sábado, 31 de janeiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


II – um sertão inesquecível





Neste capítulo em especial, examino hipoteticamente a atuação de um determinado escritor sertanejo e do seu personagem-narrador, aproximando-os conscientemente. Barthes (evidentemente, o Barthes da primeira fase cientificista) diz que não se deve confundir o narrador com o escritor, já que o narrador é personagem também, mas, o leitor-intérprete das obras de Guimarães Rosa, ao penetrar no texto, dialeticamente descobre que o narrador roseano atua como intermediário entre a História e o Ficcional, sob o comando de seu criador. O narrador, como porta-voz de uma entidade demiúrgica, há de transmitir pensamentos, questionamentos, dúvidas, todo um elenco de emoções que fazem substancialmente parte de seu universo interiorizado e imediato ou, talvez, sentimentos não imediatos, que provêm de raízes profundas e metafísicas. O narrador roseano, como personagem do Sertão, não pode ser confundido com o Artista Literário Guimarães Rosa, no que diz respeito a uma narrativa que tente registrar a vida do Homem como personagem histórico. O Artista Literário Guimarães Rosa, cidadão do mundo, mas nativo do sertão, pode projetar-se em seus personagens, fazendo emergir suas raízes sertanejas. Nhô Augusto, Joãozinho Bem-Bem e o narrador, todos os personagens do seu universo ficcional representam as várias faces/fases de seu próprio país. Neste caso, o narrador sertanejo atuando como o autêntico herói moderno de Lukács71, porque ele é historicamente, também, o indivíduo que faz parte da sociedade moderna (núcleo deteriorado que determina as atitudes externas de seus componentes), sociedade que exige determinadas representações dos indivíduos em suas relações sociais; sociedade de valores esteriotipados, na qual o valor maior é o valor do modo de produção e da apropriação de um capitalismo agrário.

O narrador de Guimarães Rosa de A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA (aqui, envolvo também em um invólucro só todos os narradores das inúmeras narrativas de Guimarães Rosa) procura valores humanos autênticos em seu momento e não os encontra, conhece um mundo perfeito já distanciado da realidade moderna e, graças ao poder das recordações, procura significar esse mundo e consegue em determinados trechos da narrativa, mas sua própria fragmentação interior, fragmentação existencial de indivíduo, ligado também à movimentação histórica, o desvia para um final discursivo, questionador e poético. Colocando o narrador em evidência, o ficcionista moderno transforma o herói Nhô Augusto em joguete do destino, submete-o às exigências de uma ficção-arte refletora de uma modernidade sem rumo.

Mas, somadas as léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o sul, na direção das maitacas viajoras. Agora, amiudava-se o aparecimento de pessoas — mais ranchos, depois, arraiais brotando do chão. E então, de repente, estiveram a muito pouca distância do arraial do Murici.
  Não me importo! Aonde o jegue quiser me levar, nós
vamos, porque estamos indo é com Deus!...72

A trajetória de vida do personagem repete a trajetória existencial do narrador enquanto face ficcional do Artista. Este é proveniente de um espaço sócio-substancial moderno, mas que conserva um elevadíssimo grau de primitividade. O poder do narrador roseano é plurissignificativo, pois é possível observar nele as diversas fases/faces de poder do Homem e do Mundo. O alter ego do escritor moderno analisa esse poder, que é seu próprio poder, enquanto refletor de uma sociedade indefinida e contraditória, ao mesmo tempo agrícola e burguesa. O sertão mineiro do século XX, em sua concretude, é um espaço conflituado, de onde, em princípio, o narrador procura recuperar unicamente o universo comunitário de sua matéria de análise, servindo-se da memória. Nos primeiros parágrafos da narrativa, percebe-se tal intenção. Ele apresenta o sertão que se insere em seu momento sócio-substancial, mas, ao mesmo tempo, apresenta a matéria mítica existente nesse mundo, remanescente de um mundo primitivo, já distanciado no tempo. O mundo roseano de A hora e vez de Augusto Matraga é um núcleo perfeito, e seu personagem também, mas a ótica do narrador se encontra fragmentada, e seu personagem sofre as variações dessa fragmentação, que se evidencia posteriormente mediante um discurso insólito, mesclado (trovas, exclamações, indagações, poesia e prosa). É o discurso roseano que faz a mediação entre o mundo perfeito e mundo inacabado; é o discurso que evidencia o conflito do narrador moderno, indivíduo problemático cercado por uma sociedade desestruturada. Por isto, o narrador abandona o tom oral normativo do início, instaurando o conflito narrativo (medos e questionamentos da autocrítica burguesa).

Em meio à plenitude de vida, e através dessa plenitude, o romance dá notícia da própria desorientação de quem vive.73


A desorientação do narrador de Rosa, personagem moderno, se caracteriza pela desorientação verbal, discurso diferente e agressor, se penso nos estranhamentos lingüísticos, distantes dos padrões normativos. "Não me submeto à tirania da gramática"74, diz Rosa a Lorenz. Seu narrador também não se submete, porque não se trata mais de desenvolver o ato metódico de contar uma estória acontecida, mas preencher os vazios de uma narrativa insólita, na qual os inesperados ocorrem sem que o narrador os conheça, mas que são criados e idealizados pelo escritor pós-moderno. A narrativa é insólita, e os inesperados ocorrem, porque o narrador roseano foi obrigado a criar novas atitudes discursivas que representassem as faces desencontradas da decadente sociedade moderna, sociedade de aparências. Descobrindo o poder da palavra multifacetada da pós-modernidade, ele descobre o poder do discurso ficcional como representante de um mundo diferente, porque mais verdadeiro em seus questionamentos. Assim, desempenha um papel diante dos leitores e, implicitamente, exige que os observadores de seu verdadeiro eu o levem a sério, porque ele levou a sério a impressão que quis transmitir. O narrador de Rosa impõe sua ótica, pede aos leitores que acreditem nos atributos de seus personagens e na grandeza desse Sertão que é somente dele; exige que se ouça a sua voz para além das exigências sociais. Se o sertão, em sua concretude, não é exatamente assim, o Sertão de sua representação é o que ele idealizou. O narrador-ator, personagem-narrador, se movimenta à vontade nesse espaço idealizado, porque está consciente da verdade que deseja transmitir, está convencido "de que a impressão de realidade que encena é a verdadeira realidade"75.

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