As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim, são minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta.36
O Artista ficcional vive a aventura de vagar no infinito, dentro da ilimitação da criatividade poética. Entre o mundo objetivo e seu universo interiorizado, há a força da arte de escrever, exibindo palpavelmente o hiato criador que se encontra entre a aparência e a essência de uma realidade idealizada. Sua meta, unindo à narrativa linear o instante poético, é fixar a eternidade da arte num texto que, em princípio, apenas reproduziria o sertão. Para um escritor que vive no infinito e omomento não conta é fácil transformar o sertão em ficção poética. Quem vive no infinito são os Poetas.
O instante poético é, pois, necessariamente complexo: emociona, prova — convida, consola —, é espantoso e familiar. O instante poético é essencialmente uma relação harmônica entre dois contrários. No instante apaixonado do poeta existe sempre um pouco de razão; na recusa racional permanece sempre um pouco de paixão. As antíteses sucessivas já agradam ao poeta. Mas para o arroubo, para o êxtase, é preciso que as antíteses se contraiam em ambivalência. Surge então o instante poético... No mínimo, o instante poético é a consciência de uma ambivalência. Porém é mais: é uma ambivalência excitada, ativa, dinâmica. O instante poético obriga o ser a valorizar ou a desvalorizar. No instante poético o ser sobe ou desce, sem aceitar o tempo do mundo, que reduziria a ambivalência à antítese, o simultâneo ao sucessivo.37
Os paradoxos expressam o instante poético de quem narra, aquele que um dia disse ao crítico Lorenz:
Como romancista tento o impossível. Gostaria de ser objetivo, e ao mesmo tempo me olhar a mim mesmo com os olhos de estranhos. Não sei se isso é possível, mas odeio a intimidade.38
Os dois aspectos do romancista: os paradoxos que caracterizam o caráter ambivalente do Poeta. Sua ficção poética valoriza o sertão mineiro e desvaloriza a modernidade. O escritor não está comprometido com seu momento histórico e, no entanto, é íntimo desse tempo, ao vivenciá-lo em seu cotidiano; mesmo assim, não pensa ideologicamente, de acordo com os padrões modernos, porque sua ideologia é autenticamente sertaneja.
O narrador, por exemplo, não enuncia mandamentos de vida, não emite sentenças ideológicas, apenas sonha o Sertão que se encontra dentro do sonho daquele o idealizou. O narrador de A hora e vez de Augusto Matragaadota a ideologia dos contos infantis, ao punir seu personagem, fazendo-o expiar seus pecados de homem rude e poderoso, mas, ao mesmo tempo, reserva para ele um final que transcende os limites da realidade substancial. Submetido ao sonho do artista, não pune Nhô Augusto com a severidade da justiça humana, ao contrário, transporta-o para uma realidade idealizada, poetizando o desenlace e redimindo-o por meio de uma morte glorificada. Portanto, é o Artista que valoriza os instantes finais de Nhô Augusto, ao invés de puni-lo com a dureza da razão.
No trecho narrativo que registra o retorno do personagem até o momento de sua morte, há a paixão superior da matéria lírica, impedindo o domínio total da razão ordenadora. Conseqüentemente, há o resgate de velhas frases convencionais, insolitamente inseridas num contexto caótico; o arroubo do narrador vivenciando cada pormenor narrativo na transmissão das minúcias de um sertão poético; o êxtase final, ao narrar a morte de Nhô Augusto, transportando-o para o plano da santificação. O narrador é, indiscutivelmente, representante do Artista literário, ou seja, expressa os sentimentos de um indivíduo paradoxal: sertanejo e moderno. Escrevendo sobre a vida e morte de Nhô Augusto das Pindaíbas e do Saco-da-embira, escreve sobre si mesmo, narra as aventuras que correm dentro de seu universo interiorizado e sertanejo, sem deixar de ser um homem estabilizado dentro de seu núcleo social citadino.
O Artista é escritor e "pensa em eternidades", pensa sobretudo "na ressurreição do homem"39. Nhô Augusto ganhou, pelas mãos do narrador, sua hora e vez, ganhou o privilégio de morrer redimido, porque, pensando na ressurreição do homem (do personagem), o Artista pensa na sua própria ressurreição, consciente que está dos vários estágios de ressurreição que existem no plano espiritual. Transformando o final de sua narrativa, demonstra não aceitar o tempo do mundo, produzindo um outro tempo, tempo verticalizante, tempo do pensamento, que busca as profundezas da alma, a ascensão ao cogito(4), por entre o devaneio e o infinito da realidade idealizada, por intermédio das recordações poéticas da infância.
Neste capítulo, passo a verificar a relação do ficcionista da realidade sertaneja com a sua obra, considerando aqui que a obra abrange, em sua totalidade, mais especificamente, o sertão da infância, das recordações da infância. A obra literária de Guimarães Rosa tem com o sertão da infância, das recordações, uma relação interna indissolúvel, já que foi dito que o sertão é invenção da obra roseana, e o contrário também vale: o sertão roseano criou a obra literária roseana.
Nestas páginas iniciais, desenvolverei um pensamento centralizado na "ambiência do indivíduo moderno na representação do eu", repensando as idéias de Erving Goffman40, antropólogo americano, contando também com a fenomenologia de Gaston Bachelard, emO Direito de Sonhar41, sobre o tema das máscaras, as quais põem em prática a vontade de dissimulação do ser que se mascara, para alcançar segurança em seu meio social.
Especificamente, neste capítulo, detenho-me no comportamento do narrador de A hora e vez de AugustoMatraga, narrativa de transição para o cogito(2) (cogito transitivo, propenso a dialetizar as idéias vitais (pré-)estabelecidas), porque, de acordo com o meu particular ponto de vista, este personagem subsiste comomáscara, a primeira máscara, encobrindo a face ficcional do escritor, cidadão moderno mas nato do sertão. Devo esclarecer que os primeiros narradores docorpus de Sagarana representaram o repórter, dando as notícias do sertão e enfatizando as belezas naturais, exibindo um mundo comunitário, pitoresco, aos leitores da cidade.
Não intenciono analisar o comportamento humano por uma perspectiva sócio-antropológica, mas examinar hipoteticamente as atitudes e reações do criador literário, em seu meio comunitário, pelo prisma de seu eu ficcional. Assim, observarei uma das funções de Guimarães que, entre as várias que exerceu, o fez respeitado em seu núcleo social: sua atuação como escritor renomado e sua influência, realçando, por meio da literatura, a grandeza do sertão mineiro, espaço rejeitado pela elite da sociedade.
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