segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


II – um sertão inesquecível

II.1 - Sertão: Casa da Infância



E Nhô Augusto pegou a cantar a cantiga, muito velha, do capiau exilado: "Eu quero ver a moreninha tabaroa, arregaçada, enchendo o pote na lagoa..." Cantou, longo tempo. Até que todas as asas saíssem do céu.29

Asas conotando pássaros. Asas impondo ao leitor a visualização da grandiosidade do espetáculo do bando de maitacas, maracanãs, tuins e outros diversos pássaros voando em direção ao sul, em períodos cíclicos.

Outro estranhamento: depois que os pássaros passam, Nhô Augusto raciocina: Não passam mais... Ô papagaiada vagabunda! Já devem estar longe daqui... Logo a seguir, observa-se a perplexidade do próprio narrador, induzido evidentemente pelo Artista: Longe, onde?, se não há distâncias no mundo ficcional.

Longe, onde? O Sertão não se encontra imobilizado no passado, como algo que já sofreu um processo de transformação e ficou para trás. O Sertão é um lugar em permanente movimentação no íntimo do narrador, porque está vivo. Os pássaros passam em bandos, agitados, barulhentos, presentes, habitantes de uma região insólita, onde o tempo não estacionou, mas também não se delimita em passado, presente e futuro. Não são as experiências do homem que contam nesta evocação, são as experiências da infância (Sertão: casa da infância); são as recordações da infância que mantêm vivo esse espaço de sonhos, onde o tempo permaneceu intocável nos subterrâneos de uma memória privilegiada. Não é o passado como uma soma de acontecimentos diversos, repositório de atitudes éticas e de normas de vida para os pósteros. É o passado comunitário, resgatado como antítese de um presente que se movimenta rapidamente em direção à futura desintegração do mundo moderno.

Quero ir namorar com as pequenas, com as morenas do Norte de Minas...
Mas, ali mesmo, no sertão do Norte, Nhô Augusto estava. Longe, onde, então?30

Longe, onde? Não há uma ordem pré-estabelecida, não há tempo e espaço detectáveis. A linguagem roseana transgride o curso e equilíbrio da realidade padronizada, obrigando o leitor a aceitar valores temporais embaraçados, superposições espaciais; artifícios imagísticos só percebidos sob a égide de uma leitura direcionada e especulativa. Espaço e tempo diferentes, elementos anticonvencionais de uma estrutura sem medidas, que não possuem vínculos com o relógio do tempo vital. Assim, o narrador se surpreende com suas próprias confusões temporais e espaciais. Seu personagem se encontra no sertão do Norte e, graças à cantiga muito velha do capiau exilado, deseja ir para o Norte, para namorar as morenas do Norte de Minas.

Pois não aconteceu que, um belo dia, eu simplesmente decidi me tornar escritor. Não veio por si mesmo; cresceu em mim o sentimento, a necessidade de escrever e, tempos depois, convenci-me de que era possuidor de uma receita para fazer verdadeira poesia.31

Os pássaros voando; os espaços superpostos; o aqui e o acolá do Norte de Minas; a sobrevivência de instantâneos mágicos da infância; a sustentação do devaneio, evocações; o olhar poderoso do Artista de transição para a pós-modernidade (técnica do olhar), expressando uma visão diferenciada do sertão; uma linguagem estranha, propiciando uma ininterrupção temporal e espacial, insolitamente decalcada nos subterrâneos das recordações.

O Artista manipula o resgatar dos sentimentos que saem de si. Por isto, a superabundância de símbolos, de imagens, invenção de novas palavras, retomada de valores léxicos que não condizem com as normas estabelecidas. O passado acabado é resgatado pelo presente inacabado, sem sofrer desgastes, emanando uma luminosidade gerada pelo poder das líricas evocações.

Não sou romancista; sou um contista de contos críticos. Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a ficção poética e a realidade.32

Prosa repleta de Poesia, porque "a poesia é uma metafísica instantânea"33. Somente a poesia transcende os limites da realidade vivida. Prosa que almeja recuperar segredos poéticos, seguindo o tempo e, ao mesmo tempo, imobilizando-o por meio do devaneio criador. Não há somente métodos e provas que ressaltem o aspecto ficcional; há muito mais, porque há a "necessidade de um prelúdio de silêncio"34, sustentando a poética do narrador. A narrativa encadeada não revelaria as minúcias De um lugar idealizado; o narrador, valendo-se da ficção poética, impede que se duvide da veracidade dessas lembranças, impõe um Sertão imaculado, localizado nas impressões da infância, guardando segredo absoluto das imperfeições que existem no sertão mineiro, já deteriorado pelos males da modernidade.

Por estas razões, os pássaros voam permanentemente dentro do devaneio criador do Artista, enquanto seu narrador faz longos questionamentos verticalizantes. Os pássaros voando estão dentro do tempo psicológico e perceptivo do tempo do pensamento, e as perguntas sem sentido narrativo são na verdade palavras ocas, reveladoras de "instantes poéticos", que "fazem calar a prosa e os trinados que deixariam na alma do leitor uma continuidade de pensamento ou de murmúrio"35. Não há padrões narrativos que impeçam o decalque no texto desse tempo interior e diferente. A memória é insuficiente para resgatar velhos valores sertanejos, e há vazios imensos, necessitando de preenchimentos que sustentem a verdade das recordações. Os pássaros da casa-Sertão voam permanentemente dentro das lembranças do Artista, fazem alaridos e brincadeiras, porque as sensações felizes da infância impõem continuidade ao tempo imobilizado do passado, incoerentemente móvel dentro da imobilidade do instante poético. Não há métodos e provas, porque o Artista destruiu as ligações com a objetividade da História, para construir uma narrativa poética e complexa, presa a um tempo que se encontra dentro de uma idealizada subjetividade. Tempo detido, tempo que não segue a medida, tempo vertical, segundo as concepções filosóficas bachelardianas, mas também tempo fluídico e abstrato e, paradoxalmente, em permanente movimento.


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