sábado, 27 de agosto de 2011

RETRATO DE UMA OBRA-PRIMA (conclusão)


RETRATO DE UMA OBRA-PRIMA

Rogel Samuel

É um tema banal, popular, mesmo vulgar. A mãe, já tão gasto motivo dos cadernos poéticos e saudades, pois todos nós tivemos ou temos a mãe a saudar, a lembrar, a louvar, a chorar.

Mas Jorge Tufic é um poeta excepcional: com que realizou sua obra-prima, sonetos pós-modernos em que ele traça o perfil, o “Retrato de mãe“, de sua verdadeira mãe, ou da personagem mãe.

O livro todo está no blog
http://historiadosamantes.blogspot.com/search/label/JORGE%20TUFIC

O pequeno livro é uma obra-prima em quinze sonetos. Começa por uma invocação:

Venham fios de luz, aromas vivos
misturar-se às palavras, à centelha
do louvor mais profundo deste filho

Invocada, a mãe começa a delinear-se, começa a aparecer, vem em fragmentos, pouco nítida, mas forte, mas sentida, pressentida, sim, começa ele a pintar o retrato interno da dulcíssima Mãe e que logo todos nós assumimos, conjuntamente, nossa mãe síntese e simbólica, a Fonte, semente e nome de nossa vida, que tudo nos deu.

Tema freudiano, pois.
E no segundo soneto logo aparece um mistério: Quem será este desconhecido Ramón que aparece no penúltimo verso?
É D. Ramón Angel Jara, Bispo de La Serena, Chile, citado no pórtico do livro. No livro há citações, pós-modernidade. Ou seja, a obra se diz: “Calma, eu sou apenas uma obra literária”.
A descrição, o retrato começa pelos cabelos, as tranças, a voz, a lembrança.
Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.

Depois vem a casa, a cozinha, as comidas da culinária libanesa, a lentinha, o azeite, as cebolas fritas, a coalhada, o pão redondo, que a Mãe preparava... mas tudo isso passou. Onde estão as comidas, os pratos de lentilha, a terrina de azeite para as coalhadas, as cebolas fritas? Tudo passou... Como, ao redor da casa, o vento. Como passou o vento do tempo. Também passam a cerca do quintal, os vizinhos, as vozes cantantes, e passaram. E o que passa é aquele Calendário sem datas, o chão do passado, o que passa. A casa da mãe. O que passa.
Lentilha, azeite doce, o acebolado
chia na frigideira de alumínio;
a casa está repleta de convites

Que dizer sobre o quarto soneto? Escreveu Dom Ramon Angel Yara, bispo de La Serena, Chile, no seu igualmente “Retrato de Mãe”: "Uma simples mulher existe que, pela imensidão de seu amor, tem um pouco de Deus; E pela constância de sua dedicação, tem muito de anjo” (Tradução de Guilherme de Almeida).
Que dizer do quarto soneto?
Trata da permanência da mãe. Do que permanece, na lembrança. Mãe não morre nunca. Somos nós mesmos. Nossa Mãe somos nós mesmos, em continuidade dialética.
Em tudo, minha mãe, te vejo e sinto.
Neste verniz antigo, neste cheiro
suavíssimo que vinha do teu corpo,

A permanência é essa, da mãe, que mesmo morta, ainda dói em nós, que ainda cantante, ainda existente, que ainda alivia, ainda consola, ainda sorri.
A mãe é eterna!
Sim, eterna mas morre: é o quinto soneto.
A morte do eterno. A queda dos deuses. E num domingo! É o soneto da morte, do fim. O Eterno, como bem viu Hannah Arendt, é a eternidade do instante. O imortal é a presença da lembrança.
Façamos aqui a distinção (que Hannah Arendt estabelece) entre imortalidade e eternidade, para esclarecimento dessa alienação do mundo moderno.
Imortalidade significava continuidade no tempo através da realização de grandes feitos, obras e feitos notáveis. Por sua capacidade de produzir obras e de realizar feitos imortais, os imortais podiam, através das marcas de sua passagem, participar da natureza dos deuses. Na antigüidade clássica, havia os que ambicionavam à fama e, portanto, à imortalidade, e havia os que, satisfeitos com os prazeres que a natureza lhes oferecia, viviam e morriam como animais. Nesses dois casos, percebe-se uma alienação e uma falta de compreensão do real.
Outra coisa era a experiência do eterno, própria do filósofo no sentido estrito do termo, a visão da eternidade ainda que passageira. Diz Arendt que depõe muito a favor de Sócrates o fato de ele não ter escrito nada, porque não estava preocupado com a fama, ou seja, com a imortalidade. O filósofo vive a experiência do eterno. Se escreve sua experiência, ambiciosa a imortalidade, pois procura deixar para a posteridade algum vestígio de si, a fama.
A experiência do eterno, diz Arendt, só pode ocorrer fora da esfera das ambições humanas. Se morrer é deixar de estar entre os homens, a experiência do eterno é morte. O contrário é a preocupação com a fama, com a imortalidade. Eternidade e imortalidade são dessa maneira, integralmente contraditórios.
Tal experiência, a percepção do Eterno, diz Hannah Arendt, tem de ser rápida, pois ninguém pode suportá-la durante muito tempo. O condicionado e mortal não pode encarar o eterno na sua eternidade, senão indiretamente, rapidamente, numa intuição momentânea. O eterno está fora do mundo do homem. A imortalidade , ao contrário, reside entre os homens, e criação humana. O eterno não, não é condição de condicionamento humano, não é tocado pela ambição humana. O eterno advém ao homem, quando este nada deseja, na imobilidade do pensamento, silenciado pela vida contemplativa. Heidegger sabia disso. Pois o eterno não pode ser convertido em atividade humana, e uma iluminação que não se consegue com o movimento do esforço, mas com a observação pura dos movimentos do pensar. O eterno é positivo, mas nasce quando há radical negação. Nem pode ser aprisionado pelo discurso, pois não pode ser objetivado: “O Tao que tem nome não é o Tao”. O eterno é mais espaço do que razão. Está onde o “eu” não se encontra. Nem está delimitado no tempo, na convenção e no produto humano, pois o eterno é presença. E por isso não pode ser “usado” para a glória e fama do homem. Mais: o eterno não está no sujeito, porém vigora quando desaparecem sujeito e objeto. Ou quando não há espaço entre observador e coisa observada, como diz Krishnamurti.
A Imortalidade, entretanto, foi impiedosamente abalada com a queda do Império Romano. A destruição de Roma mostrou cruelmente que nenhum produto do homem pode ser considerado eterno (ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense/Rio de Janeiro, Salamandra/São Paulo, Ed. Universidade São Paulo. 1981. 339p.).
Portanto, o eterno é a presença. Assim como a presença de minha mãe morte ainda dói, hoje, enquanto escrevo, tantos anos se passaram de sua morte. O fato de minha mãe ainda doer em mim significa que ainda está viva comigo, eu que vivi ao longo da vida sempre longe dela (talvez por isso não tenho nenhuma foto de minha mãe na parede, para não alimentar o fogo de uma dor antiga).

