Na Amazônia, Terra Sem História
Impressões Gerais
Ao revés da admiração ou do entusiasmo, o que nos sobressalteia
geralmente, diante do Amazonas, no desembocar do dédalo florido do
Tajapuru, aberto em cheio para o grande rio, é antes um
desapontamento. A massa de águas é, certo, sem par, capaz daquele
terror a que se refere Wallace; mas como todos nós desde mui cedo
gizamos um Amazonas ideal, mercê das páginas singularmente líricas
dos não sei quantos viajantes que desde Humboldt até hoje
contemplaram a hiléia prodigiosa, com um espanto quase religioso -
sucede um caso vulgar de psicologia: ao defrontarmos o Amazonas
real, vemo-lo inferior à imagem subjetiva há longo tempo
prefigurada. Além disto, sob o conceito estritamente artístico, isto
é, como um trecho da terra desabrochando em imagens capazes de se
fundirem harmoniosamente na síntese de uma impressão empolgante, é
de todo em todo inferior a um sem número de outros lugares do nosso
país. Toda a Amazônia, sob este aspecto, não vale o segmento do
litoral que vai de Cabo Frio à Ponta do Munduba.
É sem dúvida, o maior quadro da Terra; porém chatamente rebatido num
plano horizontal que mal alevantam de uma banda, à feição de restos
de uma enorme moldura que se quebrou, as serranias de arenito de
Monte Alegre e as serras graníticas das Guianas. E como lhe falta a
linha vertical, pré excelente na movimentação da paisagem, em poucas
horas o observador cede às fadigas de monotonia inaturável e sente
que o seu olhar, inexplicavelmente, se abrevia nos sem-fins daqueles
horizontes vazios e indefinidos como o dos mares.
***
A impressão dominante que tive, e talvez correspondente a uma
verdade positiva, é esta: o homem, ali, é ainda um intruso
impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido - quando a
natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão. E
encontrou uma opulenta desordem... Os mesmos rios ainda não se
firmaram nos leitos; parecem tatear uma situação de equilíbrio
derivando, divagantes, em meandros instáveis, contorcidos sem
“sacados”, cujos istmos a reveses se rompem e se soldam numa
desesperadora formação de ilhas e de lagos de seis meses, e até
criando formas topográficas novas em que estes dois aspectos se
confundem; ou expandindo-se em “furos” que se anastomosam,
reticulados e de todo incaracterísticos, sem que se saiba se tudo
aquilo é bem uma bacia fluvial ou um mar profusamente retalhado de
estreitos.
Depois de uma única enchente se desmancham os trabalhos de um
hidrógrafo.
A flora ostenta a mesma imperfeita grandeza. Nos meios-dias
silenciosos - porque as noites são fantasticamente ruidosas -, quem
segue pela mata, vai com a vista embotada no verde-negro das folhas;
e ao deparar, de instante em instante, os fetos arborescentes
emparelhando na altura com as palmeiras, e as árvores de troncos
reilíneos e paupérrimos de flores, tem a sensação angustiosa de um
recuo às mais remotas idades, como se rompesse os recessos de uma
daquelas mudas florestas carboníferas desvendadas pela visão
retrospectiva dos geólogos.
Completa-a, ainda sob esta forma antiga, a fauna singular e
monstruosa, onde imperam, pela corpulência, os anfíbios, o que é
ainda uma impressão paleozóica. E quem segue pelos longos rios, não
raro encontra as formas animais que existem, imperfeitamente, como
tipos abstratos ou simples elos da escala evolutiva. A “cigana”
desprezível, por ex., que se empoleira nos galhos flexíveis das
oiranas, trazendo ainda na asa de vôo curto a garra do réptil...
Destarte a natureza é portentosa, mas incompleta. É uma construção
estupenda a que falta toda a decoração interior. Compreende-se bem
isto: a Amazônia é talvez a terra mais nova do mundo, consoante as
conhecidas induções de Wallace e Frederico Hartt. Nasceu da última
convulsão geogênica que sublevou os Andes, e mal ultimou o seu
processo evolutivo com as várzeas quaternárias que se estão formando
e lhe preponderam na topografia instável.
Tem tudo e falta-lhe tudo, porque lhe falta esse encadeamento de
fenômenos desdobrados num ritmo vigoroso, de onde ressaltam,
nítidas, as verdades da arte e da ciência - e que é como que a
grande lógica inconsciente das coisas.
