NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
As
máscaras primordiais e ficcionais do universo da primeira fase criativa são a
garantia de segurança emocional do Artista sertanejo que convive com os valores
da modernidade. Disfarçado de narrador do sertão, ou mesmo diluído em seus
personagens, ele retoma seu mundo de origem e se protege das prováveis críticas
depreciadoras. Essas máscaras, que garantem sua segurança emocional no mundo
moderno, têm a vantagem de se situar num plano diferente do plano da história
contínua. A máscara virtual, diferente da máscara real, que "não se engaja
verdadeiramente num processo de dissimulação"46, que é a pura negatividade do ser,
que permite o mascarar-se ou ser desmascarado, na fenomenologia do ser que se
dissimula, representa o desejo de alcançar a segurança total da máscara.
Enquanto diversas máscaras habituais,
são "incessantemente tomadas e retomadas, sempre incoativas"47, sempre
prontas a um novo começo de proteção. O ficcionista, indiscutivelmente
criativo, se protege das situações insólitas do cotidiano moderno, recriando o
sertão da infância e todos os seus habitantes. Esses habitantes do sertão,
recriados, são partículas íntimas de seu interior sertanejo. A dissimulação do
Artista Literário, sertanejo e pós-moderno, é uma conduta intermediária,
oscilando entre o oculto e o visível. O Artista se oculta nos meandros de sua
infindável narrativa, ou seja, em todas as suas narrativas da fase criativa, ao
mesmo tempo em que revela sua face verdadeira.
Posteriormente,
mostrando o sertão da infância, já transmutado pela matéria poética das
recordações, ele se sente intimamente protegido e reconfortado. Ele agora está
confortavelmente instalado no cogito(3) da individualidade
consciente e não pretende ultrapassar esse limite, que ainda possibilita uma
saudável convivência com o grupo da alta intelectualidade. Subir mais um degrau
seria ultrapassar os limites vitais e se projetar no vazio da pura
espiritualidade, seria propiciar uma cisão irreversível com o mundo dos valores
aceitáveis, o mundo dito normal. Logo, é um indivíduo ainda aceito pelo grupo,
ainda não marginalizado, que se vislumbra na última fase, mesmo apreendendo-se,
nesta última fase, narrativas de alto teor de insolidez, tais como "Meu
tio, o Iawaretê", "Reboldra", "Mais meu Sirimim" e
outras que compõem o corpus de Essas histórias, Tutaméia
e Ave, palavra.
Os
personagens da primeira fase criativa (não estou a referir-me à primeira fase
ligada à imaginação formal, imaginação linear, registrada nas narrativas de Sagarana, excetuando-se
naturalmente a última narrativa A hora
e vez de Augusto Matraga) fornecem a máscara primordial do ficcionista do sertão. É sua fisionomia de homem do
sertão que se encontra dissimulada ao longo das narrativas A
hora e vez de Augusto Matraga e Grande
Sertão: Veredas; são suas vivências primeiras que se destacam e
se escondem; são fatos acontecidos e desrealizados pela ação do tempo, mas
poetizados no plano das recordações e dos sonhos
bem sonhados. A hora e vez de Augusto
Matraga e Grande Sertão: Veredas marcam um
momento de mudança narrativa, revelando a relação de profunda integração do
escritor com sua obra e, por acréscimo, com o sertão material.
As máscaras são
sonhos fixados e os sonhos são máscaras fugazes em movimento, máscaras fluidas
que nascem, representam sua comédia ou seu drama, e morrem.48
Para
penetrar-se "na zona onde os acordos são incessantes"49, ou seja,
ao centro no qual se desenvolve a verdadeira dialética da simplificação e da
multiplicidade, segundo Bachelard, é necessário juntar a máscara inerte ao
rosto vivo. O rosto vivo fornece os traços da fisionomia, possibilita a
interpretação da máscara virtual, e o ato de interpretar a máscara virtual
obriga o intérprete a penetrar numa dimensão diferente, na qual a formação da
idéia e a sua representação "permutam infindavelmente suas ações"50.
Na fase
seguinte, a partir de Primeiras
estórias, a dialética da verdade e não-verdade se instaura nos
escritos de Guimarães Rosa. Verdade e fantasia se misturam sob os ditames dos
sonhos poéticos-ficcionais. Os personagens (verdades de um sonhador eu sertanejo) são máscaras profundamente sentidas pelo ficcionista
e transmitidas ao leitor, compactuador e colaborador de seu ato de narrar;
assim, são máscaras virtuais ativas, recriadas nos momentos de repouso fervilhante e
concretizadas no instante seguinte da consciência singular, livres das
conceituações do tempo vital. Essas máscaras
ativas, ficcionais, se adaptam ao demiurgo que as criou, pois este, à
semelhança do psiquiatra que "deve viver a máscara do doente, como deve
viver os sonhos do doente"51, deve ele também viver a máscara de seus
personagens, como deve viver também os sonhos dos personagens.
