sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


II – um sertão inesquecível



Passo aqui a dialogar com os meus leitores: analisemos esta afirmativa: "o mundo em que vivo é o sertão"65. Evidentemente, ele não se refere ao mundo burguês, que se encontra longe do sertão, enquanto algo remanescente do mundo medieval. Fala do sertão que está dentro dele, de um mundo só dele, onde pode expressar-se sem falsos valores, único mundo no qual ele realmente é. Assim, sua literatura é autêntica, pois nasceu de sua verdadeira vida. Como indivíduo, que representa uma determinada classe social, não poderia jamais expressar-se como sertanejo, pois acarretaria a rejeição do grupo, que não o aceitaria em seu despojamento. Se a sociedade está organizada para projetar falsos valores, a saída de um homem sensível e inteligente é projetar os valores verdadeiros do sertão por meio da literatura, sem que, com isso, macule a impressão que o grupo social já formou a seu respeito. Valendo-se do narrador, impõe seu verdadeiro Sertão ao grupo que o cerca, manipula as impressões sobre o sertão, direciona o olhar deles, encena um espetáculo, em que o ato principal é realçar a grandeza de um espaço, que, de ordinário, não é muito valorizado. Pensemos, por exemplo, no falar do sertanejo, motivo de risos nas anedotas populares.

O narrador representa a face ficcional do Artista (ficção-arte). Se ele não pode demonstrar sua verdadeira aparência, a sua verdadeira maneira de ser, pois estaria incorrendo numa provável queda em seu status social, como indivíduo que se projetou positivamente diante de um determinado grupo, só mesmo a recriação de um outro mundo, seu verdadeiro mundo, para viver coerentemente a sua íntima realidade e se sentir autêntico.

Minhas personagens, que são sempre um pouco de mim mesmo, um pouco muito, não devem ser, não podem ser intelectuais pois isso diminuiria sua humanidade.66

Eis o conflito do sertanejo (oriundo de uma autêntica estrutura comunitária) que se tornou intelectual (ser solitário da individualizada sociedade moderna). Eis aqui um Artista cultíssimo, poliglota, mas distanciado de certos intelectuais.

(...) não suporto essas figuras intelectuais, das quais se espera que a qualquer momento lhes brotem da boca bolas de papel. Inteligência, prudência, como eu as interpreto, cultura elevada, tudo isto está bem, pois o escritor atual deve possuir todas estas qualidades. Mas não deve se transformar em um computador. Não deve abandonar as zonas do irracional, ou então deixa de produzir literatura e só produz papel. Flaubert, Dostoievski, eram sacerdotes da palavra; Zola, ao contrário, foi apenas um charlatão e, por isso, hoje, nada significa para nós, pois a necessidade que suas palavras expressam não existe mais. Assim acontece com todos os que ligam à necessidade do dia-a-dia o seu chamado compromisso e além disso não possuem as faculdades lingüísticas necessárias para poder fazer literatura.67

Este indivíduo da Entrevista já alcançou credibilidade diante do grupo e diante do mundo. Agora, ele pode desempenhar seus diversos papéis e, ao mesmo tempo, transmitir uma parcela de autenticidade que se incrusta em seu próprio ser (autenticidade de um homem nato de um mundo verdadeiro). Apesar das impressões que projeta para um determinado núcleo, pode dar-se a conhecer intimamente, porque já convenceu o grupo quanto à grandeza de seus vários papéis na vida. Assim sendo, não é ele que se encontra diante de um grupo para ser avaliado, já superou tal fase; o foco de avaliação parte dele em direção a um determinado grupo. Aquele que se projetou positivamente agora pode julgar esses indivíduos e, ao mesmo tempo, ser aceito. Claro está que essas figuras não se colocam numa posição depreciativa, simplesmente porque acreditam no papel que representam. Como diz Goffman, "somente um sociólogo ou uma pessoa socialmente descontente terão dúvidas sobre a 'realidade' do que é apresentado"68. O Artista, é uma pessoa socialmente descontente com tais indivíduos e pode, graças à interação positiva que emite, demonstrar seu descontentamento. Já se conscientizou da multiplicidade de seus papéis na vida e na ficção; não tem dúvidas quanto à realidade desses papéis e da aceitação do grupo (do mundo) quanto a sua atuação. Para que isto ocorresse, foi necessário recontar-se em várias narrativas e, como João, personagem do sertão, decalcar na literatura a sua verdadeira face, nata, não elaborada. "Às vezes quase acredito que eu mesmo, João, sou um conto contado por mim mesmo. É tão imperativo"69.

