terça-feira, 16 de julho de 2013

GOULD

GOULD Ouço, obsessivamente ouço, e repetidas vezes, o Concerto nº 1 BWV 1052 de Bach com Gleen Gould. Ele o tocou pela primeira vez em Toronto, 1955, e a partir de então, também, por mais de 30 vezes, repetiu a obra. A gravação, que ouço, é a de 1957, Mono, Columbia Symphony Orchestra. E Bernstein. Também possuo outra, da Internet, em MP3, de que nada sei porque nada é dito, cujo tempo me parece um pouco mais rápido, e as “loucuras” de Gleen Gould mais radicais, como as “invenções”, “modificações”, caminhando da lucidez, da precisão clássica/barroca para a variação jazzística, nas suas ondulações sonoras, intermináveis e recalcitrantes. A gravação da Internet desse Concerto obsessor deve ser a mesma e está, entretanto, incompleta, faltando alguns minutos do segundo movimento, o “Adágio”.
Gould fez sucesso obstinado com este concerto.
Em Leningrado, diz Otto Friedrich, seu biógrafo, lugares extras foram colocados no palco, 1.300 assentos foram vendidos, 1.000 ingressos de lugares em pé (!), e mesmo policiais tiveram de ser convocados para conter a multidão, que se comprimia do lado de fora, sem poder entrar. Até os músicos da orquestra que não foram convocados se acotovelavam na coxia para ovacionar o pianista. Rebentaram as palmas. Explodiram vivas. Lançaram-se flores. Ele ficou assustado: “Foi opressivo e amedrontador”, disse, depois.
Ele parecia criança quando esteve pela primeira vez com Leonard Bernstein. Existe aquela famosa foto sua com o maestro americano: Gould belo menino, em transe, os cabelos cobrindo os olhos, e Bernstein de cabeça baixa, sério. “Ele realmente fez coisas maravilhosas no Concerto em Ré de Brahms”, disse. Mais tarde, em gravação que tenho, dádiva do pianista americano Christopher Schindler, o criticou o maestro em público, pois o pianista forçou leitura lentíssima do Concerto de Brahms com a Filarmônica de Nova Iorque. Mas, depois de ouvir várias vezes, começamos a sentir que é assim mesmo, naquele tempo lento, que o grande Concerto deve ser ouvido. Na época, Gould foi duramente criticado. Disseram justamente até que ele atrasou o tempo porque não era capaz de superar as dificuldades técnicas de execução. A crítica bateu feio nele e ele sentiu a pancada. Parece que ficou ferido. Por outras razões abandonou o palco. Criticavam os seus trejeitos malucos ao piano, as suas contorções, caretas e tudo mais. Falavam de sua vida sexual, se seria ou não homossexual, da sua indumentária horrorosa, dos seus medos e fobias, das doenças imaginárias. Gould tinha dos concertos uma idéia pejorativa, dizia daquilo uma competição, exibicionismo, aparição moralmente má. Do tipo: “Devo decorar esta frase elegantemente para o concerto”. O pianista no palco ia participar de um show que era uma luta por uma espécie de prêmio mundano, cheio de desafios, disputas, rivalidades, tão longe da transcendência em que mergulhava – a música uma espécie de religião, meditação, êxtase e orgasmo. Não, nada de exibição de virtuose. Mesmo com orquestra, ele é um “solista”, em meditação. A orquestra, um acompanhamento. Ali não emerge o ego de um virtuose. O concerto não deveria ser uma batalha entre o piano e a orquestra [apud Michael Stegemann], um espetáculo de arena. Gould rejeitava a idéia do psicanalista Stevens de que os virtuoses educam a sensibilidade do público. Ele foi “o último puritano”, se referindo a si próprio tomava emprestado o título da novela de George Santayana. “Esta era a visão da arte como instrumento de salvação, e dos artistas como seus advogados missionários”, disse Stegemann. Arte como educação espiritual e meditação. Elevação mística. Tal Ragas orientais.
Enfim recolheu-se à solidão dos mosteiros, digo, estúdios, à sua casa, aos seus passeios de carro, às suas noites solitárias, em que importunava os amigos com longos telefonemas, durante horas, em que ele freneticamente falava sem parar.
O tempo lento do Concerto de Brahms me lembra a gravação, lentíssima, de Celibidache da Sinfonia Novo Mundo de Dvorak. Dura 113 minutos. É magistral. Celibidache velho, velhíssimo, rege, pesadamente sentado na cadeira, economiza gestos, mas poderoso, e sua música aparece como uma despedida, adeus. Ele, antes tão exuberante, dramático, que pulava e bailava no pódio, agora sentado, poupa-se, transformando a Novo Mundo em sua transcendência para a nova vida, a morte.
Pois Gould era realmente, absolutamente louco. Louco como só os gênios o podem ser.
Ele teve dificuldades em gravar com orquestra.
Disse: “...meu problema com orquestra é econômico... com orquestra, seja o que for que você tenha de fazer, só dispõe da orquestra no estúdio por um limitado número de horas... se tiver sorte pode fazer duas ou três gravações... mas quando estou numa sessão solo posso fazer nove ou dez gravações” diferentes, para escolher uma, a melhor.
Ele somente teve dois mestres: Alberto Guerrero e sua mãe, Florence. “Tudo o que há para saber sobre piano pode ser ensinado em menos de meia hora”, dizia.
Sim, dizia. Ele.

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