Nessa
zona intermediária, o demiurgo detectou sua própria realidade psíquica de homem
que se quer sertanejo. Servindo-se da ficção, reformou e formou sua própria
máscara virtual, ou seja, o rosto, verdadeiro, do sertanejo que poderia ter sido no âmbito das probabilidades de
vida; extraiu do passado, pela imaginação, verdades que estavam escondidas;
pode transformar essas verdades em discurso ficcional, recriando as imagens do
coronel autoritário, dos jagunços animalescos, ou mesmo, do cidadão do sertão, oscilando entre o
primitivo e a pós-modernidade.
Que nos seja
permitido assinalar de passagem a importância de uma fenomenologia do
artificial. O ser que quer o artifício tem necessidade de uma tomada de
consciência muito nítida. Essa tomada de consciência é tanto mais vigorosa
quanto mais fluente é seu objeto. No problema do ser que se dissimula vê-se em
ação a manutenção de uma consciência de dissimulação. Deve-se reconhecer, pois,
nas interpretações de máscaras, maior estabilidade do que em outros fantasmas.52
Oferecer
autenticidade ao artificial e inseri-lo no mundo dos fenômenos exige capacidade
criativa. A criação literária, para manifestar-se com grandeza, necessita de um
talento criativo extraordinário, reformulador de suas próprias realidades
psíquicas. O Artista (aquele produtor de autêntica Arte Literária), agora
indivíduo consciente, não aceita mais a convivência insossa com suas máscaras
reais. Retomar ficcionalmente o rosto primitivo, diluindo-o em seus
personagens, é um exercício de poder. É o poder daquele que se retrocede
ficcionalmente ao passado e retoma o início de sua trajetória de dissimulação.
Recupera conscientemente a máscara virtual, retirando-a do passado sob a forma
de narrativa, e fragmenta-a em diversas novas máscaras. Cada personagem revela
parcialmente um pouco do que foi visto e vivenciado nas origens. Cada
personagem é parte viva de suas primeiras e verdadeiras realidades psíquicas. O
Artista tem plena consciência dessa nova e intermitente dissimulação de seu
próprio eu. Todos os seus personagens são partículas vivas de seu íntimo, por
conseguinte, eles também, máscaras virtuais, passíveis de alcançarem vida estável no plano das probabilidades
fenomênicas.
Em meio
a suas diversas máscaras sociais, quis (e conseguiu) retomar o rosto da
infância, com a colaboração da Arte Literária. Com esta atitude,
refortaleceu-se socialmente, idealizando o sertão, recuperando-o sob novas
imagens, fornecendo novos traços decisivos para a fisionomia do sertanejo
secularmente rejeitado na hierarquização social.
A máscara nos
ajuda a afrontar o futuro. É sempre
mais ofensiva do que defensiva. (...) Se forçarmos um pouco as relações entre a
figura e o rosto, se integramos a
máscara, parece que a máscara pode ser a decisão de uma vida nova. Ela
liquidaria de uma vez o ser que se oculta. Seria um motivo para afirmar uma
segunda vida, um renascimento. Ainda que se examine o problema de muitas
maneiras, é necessário chegar à mesma conclusão: a máscara é um instrumento de
agressão; e toda agressão é uma atuação sobre o futuro.53
No
decorrer da Entrevista ao alemão Günter Lorenz, Guimarães expõe suas
convicções genuinamente verdadeiras. A retomada de seu antigo rosto, sustentada
na sua criação literária, conscientizou-o de seu poder individual. Agora, o ser
especial, oriundo de um pequeno burgo do sertão, não necessita defender-se do
grupo citadino debaixo de diversas máscaras sociais. O escritor (médico,
diplomata, soldado, poliglota e outros diversos talentos) sabe que já está
temporalmente afastado de suas origens, mas sabe também que já adquiriu o
direito de se nomear sertanejo, orgulhosamente afrontando um grupo de intelectuais pernósticos, que, segundo suas
próprias palavras, só sabem transmitir “bolas de papel”54. Nesta vida nova, já conceituado pela elite sócio-intelectual e,
inclusive, por esse mesmo grupo que finge
não perceber a agressão do Artista, liquida
de uma vez o que buscou ocultar em anos de convivência com o mundo
citadino. Afirma assim uma nova vida, um renascimento, uma adesão aos planos
superiores da pura individualidade.