Daí esta singularidade: é de toda a América a paragem mais
perlustrada dos sábios e é a menos conhecida. De Humboldt a Em.
Goeldi - do alvorar do século passado aos nossos dias, perquirem-na,
ansiosos, todos os eleitos. Pois bem, lede-os. Vereis que nenhum
deixou a calha principal do grande vale; e que ali mesmo cada um se
acolheu, deslumbrado, no recanto de uma especialidade. Wallace,
Mawe, W. Edwards, d’Orbigny, Martius, Bates, Agassiz, para citar os
que me acodem na primeira linha, reduziram-se a geniais escrevedores
de monografias.
A literatura científica amazônica, amplíssima, reflete bem a
fisiografia amazônica: é surpreendente, preciosíssima, desconexa.
Quem quer que se abalance a deletreá-la, ficará, ao cabo desse
esforço, bem pouco além do limiar de um mundo maravilhoso.
Há uma frase do Professor Frederico Hartt que delata bem o delíquio
dos mais robustos espíritos diante daquela enormidade. Ele estudava
a geologia do Amazonas quando em dado momento se encontrou tão
despeado das concisas fórmulas científicas e tão alcandorado no
sonho, que teve de colher, de súbito, todas as velas à fantasia:
- “Não sou poeta. Falo a prosa da minha ciência. Revenons!”
Escreveu; e encarrilhou-se nas deduções rigorosas. Mas decorridas
duas páginas não se forrou a novos arrebatamentos e reincidiu no
enlevo... É que o grande rio, malgrado a sua monotonia soberana,
evoca em tanta maneira o maravilhoso, que empolga por igual o
cronista ingênuo, o aventureiro romântico e o sábio precavido. As
“amazonas” de Orellana, os titânicos curriquerês de Guillaume de
L’Isle e a Mana del Dorado de Walter Raleigh, formando no passado um
tão deslumbrante ciclo quase mitológico, acolchetam-se em nossos
dias às mais imaginosas hipóteses da ciência. Há uma hipertrofia da
imaginação no ajustar-se ao desconforme da terra, desequilibrando-se
a mais sólida mentalidade que lhe balanceie a grandeza. Daí, no
próprio terreno das indagações objetivas, as visões de Humboldt e a
série de conjeturas em que se retravam, ou contrastam, todos os
conceitos, desde a dinâmica de terremotos de Russell Wallace ao
bíblico formidável das galerias pré-diluvianas de Agassiz.
Parece que ali a imponência dos problemas implica o discurso
vagaroso das análises: às induções avantajam-se demasiado os lances
da fantasia. As verdades desfecham em hipérboles. E figura-se alguma
vez em idealizar aforrado o que recai nos elementos tangíveis da
realidade surpreendedora, por maneira que o sonhador mais
desensofrido se encontre bem na parceria dos sábios deslumbrados.
Vai-se, por ex., com Fred. Katzer a seriar, a escandir e aconfrontar
velhíssimos putrefactos ou graptólitos numa longa romaria ideal
pelos mais remotos pontos nas mais remotas idades - largo tempo, a
debater-se entre as classificações maciças, a enredar-se na trama
das raízes gregas das nomenclaturas bravias - e de improviso, os
dizeres da ciência desfecham num quase idealismo: as análises
rematam-nas prodígios; as vistas abreviadas nos microscópios
desapertam-se no descortino de um passado muitas vezes milenário; e
esboçados os contornos estupendos de uma geografia morta,
alonga-se-lhe aos olhos a perspectiva indefinida daquele extinto
oceano médio-devônico que afogava todo o Mato Grosso e a Bolívia,
cobrindo quase toda a América meridional e chofrando no levante as
antiquíssimas arribas de Goiás, últimos litorais do continente
brasilio-etiópico que aterrava o Atlântico indo abranger a África...
Segue-se com os naturalistas da Comissão Morgan, e a história
geológica, a despeito de linhas mais seguras, não perde o traço
grandioso, desenvolvendo-se às duas margens do largo canal terciário
que por longo tempo separou os planaltos brasileiros e os das
Guianas, até que o vagaroso sublevar dos Andes, no Ocidente,
serrando-lhe um dos extremos, o transmudasse em golfo, em estuário,
em rio.