NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
Neste
capítulo em especial, examino hipoteticamente a atuação de um determinado
escritor sertanejo e do seu personagem-narrador, aproximando-os conscientemente.
Barthes (evidentemente, o Barthes da primeira fase cientificista) diz que não
se deve confundir o narrador com o escritor, já que o narrador é personagem
também, mas, o leitor-intérprete das obras de Guimarães Rosa, ao penetrar no
texto, dialeticamente descobre que o narrador roseano atua como intermediário
entre a História e o Ficcional, sob o comando de seu criador. O narrador, como
porta-voz de uma entidade demiúrgica, há de transmitir pensamentos,
questionamentos, dúvidas, todo um elenco de emoções que fazem substancialmente
parte de seu universo interiorizado e imediato ou, talvez, sentimentos não
imediatos, que provêm de raízes profundas e metafísicas. O narrador roseano,
como personagem do Sertão, não pode ser confundido com o Artista Literário Guimarães
Rosa, no que diz respeito a uma narrativa que tente registrar a vida do Homem
como personagem histórico. O Artista Literário Guimarães Rosa, cidadão do
mundo, mas nativo do sertão, pode projetar-se em seus personagens, fazendo
emergir suas raízes sertanejas. Nhô Augusto, Joãozinho Bem-Bem e o narrador,
todos os personagens do seu universo ficcional representam as várias
faces/fases de seu próprio país. Neste caso, o narrador sertanejo atuando como
o autêntico herói moderno de Lukács71, porque ele
é historicamente, também, o indivíduo que faz parte da sociedade moderna
(núcleo deteriorado que determina as atitudes externas de seus componentes),
sociedade que exige determinadas representações dos indivíduos em suas relações
sociais; sociedade de valores esteriotipados, na qual o valor maior é o valor
do modo de produção e da apropriação de um capitalismo agrário.
O
narrador de Guimarães Rosa de A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA (aqui, envolvo também em um
invólucro só todos os narradores das inúmeras narrativas de Guimarães Rosa)
procura valores humanos autênticos em seu momento e não os encontra, conhece um
mundo perfeito já distanciado da realidade moderna e, graças ao poder das
recordações, procura significar esse mundo e consegue em determinados trechos
da narrativa, mas sua própria fragmentação interior, fragmentação existencial
de indivíduo, ligado também à movimentação histórica, o desvia para um final
discursivo, questionador e poético. Colocando o narrador em evidência, o
ficcionista moderno transforma o herói
Nhô Augusto em joguete do destino, submete-o às exigências de uma ficção-arte
refletora de uma modernidade sem rumo.
Mas, somadas as
léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o sul, na direção das
maitacas viajoras. Agora, amiudava-se o aparecimento de pessoas — mais ranchos,
depois, arraiais brotando do chão. E então, de repente, estiveram a muito pouca
distância do arraial do Murici.
— Não me
importo! Aonde o jegue quiser me levar, nós
vamos, porque
estamos indo é com Deus!...72
A
trajetória de vida do personagem repete a trajetória existencial do narrador
enquanto face ficcional do Artista. Este é proveniente de um espaço
sócio-substancial moderno, mas que conserva um elevadíssimo grau de
primitividade. O poder do narrador roseano é plurissignificativo, pois é
possível observar nele as diversas fases/faces de poder do Homem e do Mundo. O
alter ego do escritor moderno analisa esse poder, que é seu próprio poder,
enquanto refletor de uma sociedade indefinida e contraditória, ao mesmo tempo
agrícola e burguesa. O sertão mineiro do século XX, em sua concretude, é um
espaço conflituado, de onde, em princípio, o narrador procura recuperar
unicamente o universo comunitário de sua matéria de análise, servindo-se da
memória. Nos primeiros parágrafos da narrativa, percebe-se tal intenção. Ele
apresenta o sertão que se insere em seu momento sócio-substancial, mas, ao
mesmo tempo, apresenta a matéria mítica existente nesse mundo, remanescente de
um mundo primitivo, já distanciado no tempo. O mundo roseano de A hora e vez de Augusto Matraga
é um núcleo perfeito, e seu personagem também, mas a ótica do narrador se
encontra fragmentada, e seu personagem sofre as variações dessa fragmentação,
que se evidencia posteriormente mediante um discurso insólito, mesclado
(trovas, exclamações, indagações, poesia e prosa). É o discurso roseano que faz
a mediação entre o mundo perfeito e mundo inacabado; é o discurso que evidencia
o conflito do narrador moderno, indivíduo problemático cercado por uma sociedade
desestruturada. Por isto, o narrador abandona o tom oral normativo do início,
instaurando o conflito narrativo (medos e questionamentos da autocrítica
burguesa).
Em meio à
plenitude de vida, e através dessa plenitude, o romance dá notícia da própria
desorientação de quem vive.73
A desorientação do narrador de Rosa,
personagem moderno, se caracteriza pela desorientação verbal, discurso
diferente e agressor, se penso nos estranhamentos lingüísticos, distantes dos
padrões normativos. "Não me submeto à tirania da gramática"74, diz Rosa a
Lorenz. Seu narrador também não se submete, porque não se trata mais de
desenvolver o ato metódico de contar uma estória acontecida, mas preencher os vazios de uma narrativa insólita, na
qual os inesperados ocorrem sem que o narrador os conheça, mas que são criados
e idealizados pelo escritor pós-moderno. A narrativa é insólita, e os
inesperados ocorrem, porque o narrador roseano foi obrigado a criar novas
atitudes discursivas que representassem as faces desencontradas da decadente
sociedade moderna, sociedade de aparências. Descobrindo o poder da palavra
multifacetada da pós-modernidade, ele descobre o poder do discurso ficcional
como representante de um mundo diferente, porque mais verdadeiro em seus
questionamentos. Assim, desempenha um papel diante dos leitores e,
implicitamente, exige que os observadores de seu verdadeiro eu o levem a sério,
porque ele levou a sério a impressão que quis transmitir. O narrador de Rosa
impõe sua ótica, pede aos leitores que acreditem nos atributos de seus
personagens e na grandeza desse Sertão que é somente dele; exige que se ouça a
sua voz para além das exigências sociais. Se o sertão, em sua concretude, não é
exatamente assim, o Sertão de sua representação
é o que ele idealizou. O narrador-ator, personagem-narrador, se movimenta à
vontade nesse espaço idealizado, porque está consciente da verdade que deseja transmitir, está convencido "de que a
impressão de realidade que encena é a verdadeira realidade"75.
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