REPRESENTAÇÃO DO ARTISTA
Na
introdução de A REPRESENTAÇÃO DO EU NA VIDA COTIDIANA, Erving Goffman55, teorizando
sobre o ponto de vista do grupo em relação ao indivíduo, informa que seu
objetivo é definir a interação (influência) face a face, "a influência
recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros, quando em presença
física imediata"56. Diz ainda que "uma interação pode ser definida como toda
interação que ocorre em qualquer ocasião, quando, num conjunto de indivíduos,
uns se encontram na presença imediata de outros"57. Goffman realça o objetivo
já no final da Introdução, depois de desenvolvê-lo implicitamente ao longo do
conteúdo introdutório.
Antes,
já informara sobre a atuação do indivíduo na presença de outros e que os
outros, ao se aproximarem do indivíduo, procuram saber o máximo a seu respeito,
interesses gerais, tais como se possui uma boa situação sócio-econômica, o que
pensa de si e dos que o rodeiam, se é confiável. Essas informações, segundo o
autor, definem a situação do indivíduo perante os outros e dos outros ante o
indivíduo. É nesse momento que a interação será definida. Caberá ao indivíduo,
que, no momento, se encontra sob suspeita, influenciar positivamente ou não o
grupo que o examina. De acordo com a atitude do examinado, os examinadores se
convencerão ou não da validade dos esforços pessoais para se fazer admirado ou
respeitado. A impressão positiva é importante nesse momento de influência face a face, porque é
exatamente nesse momento que os outros confiarão na informação que o sujeito
procura transmitir. Portanto, expressão
e impressão do e sobre o indivíduo
são fatores prioritários para que o grupo infira positivamente e confie nele.
Para que receba confiança, o examinado terá de expressar-se convincentemente,
mesmo que, no fundo, transmita informações falsas. A influência face a face
necessita de expressões que convençam. O sujeito emitirá tais expressões, mesmo
que sejam falsas. Tais dissimulações são atitudes típicas do ator, que procura
se utilizar das expressões que emite. A expressão transmitida se vale da
comunicação, e esta se faz quando o indivíduo se encontra na presença de
outros, transmitindo confiança ou rejeição, de acordo com as deduções do grupo.
Procurando explicar melhor, Goffman divide a expressividade do indivíduo em
duas categorias opostas: expressão que transmite e expressão que emite. Dentro
da categoria da expressão que emite,
estariam as dissimulações próprias do ator; na categoria da expressão transmitida, estariam as
fraudes, abrangendo os símbolos verbais, usados propositadamente no intuito de
transmitir impressões falsas.
Goffman,
num segundo momento da Introdução, muda o pólo de concentração de sua tese,
deslocando-se para o ponto de vista do indivíduo. Antes, teorizara sobre o
ponto de vista do grupo. Por este ângulo, o indivíduo que se encontra diante do
grupo, examinado pelo grupo, "pode desejar que pensem muito bem dele, ou
que pensem estar ele pensando muito bem deles, ou que não cheguem a ter uma
impressão definida"58; pode trapacear, confundir, induzi-los a erro. Conscientemente, o sujeito direciona as atitudes
do grupo em relação a si mesmo, manipula as inferências do grupo, demonstra possuir
grande influência ante os outros e, conseqüentemente, (segundo minhas deduções)
terá aos poucos como demonstrar poder.
Falando
ainda sobre expressões transmitidas e
expressões emitidas, Goffman procura
delimitar o seu trabalho, informando que se ocupará primordialmente com as expressões emitidas, ou seja, a atitude
do indivíduo-ator diante de um grupo-platéia. Exemplificando suas idéias, cita
um incidente romanceado, um episódio sobre um inglês em férias em uma praia, na
Espanha. Narra as atitudes de Preedy (um indivíduo-ator e suas expressões
emitidas) para se fazer notar, por meio de vários rituais, como um passeio pela
praia que virara corrida e mergulho
direto na água, a forma de nadar que consistia num apelo para ser visto, e
outras ações ritualísticas, visando impressões múltiplas do grupo-platéia.
Demonstra que as impressões variam e nem sempre coincidem com a esperada pelo
indivíduo. Às vezes ele consegue projetar uma boa impressão e ser compreendido,
às vezes não.
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