sábado, 4 de fevereiro de 2012

Neuza Machado: Sobre o Amante das amazonas.

Pois se nada no romance poderá constar-se como “absoluto”, quem “arranca do corpo a substância e a transmite à vida da superfície” (do rio) não é absolutamente uma fêmea Numa, é um macho Numa. Se fosse uma fêmea, não arrancaria a substância sexual do próprio corpo, projetando-a em uma superfície. A substância sexual, advinda do orgasmo feminino, produz-se em espécie de interna umidade viscosa, e assim permanece. Percebo esta cena não-absoluta como uma questão a ser exaustivamente repensada. O verdadeiro narrador (o dono do ato de narrar) colocou o narrador-personagem Ribamar de Sousa em uma encruzilhada entrópica pós-moderna/pós-modernista. E graças a esta entropia narrativa, e aos enclaves do texto ficcional (espaços em branco, os quais não deverão ser desconsiderados futuramente, em outras edições do romance), os leitores poderão repensar o estigma do preconceito, neste atual momento histórico, seja ele de que natureza for.
Entretanto, continuo submetendo-me aos riscos teórico-reflexivos. Reflito a cena: “Ato terminal. Calor, prazer. O morno rio ressurge, como látex do sangue aquecido. (...) excreção brusca, violenta, do humor que escorre. Espuma de sangue”. Busco os referentes estruturalistas/semiológicos basilares, propiciadores de meu repensar fenomenológico: “Excreção brusca”: função fisiológica que expulsa (no caso, bruscamente) para o exterior alguma matéria excrementícia, como, por exemplo, o sêmen. “Humor”: qualquer líquido que atue no corpo dos vertebrados, como, por exemplo, o sêmen. Estes, por acaso, não seriam índices de uma sexualidade masculina? O líquido viscoso sexual feminino é interiorizado e não se revela em “excreções bruscas”.
Como já disse o sermonista barroco português-brasileiro Padre Antônio Vieira, as palavras têm mistérios. “Partes sólidas, estreitas”. As indiazinhas Numas rogelianas não possuem as partes exuberantes das vitalizadas e jovens mulheres índias. As índias joviais possuem formas arredondadas, sensuais, femininas. As indiazinhas Numas da ficção pós-modernista, assim como as lendárias amazonas guerreiras da antiguidade greco-romana, são masculinizadas. As indiazinhas do texto ficcional desta atualidade entrópica  “desaparecem uma na outra”. Penso que, se o ato fosse realmente lésbico, as indiazinhas Numas não desapareceriam uma na outra, pelo menos, por meio dos órgãos sexuais considerados tradicionalmente como normais. Em se tratando de relacionamento sexual entre duas mulheres, não há como uma se introduzir na outra, no ar. De sorte que, por interferência do alargadíssimo imaginário-em-aberto de quem realmente narra, o vento mítico (associado à água mítica, transformadora) encobre o narrador-personagem Ribamar de Sousa e faz “o morno rio [sexual-imaginário] [ressurgir], como látex do sangue aquecido”, sacralizando o ato sexual-amoroso (diferenciado) das duas divindades númicas.
“O morno rio ressurge, como látex do sangue aquecido”. “Rio”, “látex” e “sangue”. Recupero Bachelard. Encontro-me às voltas com a palavra “rio”, colocada comparativamente ao “sangue” e ao “látex”, indistintamente, neste parágrafo sobre o amor transcendental entre as duas indiazinhas Numas. A palavra “rio” associada ao “sangue” e ao “látex” está ali subentendida como um “sangue maldito”, à moda de Poe, ou como “um sangue valoroso”, à semelhança de Paul Claudel? Penso que este “rio” em especial possui as qualidades simbólicas referentes às três dimensões ─ sócio-substancial, mítico-substancial e ficcional ─ desta obra literária pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração, ou seja, a palavra “rio” tanto poderá ser avaliada pelo plano subjetivo quanto pelo plano objetivo ou pelo imaginário-em-aberto do narrador principal.


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