NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
Muitos
exemplos são oferecidos na Introdução de Goffman, mas o que fica claro é a
idéia de que o processo de comunicação do indivíduo é semelhante ao desempenho
do ator: há encobrimentos e descobrimentos, revelações falsas e redescobertas,
e, como ator, o sujeito manipula o próprio comportamento, transmite
espontaneidade e segurança, observa as reações que desperta. Nesse momento de
observação, levará vantagem sobre o ator, influenciando e dominando os que se
encontram em sua volta. Destaca também a possibilidade de posteriores
contradições, em relação às posições iniciais dos diversos participantes.
Durante o percurso da influência, poderão desenvolver-se situações embaraçosas,
que tornarão o indivíduo-ator desacreditado diante do grupo-platéia, mesmo
sendo ele, nesse momento, o indutor da análise. Quando tal situação ocorre, a
"interação face a face entra em colapso"59. Ao falar de projeção, realça o fato de que "não devemos passar por cima do
fato essencial de que qualquer definição projetada da situação tem também um
caráter próprio"60, ou seja, qualquer definição projetada procura ressaltar o
caráter moral das projeções.
A sociedade
está organizada tendo por base o princípio de que qualquer indivíduo que possua
certas características sociais tem o direito moral de esperar que os outros o
valorizem e o tratem de maneira adequada.61
Evidentemente,
esse indivíduo não se considera pequeno dentro da escala social, porque a
própria sociedade já o avaliou e o aceitou. É correto salientar que há vários
graus de aceitabilidade dentro da escala social. Mesmo sem saber em que patamar
se encontra, se ele já se considera melhor,
e a sociedade o acolhe, certamente, graças à organização social, esse indivíduo
espera que o valorizem e o tratem de maneira especial.
Há,
ainda, o indivíduo que projeta a impressão de possuir certas características
sociais. Esse indivíduo terá de demonstrar possuir de fato tais
características, se quiser conquistar o respeito do grupo. Penso que, mesmo
possuindo tais atributos, mesmo tentando demonstrar ser o que é, se não
convencer o grupo, jamais será aceito. Se ele deseja ser o que realmente é, sem
falsos atributos, será tratado de acordo com o que projeta sobre si mesmo, ou
seja, não será valorizado, porque o grupo não o aceitará em seu despojamento. A
sociedade está organizada para projetar falsos valores, e os indivíduos que a
compõem são guiados no sentido de os projetarem também.
Para
evitar tais embaraços, há práticas
preventivas. Dentro dessa categoria, há as práticas corretivas, que são empregadas no sentido de corrigir as
"ocorrências desabonadoras que não tenham sido evitadas"62. Quando
isto acontece, a prática corretiva
passa a ser denominada prática defensiva;
o sujeito da ação se defende, procurando corrigir a ocorrência desabonadora. Há
também a chamada prática protetora.
Nesse caso, um outro sujeito, participante do grupo, procura proteger o
indivíduo, resguardando-o de uma possível má impressão.
Goffman
fecha suas teorizações, demonstrando que, para evitar possíveis rupturas,
pré-existem nos grupos sociais "brincadeiras e jogos nos quais são
intencionalmente arquitetadas situações embaraçosas que não devem ser levadas a
sério"63.
Há um estoque de fantasias e contos, cujo teor serve de aviso, procurando
alertar os indivíduos, persuadindo-os a serem modestos em suas pretensões.
Como já
observei no início, Goffman só realça seu objetivo de trabalho no final da
Introdução, na página vinte e três. Depois de desenvolver implicitamente tal
objetivo, ou seja, todas essas questões que foram recuperadas até agora, ele
define claramente a sua matéria teórica. A interação face a face é a influência
recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros, é o encontro, ou por outra, é o embate que
se faz presente, quando dois ou mais indivíduos se encontram face a face.
Desempenho, para Goffman,
é definido "como toda atividade de um determinado participante, em dada
ocasião, que sirva para influenciar qualquer um dos participantes"64. Assim, desempenho é a representação
propriamente dita. É a representação do
eu na vida cotidiana. É o indivíduo procurando pôr em prática uma
determinada atuação diante de uma determinada platéia. É o indivíduo representando
um papel que o faça ser aceito pelo grupo, que o faça obter impressões
positivas desse grupo, que o observa e julga.
No
capítulo dedicado às representações,
ou seja, o papel que o indivíduo representa diante de um grupo, Goffman compara
tal atitude com a representação do ator frente à platéia. Fala de fachadas, dramatizações, idealizações,
representações falsas, mistificações, realidade e artifícios.
Minha
propedeutica é sobre o Artista e o texto literário; evidentemente, não pretendo
analisar o comportamento humano dentro de uma perspectiva antropológica ou
social, detenho-me no comportamento dos personagens ficcionais, refletores de
atitudes humanas e, muito especialmente, intento observar o comportamento de um
determinado personagem da narrativa A hora
e vez de Augusto Matraga: o narrador. O narrador aqui é o meu
objeto de análise (ou sujeito) e, segundo minhas teorizações, atua com muito
poder dentro da narrativa, delegando ao personagem Augusto Matraga a função de
coadjuvante. Utilizando-me das idéias de Goffman, quero ressaltar que esta
aproximação não é aleatória, se penso que efetivamente o narrador roseano
possui uma dupla feição: é um ser social,
na dialética da comunhão e do conflito com seu espaço substancial, portanto, ser histórico, graças a sua função de outro eu do Artista e, ao mesmo tempo, participante ativo da realidade ficcional,
participante de um determinado núcleo social, envolvido na movimentação das
seqüências evolutivas desse mundo. O narrador, usando os postulados de Goffman,
funcionaria como máscara, encobrindo
a verdadeira face do Artista, aquela que se localiza na infância, na qual se
encontram as bases de sua estrutura de vida. O narrador como mediador de duas
realidades, ansioso por não transgredir a perfeição do sertão, observando-o com
os olhos da recordação, mas impotente em relação a si mesmo, ser fragmentado
que é, espectador de um mundo decadente, testemunha da degradação da sociedade
burguesa, ainda que sertaneja.
Não
estou, neste exame teórico-crítico da matéria ficcional de Guimarães Rosa,
analisando o comportamento humano, mas não aceito furtar-me a analisar,
hipoteticamente, o comportamento do Artista Literário, pelo prisma de seu eu
ficcional. Penso no Artista como um cidadão contemporâneo, viajado, culto, cosmopolita,
todos os atributos que o fazem respeitado diante de um determinado núcleo
social, projetando uma boa impressão, manipulando as inferências do grupo,
demonstrando possuir grande influência ante os outros, visto que alcançou altas
honrarias na escala social, graças ao desempenho de seus diversos talentos:
médico, soldado, diplomata. Entretanto, esse Artista é nato de um mundo não
valorizado pela sociedade elitista; suas origens estão no sertão mineiro
(sertão ainda rude); em sua concretude, ainda não-poetizado. Há colisão,
choque, conflito, diferentes forças que atuam em seu próprio íntimo, enquanto
singularidade ativa do seu núcleo social, inseparável da ação do mundo que o
cerca. Esse Artista de criativos textos ficcionais, enquanto indivíduo, conhece
o papel que representa diante da sociedade; sua inteligência o direciona no
sentido de que o grupo o leve a sério em sua atuação. Mas, e o sertão da
infância, localizado em suas recordações mais importantes? E o Sertão, casa
íntima do Artista? Aquele Sertão que não se esquece, aquele Sertão da Entrevista
ao crítico Lorenz, em que o sertanejo/citadino
Guimarães Rosa afirma que leva o sertão dentro dele e que o mundo em que vive é
também o sertão.
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