Depois que eu me separei de Val penso que a vida está
acabada. Não podia amar o amor, aquela doença, meu relacionamento com Val, o
fantasma. Eu tinha ido lá, ver o fantasma. Tinha ido até lá, a porta da cozinha
em frente de onde eles se encontravam, passava a mão sobre sua cintura,
mordendo-a suavemente o ventre, mas a porta ameaçou abrir, estava sendo aberta,
uma prosaica chave começou a ser introduzida na fresta, seria surpreendido ali,
ele, um nome, uma legenda, ele, como ainda me lembro de tudo isso? vitima de
uma Val que estava em minha vida como uma alucinação, um convite ao prazer, ao
mais louco prazer, em sua vida, fonte máxima, única, ela era um vivo convite à
vida, a porta, os azulejos brancos, duas pias do lado da geladeira. A beleza, a
beleza acompanha o tempo.
No barco,
na lua de mel, ainda chove persistente, a voz era como sempre clara e dizia que
ouviriam uma certa música, sim, para não nos afogarmos naqueles golfões de
sentimento maciço, mole, gosmento. Não, não nos afogaremos nesse mar, não nos
afogaremos dentro do fundo de nós mesmos.
Não no
barco, esmagada, não, mas na cozinha, com Val, a eterna, a porta se abre, a
polícia se apodera do que tinha sido aquela casa, eles estão fora, jogam o
conteúdo fora, foram engolidos pelo silêncio? fugiram dali? Val, a ativista, a
nova liberdade de viver é assim? Todo o meu empenho é vão, todo o meu empenho
para que nada aconteça a ela, desde minha juventude eu assim jogo tudo, joguei
tudo na mesa verde da via do destino, a vida, a família, e era ela, fugimos
dali, que valia tudo diante dela? de que valia tudo isso?
A
revolução, a ditadura militar vitoriosa, nos colocava na clandestinidade. Fomos
parar numa estação de trem do subúrbio, distante, onde ela morava, olhando a
planície com desânimo, quase uma centena de pessoas esperava a vinda do trem.
Ali mesmo, naquela zona, passavam soldados sem destino, rapazes distraídos
entre gritos de vendedores de balas.
Palavras.
Palavras entrecortadas. Curiosa angústia. Eu ponho tudo em jogo, eu não estou
com ela. Que faço aqui? Novo grupo de policiais acaba de chegar, as imediações
são um campo de guerra, um campo selvagem. Quando a porta se abriu, nós nos
precipitamos pela saída dos fundos. Eu ainda pensei que a porta resistiria, mas
cedeu de vez, uma invasão começou. Depois começa a lavrar o incêndio. Armários
despencam aos tiros, granadas, rebentam estrondos. "Sim, fui uma juventude
agredida", disse Val, anos depois. O silêncio aquece o inverno longo. Você
coloca sua marca, a marca de seus dedos em tudo o que faz. Você traz no corpo o
seu sinal.
Na estação,
o garoto olha para trás, e corre, assustadíssimo. A fome passa. Estou bem
disposto, a viagem de trem me reanima, a vida volta a seus trilhos, volta ao
natural. Sinto-me de novo participante, cidadão, digo que isso é passageiro.
Não sei dar linearidade a esta narrativa, ela Val-se desenrolando de dentro – a
sua ordem é desordem, parece impossível, fico diante do que sai de minhas
lembranças, fico impotente, sob flashes atordoantes. Os olhos dela me chegam,
me abraçam. Às vezes, penso que é ela quem me reencontra, seu fantasma comigo —
a minha morte — um salto surpreendente. Eu tenho de usar de muita habilidade
para prosseguir o tema doloroso, o tema fundamental, o propósito verbal de
minha existência devastada, não mais estando disposto à lastimação solitária de
origem. Minha lembrança. Recebo minha lembrança no seio de sua vacuidade. A
emancipação desaparece, por momentos. Mas nada pode ser dito. Vivo disto.
Sobrevivo disto. Vivi com o principal de meus dias de paz. «Quem colhe o mel
dos deuses», diz a voz, «não mais se cura». Sei que amanha acordo melhor. Bela
sensação de claridade, de espaço, daquele espaço em que passamos nossos corpos
e nos estabelecemos — quero abraçar este espaço — rematar o real nele contido -
recortá-lo para o recriar. Hei de contar, de cantar a mais bela canção de amor
aqui, mais bela que alguém já pode viver. Val me telefonou dizendo que
Ricardo... Mas isso resiste à clareza de uma narração, de uma explicação, tenho
de avançar a palmo. Com teimosia, mas com cautela. Estou perdido. Melhor seria
se eu pudesse logo contar certos detalhes, tornar seguro o caminho. A situação
está na reta final. Mas não, não há mais ninguém, senão você, vem você, você
prossegue, sim. Todos se colocaram na ausência. Sinto-me ainda na ilha,
mergulho para esquecer, deixar para trás o som de suas praias, sempre nos meus
ouvidos. Não, devo clamar, duvidar. Naquele tempo vivia numa ilha. Lá estava
Val, também. Tínhamos uma casa na ilha. O principal de mim estava lá. Eu amava
ou não tinha outra escolha. Ali era um ser todo dissolvido — um ser úmido, onde
os sentimentos mais estranhos assustavam, assaltavam, chegavam com seu trânsito
nervoso, a violentação de suas multiplicidades — de não sei quantos desagradáveis
motivos nervosos difíceis de aturar.
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