O escritor conta e reconta seu verdadeiro personagem, por intermédio de todos os personagens de seu mundo ficcional, porque todas as informações que o grupo buscou a seu respeito alcançaram credibilidade; apenas a sua verdadeira informação, a informação de suas raízes sertanejas, não pode aparecer explícita no seu dia-a-dia existencial. Já que o desejo de se revelar é autêntico, a ficção supera os obstáculos, faz o Artista encontrar-se intacto num mundo onde as aparências prevalecem, definindo positivamente uma situação de vida que, se realizada concretamente, seria paradoxal.

Escrevendo, ele desempenha um papel decisivo no sentido de influenciar o grupo, ou seja, seus leitores. Escrever é a representação do verdadeiro eu do Artista do século XX na vida cotidiana, cujo objetivo é alertar quanto à degradação do mundo hodierno, mundo que apenas realça valores externos e deteriorados. As situações reais ou insólitas são intencionalmente arquitetadas dentro do percurso narrativo, para demonstrarem a validade da modéstia e da simplicidade. O grande escritor, o médico, o soldado, o diplomata, o poliglota não exibe seus atributos intelectuais ostensivamente, prefere antes mostrar a sua autêntica humanidade de homem provindo do sertão. "A alquimia do escrever precisa de sangue do coração. (...). Para poder ser feiticeiro da palavra, para estudar a alquimia do sangue do coração humano, é preciso provir do sertão"70. A influência, portanto, é autêntica, graças ao desempenho do escritor, que soube/sabe buscar o respeito e a confiança dos que o cercam. O seu ponto de vista ficcional induz o narrador, determina sua atuação, obriga-o a um papel que o faça ser aceito pelos leitores. O narrador é sertanejo, o dono do narrar nasceu sertanejo, tornou-se citadino e intelectual. A atuação do narrador sofre o jugo do Artista, e este deseja pôr em prática uma verdadeira representação, que seja um aviso, um alerta contra prováveis rupturas sociais.

Verifiquei, com Goffman, que o Artista é manipulador da impressão que causa no leitor, quando intenciona revelar o Sertão. O Sertão como um lugar que possui limites como qualquer núcleo social. O narrador de A hora e vez de Augusto Matraga, agente (ou intermediário ou alter ego) do Artista, expõe um determinado Sertão, definindo também a situação desse espaço. Mostra aos leitores a parte externa desse lugar como ele a vê. Vigia e recria a região dos fundos, impedindo-os que vejam a face decadente do antigo e heróico sertão mineiro, submetido às imperfeições da modernidade. Impede, nesse espaço recriado, que os leigos em Ciência da Literatura observem um sertão já há muito abalado pelas investidas do progresso. Este tipo de representação (o da exposição dos valores degradados da realidade sertaneja) não está nos impulsos criadores do Artista, aquele que é proveniente de um espaço imaculado, localizado nas impressões da infância. Advindo desse sertão, é natural que se torne membro ativo da equipe de atores/personagens que o compõem. Por isso, a familiaridade do narrador, a solidariedade para com os personagens, o desejo de ressaltar um determinado e ímpar Sertão e guardar segredo absoluto das imperfeições que já existem concretamente nesse espaço. O Sertão ficcional de Rosa é um universo particular perfeito, circundado pela imperfeição do progresso. É lícito guardar segredo das imperfeições modernas, que prejudicam a representação de um Sertão idealizado, quase medieval. Assim, descobre-se o acordo tácito entre narrador e leitor (ator e espectador). A recriação do sertão é verdadeira, porque acredita-se nessa perfeição. O narrador sustenta essa credibilidade, define a situação do sertão, que foi projetada no intuito de desvelar a face poética e mística de uma anteriormente região incomum.


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