2. ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS
AMANTES (reescrita)
À tarde entramos naquele mar como se vestíssemos um
verde vivo e atravessamos a luz, andamos pela rua daquele subúrbio, o bairro,
silenciosos, graves, gravemente subimos o aclive, os passos, resumimos nossas
conversas a um leve contato, leve toque dos dedos, ocasionais, toque rápido,
cheio de emoção e felicidade. Mas a vida não, mas a vida não é um brinquedo.
Não consigo saber o que se passou, as recordações recortam imagens
irrecuperáveis. Tento compreender. O que acontecia naquele momento, naquele
passar de sua presença inteira, fixa, na minha frente - de uma existência - o
passado como tela de cinema implantado no olho da memória. A vida não pára, não
parou. Não chego ao desespero, ao estranho relacionamento que tenho, hoje, com
o que hoje sou. O presente aqui não é nem alegre, nem triste. Tenho de começar
devagar.
Certo dia,
quando aciono, quando acordo, o teto do quarto com uma coloração rósea, a
janela aberta dá para um labirinto em que o olhar ostenta mover-se, e que se vai
desdobrando em abstrata claridade, a fragrância marinha emanando suave, fria,
perfumada, vinda do horizonte, a janela respirava... Entrava, quase
imperceptível, um som, aquele som, um murmúrio, doce, azulado, como o mar. As
pessoas amigas me tinham recomendado calma. Mas eu não consigo. Lembro-me ainda
das retas cruzes das ruas da cidade indiferente, vista do alto prédio, a
cidade.
Foi naquela madrugada que a sentença me chegou, forte,
perfeita, correta, aterradora como a de um assassino: Val me abandonava. As
persianas batem, fortes, nervosas. As roupas por cima da cama, acordava eu do
sonho do meu amor desfeito. O amor, como uma bala, passava de boca em boca. Se
espalhava. Eu sofria a angústia, a queda. O amor é um mar. Cheiro familiar de
café. Um pente um espelho. Eu penso em matar o meu sonho. Alguns homens
formavam um grupo no ângulo da esquina, e ela... ah, súbita felicidade... agora
nós estávamos na praça, na orla da praia eu subia até um pedestal vazio, que
chegava à cabeceira do tanque retangular, e no ar abria os braços, espalmava as
mãos, feliz, e ainda me consigo ver. De lá dizia, de lá me recordava de mim
mesmo, eu para mim agora, a um majestoso e largo mar que soava no ar com a
clara voz de Val, com todas as claras vozes daquele tempo, a aragem crescendo
no meio de tudo, infiltrando-se na camisa aberta, os seios nus.
Nada me
prende mais, hoje, do que a demora do passado no momento presente, esse momento
interior imensurável, onde às vezes a força dos instantes retardam os passos do
passado para sempre. Às vezes, como num sonho, largo pesado sonho estirado. Os
momentos são assim inteiramente vivos, inesperados. Neles me movo, me
reconstruo, me recomeço. Em frente. Naquela praia nós nos largávamos na areia,
era como se durante a vida toda estivéssemos ali. Na areia suave, como se as
lembranças estivessem inteiramente nuas. Visto de hoje o mar, vedação alta e
azul, as coisas vastas, as coisas em bloco, as coisas se dissolviam em
explosões de brancas espumas, cristas, covas, límpidas cintilações coriscantes.
Ainda estou
perdido, perplexo. Ainda me movo mal nesse espaço. Ela penteia os cabelos,
diante do espelho, os ombros largos. Muitos anos se passaram diante da imagem
de Val, naquele espelho. Era ali, a sua viagem, a sua viagem de barco, ela, os
cabelos muito soltos no convés, chovia quase todo tempo, interminável ruído da
chuva, a chuva nascia da ondulação das dobras de um lençol de chuva azul, ou
verde, nós riamos, recebíamos de face as espetadelas gélidas das gotas do ar.
‘Isso é tudo? Durante todo o tempo em que vivemos
juntos, parece hoje, por uma misteriosa deformação mágica, que todas as tardes
são a presença do seu mar, onde sempre se ouvem ondas, onde as luzes, os sóis
se impunham, juvenis, um elemento, alto, magro, qual garça branca, andando
atrás da pedra, do deserto, entre o carro e um adorno, uma corrente, ele se
precipitava entre as coisas da memória, se encostava ao cimento do muro. Aqui,
Val aqui, atrás do ciúme, conectando com o que se refere, com tudo o que...
bombas (anos depois os soldados invadem o prédio,
rebentam no meio da sala cruelmente as bombas, eu procurava Valquíria entre os
acontecimentos tumultuosos, estávamos encurralados ali, não conseguimos sair
daquilo, não há nenhum telefone funcionando). Esse amor. Tenho de deixar
sossegado? Posso iludi-lo com amenidades? Eu sempre penso em matar minha
lembrança, meu passado. Ele estaria morto finalmente se eu não o estivesse
revirando agora.
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