Numa tarde opressiva de domingo,
o estrondo de tua queda: a irreversível
fratura que me dói quando te lembro

A seguir o poeta retrocede, se volta para o tempo materno, ou seja, a infância, a iluminada época da Mãe, da mãe protetora armadura fonte. Nossa juventude dela vinha, nossa fartura se originava nela. A poderosa Mãe, entretanto pobre, que se inquietava na escassez. Mãe bela, esbelta, musical. Mãe mítica! Poderosa fantasia posta em ouro. Em brilhos e luas. Amada que quando voltava trazia o mundo inteiro em seus cabelos, em suas vestes, em suas mãos. Mãe fada.

Nossa infância era toda iluminada
pelas fontes da tua juventude.

O texto é escrito com o intuito, com a inquietante busca de recuperar a imagem daquela criatura mítica, divina, dama antiga, fada e santa, busca infinita de volta ao útero materno, ao ninho antigo, àquele aconchego materno, onde tudo estava em paz, onde nós nos alimentávamos, nos encontrávamos com nossa originária semente, e para isso, para esse canto, o poeta pede a voz do Narciso, na água dos regatos, a imagem da Mãe, dela nunca nós nos poderemos libertar, aquela que em nós vive e dela nunca sairemos.
Mas nada.
Somente versos. Somente nos versos a sua fotografia.

O que a lembrança traz, porém, gera um pavor, o horror da recordação, o recordar aquela cena que não devia de ser nunca recordada, a agonia, a morte, a terrível e insuportável cena da morte, daquela que foi fonte da vida, da alegria, da proteção, abrigo, auxílio, amparo, e por quê?, e como de repente aparece este camoniano “estavas, posta no esquife” - ainda que ela esteja ali liberta como num trono, entronizada no Eterno sono, o sonho rente à luz, Iluminada – a morte veio mas também vieram as galáxias, vieram vales luminosos, abriram-se auroras fartas – mas por teres ido ficam mais sombrios os dias aqui deixados:

Estavas, posta no esquife, igual a todas
as defuntas convulsas, lapidadas.

Depois da morte do Eterno, depois de a mãe ser “posta em esquife”, naquele terrível verso camoniano, ficam as relíquias, os pertences, o vestido de linho desbotado, o sapato, o chinelo, a nuvem, tudo posto num saco tosco, humilde e roto, o legado de uma tristeza infinita, porque o tesouro se enterrara com ela mesma, e não há como dizê-la.
A morte da mãe.

E o canto se transforma em rugidos carcerários, impotentes, de barro, quilhas, peito, e onde o poeta revela seu modelo Jorge de Lima, sua poética, seu traçado.

A viagem é a sua morte.
A morte o tempo, as ampulhetas, as ressonâncias. A que mar foi levada aquela amada? Aquelas viagens se tornam a viajar.

A lembrança neste fim que sempre volta, algo inumerável, roupas no tanque, fantasmas trastes. A voz da mãe. Calvário de lembranças.
O soneto pós-moderno faz reflexões literárias, como essa referência a (Gabriel) Chalita. Ou seja, o poeta ressalta o caráter literário da obra, que se refere a si mesma.
O poeta como que diz: “não chore, isto é apenas literatura”.
E o retrato de mãe fica incompleto, só fragmentos de lembranças, como pedaços de imagem.
Mas o clima, a alma sai inteira, como quem abre a luz da primavera.





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