Rogel Samuel: O SOL E O MAR
Voltamos ao Verão. Vem o verão. Volto ao início dos "Cantos" de Ezra Pound:
E pois com a nau no mar,
Assestamos a quilha contra as vagas
E frente ao mar divino içamos vela
No mastro sobre aquela nave escura,
Levamos as ovelhas a bordo e
Nossos corpos também no pranto aflito,
E ventos vindos pela popa nos
Impeliam adiante, velas cheias,
Por artifício de Circe,
A deusa benecomata.
Que é o mesmo mar de Camões, que diz:
Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Próteo são cortadas
Mas um poeta desconhecido de (quase) todos, Sebastião Norões, escreveu um soneto perfeito, exemplar, único, sobre o mar, o «Mar da memória»:
Eu quero é o meu mar, o mar azul.
Essa incógnita de anil que se destrança
em ânsias de infinito e me circunda
em grave tom de inquietude langue.
O mar de quando eu era, não agora.
Quando as retinas fixavam tredas
a incompreensível mole líquida e convulsa.
E o pensamento convidava longes,
delimitava imprevisíveis rumos
viagens de herói e de mancebo guapo.
Quando as distâncias fomentavam sonhos.
Rebenta em mim essa aspersão tamanha
que a imagem imatura concebeu
de quando o mar era meu, o mar azul.
No verão, o brilho intenso, os ares claros, as nuvens brancas. O outono, a primavera.
Quando jovem, eu morava perto do Arpoador. Tínhamos domingos de sol, de verão.
O sol está ficando forte, vem o verão, a vida, as canções. O brilho intenso do passado estandartiza, nos ares, as claras visões dos cânticos do outono. O verão é o mar, que se vai abrir para o amor. É quando se espera amar. E o mar, o mar azul, «essa incógnita de anil que se destrança / em ânsias de infinito e me circunda / em grave tom de inquietude langue».
Todo verão é assim, esqueço, me esqueço, penso que ainda sou muito jovem. Me lembro dos dias de verão de Copacabana e do Pier de Ipanema. Quem tem sonhos não morre. « O mar de quando eu era, não agora. / Quando as retinas fixavam tredas / a incompreensível mole líquida e convulsa. / E o pensamento convidava longes.»
O mar sempre convida longes. Sempre atravessa o horizonte. Delimitando «imprevisíveis rumos / viagens de herói e de mancebo guapo.»
Naquele tempo acampávamos em praias desertas, e em desertas praias amávamos.
Um dia, em Búzios, um grande e luxuoso barco ancorou na praia onde acampávamos na noite de Reveillon. À noite podíamos ver as mulheres elegantes, os garçons, as champanhas. Fogos de artifícios. Ao nascer do sol, alguns vieram num note menor até a praia. Algumas mulheres, de vestidos longos e brancos, jogaram-se no mar. Outras, completamente nuas. Era Era de 60, onde tudo era permitido. Nas « marítimas águas consagradas, / Que do gado de Próteo são cortadas. »
E «nossos corpos também no pranto aflito, / E ventos vindos pela popa nos / Impeliam adiante, velas cheias». Sim, sim. « Por artifício de Circe, / A deusa benecomata.»
Norões nasceu no dia 7 de março de 1915, em Humaitá, Rio Madeira, Amazonas. Estudou em Fortaleza, daí sua fixação no Mar. Aos 18 anos volta para Manaus, faz a Faculdade de Direito. Foi meu professor no Colégio Estadual. Foi Chefe de Polícia do Estado onde (dizem) protegeu Jorge Amado. Membro do Clube da Madrugada, da Academia Cearense de Letras. Era professor de Geografia.
A geografia do Mar.
Quando éramos jovens, Norões foi nosso professor e Mestre. Posso vê-lo, atrás das baforadas de cigarro. As lentes grossas. Norões impressionava, carismático, culto. Nunca pensei que faria sua “apresentação”, anos mais tarde. Há poucos anos escrevi um prefácio para a segunda edição de seu livro «Poesia Freqüentemente», de 1956. E é uma surpresa sempre que releio seu livro, sua poesia está mais viva ali, sua poesia é azul, lá onde o horizonte mergulha. E desponta.
O mar azul.
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