NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
Passo
aqui a dialogar com os meus leitores: analisemos esta afirmativa: "o mundo
em que vivo é o sertão"65. Evidentemente, ele não se refere ao mundo
burguês, que se encontra longe do sertão, enquanto algo remanescente do mundo
medieval. Fala do sertão que está dentro dele, de um mundo só dele, onde pode
expressar-se sem falsos valores, único mundo no qual ele realmente é. Assim,
sua literatura é autêntica, pois nasceu de sua verdadeira vida. Como indivíduo,
que representa uma determinada classe social, não poderia jamais expressar-se
como sertanejo, pois acarretaria a rejeição do grupo, que não o aceitaria em
seu despojamento. Se a sociedade está organizada para projetar falsos valores,
a saída de um homem sensível e inteligente é projetar os valores verdadeiros do
sertão por meio da literatura, sem que, com isso, macule a impressão que o grupo social já formou a seu respeito.
Valendo-se do narrador, impõe seu verdadeiro
Sertão ao grupo que o cerca, manipula as impressões sobre o sertão,
direciona o olhar deles, encena um espetáculo, em que o ato principal é realçar
a grandeza de um espaço, que, de ordinário, não é muito valorizado. Pensemos,
por exemplo, no falar do sertanejo, motivo de risos nas anedotas populares.
O
narrador representa a face ficcional do Artista (ficção-arte). Se ele não pode
demonstrar sua verdadeira aparência, a sua verdadeira maneira de ser, pois
estaria incorrendo numa provável queda em seu status social, como indivíduo que se projetou positivamente diante
de um determinado grupo, só mesmo a recriação
de um outro mundo, seu verdadeiro mundo, para viver coerentemente a sua íntima
realidade e se sentir autêntico.
Minhas
personagens, que são sempre um pouco de mim mesmo, um pouco muito, não devem
ser, não podem ser intelectuais pois isso diminuiria sua humanidade.66
Eis o
conflito do sertanejo (oriundo de uma autêntica estrutura comunitária) que se
tornou intelectual (ser solitário da individualizada sociedade moderna). Eis
aqui um Artista cultíssimo, poliglota, mas distanciado de certos intelectuais.
(...) não
suporto essas figuras intelectuais, das quais se espera que a qualquer momento
lhes brotem da boca bolas de papel. Inteligência, prudência, como eu as
interpreto, cultura elevada, tudo isto está bem, pois o escritor atual deve
possuir todas estas qualidades. Mas não deve se transformar em um computador.
Não deve abandonar as zonas do irracional, ou então deixa de produzir
literatura e só produz papel. Flaubert, Dostoievski, eram sacerdotes da
palavra; Zola, ao contrário, foi apenas um charlatão e, por isso, hoje, nada
significa para nós, pois a necessidade que suas palavras expressam não existe
mais. Assim acontece com todos os que ligam à necessidade do dia-a-dia o seu
chamado compromisso e além disso não possuem as faculdades lingüísticas
necessárias para poder fazer literatura.67
Este
indivíduo da Entrevista já alcançou credibilidade diante do grupo e
diante do mundo. Agora, ele pode desempenhar seus diversos papéis e, ao mesmo
tempo, transmitir uma parcela de autenticidade que se incrusta em seu próprio
ser (autenticidade de um homem nato de um mundo verdadeiro). Apesar das
impressões que projeta para um determinado núcleo, pode dar-se a conhecer
intimamente, porque já convenceu o grupo quanto à grandeza de seus vários
papéis na vida. Assim sendo, não é ele que se encontra diante de um grupo para
ser avaliado, já superou tal fase; o foco de avaliação parte dele em direção a
um determinado grupo. Aquele que se projetou positivamente agora pode julgar
esses indivíduos e, ao mesmo tempo, ser aceito. Claro está que essas figuras
não se colocam numa posição depreciativa, simplesmente porque acreditam no
papel que representam. Como diz Goffman, "somente um sociólogo ou uma
pessoa socialmente descontente terão dúvidas sobre a 'realidade' do que é
apresentado"68.
