NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
E Nhô Augusto
pegou a cantar a cantiga, muito velha, do capiau exilado: "Eu quero ver a
moreninha tabaroa, arregaçada, enchendo o pote na lagoa..." Cantou, longo
tempo. Até que todas as asas saíssem do céu.29
Asas conotando pássaros. Asas impondo ao leitor a visualização da grandiosidade do
espetáculo do bando de maitacas, maracanãs, tuins e outros diversos pássaros
voando em direção ao sul, em períodos cíclicos.
Outro
estranhamento: depois que os pássaros passam, Nhô Augusto raciocina: Não passam mais... Ô papagaiada vagabunda!
Já devem estar longe daqui... Logo a seguir, observa-se a perplexidade do
próprio narrador, induzido evidentemente pelo Artista: Longe, onde?, se não há distâncias no mundo ficcional.
Longe, onde? O Sertão não
se encontra imobilizado no passado, como algo que já sofreu um processo de
transformação e ficou para trás. O Sertão é um lugar em permanente movimentação
no íntimo do narrador, porque está vivo. Os pássaros passam em bandos,
agitados, barulhentos, presentes, habitantes de uma região insólita, onde o
tempo não estacionou, mas também não se delimita em passado, presente e futuro.
Não são as experiências do homem que contam nesta evocação, são as experiências
da infância (Sertão: casa da infância); são as recordações da infância que
mantêm vivo esse espaço de sonhos, onde o tempo permaneceu intocável nos
subterrâneos de uma memória privilegiada. Não é o passado como uma soma de
acontecimentos diversos, repositório de atitudes éticas e de normas de vida
para os pósteros. É o passado comunitário, resgatado como antítese de um
presente que se movimenta rapidamente em direção à futura desintegração do mundo
moderno.
Quero ir
namorar com as pequenas, com as morenas do Norte de Minas...
Mas, ali mesmo,
no sertão do Norte, Nhô Augusto estava. Longe, onde, então?30
Longe, onde? Não há uma
ordem pré-estabelecida, não há tempo e espaço detectáveis. A linguagem roseana
transgride o curso e equilíbrio da realidade padronizada, obrigando o leitor a
aceitar valores temporais embaraçados, superposições espaciais; artifícios
imagísticos só percebidos sob a égide de uma leitura direcionada e
especulativa. Espaço e tempo diferentes, elementos anticonvencionais de uma
estrutura sem medidas, que não possuem vínculos com o relógio do tempo vital.
Assim, o narrador se surpreende com suas próprias confusões temporais e
espaciais. Seu personagem se encontra no sertão
do Norte e, graças à cantiga muito
velha do capiau exilado, deseja ir para o Norte, para namorar as morenas do
Norte de Minas.
Pois não
aconteceu que, um belo dia, eu simplesmente decidi me tornar escritor. Não veio
por si mesmo; cresceu em mim o sentimento, a necessidade de escrever e, tempos
depois, convenci-me de que era possuidor de uma receita para fazer verdadeira
poesia.31
Os
pássaros voando; os espaços superpostos; o aqui e o acolá do Norte de Minas; a sobrevivência de instantâneos mágicos da
infância; a sustentação do devaneio, evocações; o olhar poderoso do Artista de
transição para a pós-modernidade (técnica do olhar), expressando uma visão
diferenciada do sertão; uma linguagem estranha, propiciando uma ininterrupção
temporal e espacial, insolitamente decalcada nos subterrâneos das recordações.
O
Artista manipula o resgatar dos sentimentos que saem de si. Por isto, a
superabundância de símbolos, de imagens, invenção de novas palavras, retomada
de valores léxicos que não condizem com as normas estabelecidas. O passado
acabado é resgatado pelo presente inacabado, sem sofrer desgastes, emanando uma
luminosidade gerada pelo poder das líricas evocações.
Não sou
romancista; sou um contista de contos críticos. Meus romances e ciclos de
romances são na realidade contos nos quais se unem a ficção poética e a
realidade.32
Prosa
repleta de Poesia, porque "a poesia é uma metafísica instantânea"33. Somente a
poesia transcende os limites da realidade vivida. Prosa que almeja recuperar
segredos poéticos, seguindo o tempo e, ao mesmo tempo, imobilizando-o por meio
do devaneio criador. Não há somente métodos e provas que ressaltem o aspecto
ficcional; há muito mais, porque há a "necessidade de um prelúdio de
silêncio"34,
sustentando a poética do narrador. A narrativa encadeada não revelaria as
minúcias De um lugar idealizado; o narrador, valendo-se da ficção poética, impede que se duvide da veracidade dessas
lembranças, impõe um Sertão imaculado, localizado nas impressões da infância,
guardando segredo absoluto das imperfeições que existem no sertão mineiro, já
deteriorado pelos males da modernidade.
Por
estas razões, os pássaros voam permanentemente dentro do devaneio criador do
Artista, enquanto seu narrador faz longos questionamentos verticalizantes. Os
pássaros voando estão dentro do tempo psicológico e perceptivo do tempo do
pensamento, e as perguntas sem sentido narrativo são na verdade palavras ocas, reveladoras de
"instantes poéticos", que "fazem calar a prosa e os trinados que
deixariam na alma do leitor uma continuidade de pensamento ou de murmúrio"35. Não há
padrões narrativos que impeçam o decalque no texto desse tempo interior e
diferente. A memória é insuficiente para resgatar velhos valores sertanejos, e
há vazios imensos, necessitando de
preenchimentos que sustentem a verdade
das recordações. Os pássaros da casa-Sertão voam permanentemente dentro das
lembranças do Artista, fazem alaridos e brincadeiras, porque as sensações
felizes da infância impõem continuidade ao tempo imobilizado do passado,
incoerentemente móvel dentro da imobilidade do instante poético. Não há métodos e provas, porque o Artista
destruiu as ligações com a objetividade da História, para construir uma
narrativa poética e complexa, presa a um tempo que se encontra dentro de uma
idealizada subjetividade. Tempo detido,
tempo que não segue a medida, tempo vertical, segundo as concepções
filosóficas bachelardianas, mas também tempo fluídico e abstrato e,
paradoxalmente, em permanente movimento.
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