo anterior regime
patriarcal. Foram/são esquecidas e passaram/passam, porque, se íntimas,
representaram/representam “perigo”, se fossem/se forem verbalizadas.
Essas “águas”, que veem de “desconhecidas origens Numas”,
são especiais, porque provêm do devaneio interno de quem narra. O
narrador rogeliano Ribamar de Sousa a designa como uma “narrativa
animal” porque ela é uma projeção da matéria primitiva que
vigorou/vigora no imaginário-em-aberto do escritor. Refiro-me àquela
matéria inovadora que surge entropicamente depois do repouso
fervilhante, intimamente relacionada com os juízos de descoberta, de
que nos fala Bachelard, em seu livro A Dialética da Duração.154
“O galho quebrado diz: “Não passarás”. E além da Curva do Tucumã, a
passagem do eixo do rio se separa. Pode-se banhar e pescar, deste lado. Mas
aos poucos os Numas se infiltravam, avançavam, atravessavam. Passavam
além de si mesmos, não respeitando seus próprios limites. Atravessando o rio
e a ordem que o rio exercia na floresta”.
“O galho quebrado diz: “Não passarás”, em outras palavras,
não havia/não há ainda permissão para que se infringisse/infrinja as leis
preconceituosas que comandaram/comandam o mundo dito social. Mas,
para “além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio se separa” e
“pode-se banhar e pescar, deste lado”. A imaginação rogeliana, como
diria Bachelard, oculta “a tonalidade profunda do devaneio criador”156,
pois ela está resguardada pelas lembranças inesquecíveis de antigas
leituras foucaultianas, bachelardianas e outras. Além da “Curva do
Tucumã, a passagem do eixo do rio”, que separa o substancialmente
dito (“gêneses lineares”) do não-dito (o que não possui história),
propicia o momento da infração ficcional, porque, daquele lado, pode-se
“banhar” no rio das ditosas ou amargas lembranças imperecíveis e
“pescar” novíssimos juízos. Michel Foucault desenvolve um assunto
interessante sobre a genealogia do poder e do saber.
“A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela
trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos”.
“Paul Rée se engana, como os ingleses, ao descrever gêneses lineares, ao
ordenar, por exemplo, toda a história da moral através da preocupação com o
útil: como se as palavras tivessem guardado seu sentido, os desejos sua
direção, as ideias sua lógica; como se esse mundo de coisas ditas e queridas
não tivesse conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias. Daí, para a
genealogia, um indispensável demorar-se: marcar a singularidade dos
acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde
menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história ─ os
sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não
para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes
cenas onde elas desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto de sua
lacuna, o momento em que eles não aconteceram”.
“A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande número de
materiais acumulados, exige paciência. Ela deve construir seus “monumentos
ciclópicos”, não a golpes de “grandes erros benfazejos” mas de “pequenas
verdades inaparentes estabelecidas por um método severo”. Em suma, uma
certa obstinação na erudição. A genealogia não se opõe à história como avisão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se
opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais
e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da “origem”.157
“O galho quebrado” da genealogia númica impediu, ao longo da
história patriarcal, que a árvore se fortalecesse e permanecesse
socialmente altiva, como as “de 70 metros de altura”. “A genealogia é
cinza”, diz Michel Foucault. Enquanto forma documental, o estudo da
procedência de uma ramificação familiar e/ou tribal poderá ser
aniquilado por reelaborações não confiáveis. A genealogia deve/deveria
construir seus “monumentos ciclópicos”, não a golpes de “grandes erros
benfazejos” mas com “pequenas verdades inaparentes estabelecidas por
um método severo”; a genealogia deveria deixar de ser cinza.
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