O Artista, é uma pessoa socialmente
descontente com tais indivíduos e pode, graças à interação positiva que
emite, demonstrar seu descontentamento. Já se conscientizou da multiplicidade
de seus papéis na vida e na ficção; não tem dúvidas quanto à realidade desses
papéis e da aceitação do grupo (do mundo) quanto a sua atuação. Para que isto
ocorresse, foi necessário recontar-se em várias narrativas e, como João,
personagem do sertão, decalcar na literatura a sua verdadeira face, nata, não
elaborada. "Às vezes quase acredito que eu mesmo, João, sou um conto
contado por mim mesmo. É tão imperativo"69.
O
escritor conta e reconta seu verdadeiro personagem, por intermédio de todos os
personagens de seu mundo ficcional, porque todas as informações que o grupo
buscou a seu respeito alcançaram credibilidade; apenas a sua verdadeira
informação, a informação de suas raízes sertanejas, não pode aparecer explícita
no seu dia-a-dia existencial. Já que o desejo de se revelar é autêntico, a
ficção supera os obstáculos, faz o Artista encontrar-se intacto num mundo onde
as aparências prevalecem, definindo positivamente uma situação de vida que, se
realizada concretamente, seria paradoxal.
Escrevendo,
ele desempenha um papel decisivo no sentido de influenciar o grupo, ou seja,
seus leitores. Escrever é a representação do verdadeiro eu do Artista do século
XX na vida cotidiana, cujo objetivo é alertar quanto à degradação do mundo
hodierno, mundo que apenas realça valores externos e deteriorados. As situações
reais ou insólitas são intencionalmente arquitetadas dentro do percurso
narrativo, para demonstrarem a validade da modéstia e da simplicidade. O grande
escritor, o médico, o soldado, o diplomata, o poliglota não exibe seus
atributos intelectuais ostensivamente, prefere antes mostrar a sua autêntica
humanidade de homem provindo do sertão. "A alquimia do escrever precisa de
sangue do coração. (...). Para poder ser feiticeiro da palavra, para estudar a
alquimia do sangue do coração humano, é preciso provir do sertão"70. A
influência, portanto, é autêntica, graças ao desempenho do escritor, que
soube/sabe buscar o respeito e a confiança dos que o cercam. O seu ponto de
vista ficcional induz o narrador, determina sua atuação, obriga-o a um papel
que o faça ser aceito pelos leitores. O narrador é sertanejo, o dono do narrar
nasceu sertanejo, tornou-se citadino e intelectual. A atuação do narrador sofre
o jugo do Artista, e este deseja pôr em prática uma verdadeira representação,
que seja um aviso, um alerta contra prováveis rupturas sociais.
Verifiquei,
com Goffman, que o Artista é manipulador da impressão que causa no leitor,
quando intenciona revelar o Sertão. O Sertão como um lugar que possui limites
como qualquer núcleo social. O narrador de A hora
e vez de Augusto Matraga, agente (ou intermediário ou alter ego)
do Artista, expõe um determinado Sertão, definindo também a situação desse
espaço. Mostra aos leitores a parte externa desse lugar como ele a vê. Vigia e
recria a região dos fundos,
impedindo-os que vejam a face decadente do antigo e heróico sertão mineiro,
submetido às imperfeições da modernidade. Impede, nesse espaço recriado, que os
leigos em Ciência da Literatura observem um sertão já há muito abalado pelas
investidas do progresso. Este tipo de representação (o da exposição dos valores
degradados da realidade sertaneja) não está nos impulsos criadores do Artista,
aquele que é proveniente de um espaço imaculado, localizado nas impressões da
infância. Advindo desse sertão, é natural que se torne membro ativo da equipe
de atores/personagens que o compõem. Por isso, a familiaridade do narrador, a
solidariedade para com os personagens, o desejo de ressaltar um determinado e
ímpar Sertão e guardar segredo absoluto das imperfeições que já existem
concretamente nesse espaço. O Sertão ficcional de Rosa é um universo particular
perfeito, circundado pela imperfeição do progresso. É lícito guardar segredo
das imperfeições modernas, que prejudicam a representação de um Sertão
idealizado, quase medieval. Assim, descobre-se o acordo tácito entre narrador e
leitor (ator e espectador). A recriação do sertão é verdadeira, porque
acredita-se nessa perfeição. O narrador sustenta essa credibilidade, define a
situação do sertão, que foi projetada no intuito de desvelar a face poética e
mística de uma anteriormente região incomum.
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