segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

NEUZA MACHADO: SOBRE "O AMANTE DAS AMAZONAS"

A “economia política”  do Manixi, constituída a partir do momento em que, entre os diversos elementos da riqueza, apareceu um novo objeto, a população mestiça, oriunda do acasalamento entre brancos, negros e índios, ao longo do século XX, conheceu o impasse da gritante desigualdade social (ratos/população versus gatos/famílias poderosas). A “arte de governo” do imperador Pierre Bataillon, tradicional, não suportou as inovações políticas da pós-modernidade em andamento. O que ocorreu por ali, será relatado na terceira parte (ficcional e pós-moderna) do romance, a partir do momento em que o segundo narrador, trasladando o espaço narrativo para Manaus, passa a falar do fim do apogeu capitalista no Amazonas. Entretanto, antes, buscarei retomar o plano mítico do Manixi.
Recupero o parágrafo acima do capítulo TRÊS: NUMAS, para referendar, ou seja, assinar, por minha vez, as anteriores premissas de Michel Foucault, sobre as suas teses referentes ao capitalismo primitivo de modelo familiar, da qual se originaram (realçadas no capítulo anterior destas minhas reflexões teórico-interpretativas, sobre este romance em especial) todas as questões de domínio político-familiar do capitalismo selvagem, determinador de regras trabalhistas desumanas, referentes ao Manixi da primeira etapa ficcional do romance O Amante das Amazonas. A retomada do parágrafo será necessária, uma vez que, para repensar o conflito entre o sócio-substancial (os brancos, os mestiços e os Caxinauás domesticados) e o mítico-substancial (a singularíssima Nação Numa: nação indígena idealizada ficcionalmente e miticamente), situado no entroncamento reflexivo-imaginativo de uma região fronteiriça ao Peru e Bolívia (Amazonas e Acre), inacessível nos anos finais do século XIX, faz-se necessário uma retrospectiva mítico-reflexiva (para a dimensão mítico-substancial do Manixi) e histórico-reflexiva (para a dimensão sócio-substancial do mesmo Manixi), por novas vias teóricas, evidentemente, mas nem por isto distantes das induções político-filosóficas de Michel Foucault, sobre o capitalismo em estado inicial e de base familiar, anterior ao século XX.
Instigada pela (e intrigada com a) criatividade ficcional do narrador do século XX (lembremo-nos do trecho: “Os Numas. Reagiram violentamente desde 1847, quando o sábio Francis de Castelnau por ali passou e os descreveu na Expedition dans lês parties centrales de l’Amerique du Sud. (...). Também Travestin, em Le fleuve Juruá, se refere àquelas lutas que tiveram contra os Numas”) e pelo meu limitado conhecimento pessoal e teórico da realidade manauara (uma vez que ali me estabeleci, no ano de 1996, como professora-substituta convidada de Teoria Literária, Literatura Brasileira e Literatura Amazonense, na Universidade Federal do Amazonas), procurei repensar fenomenicamente o título do romance, buscando uma ligação do mesmo com a mítica Nação Numa, brilhantemente realçada nas certamente (e futuramente) imortais páginas rogelianas desta diferenciada narrativa ficcional pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração.
Nestes termos reflexivo-interpretativos, a partir daí, surge uma pergunta: Castelnau descreveu miticamente os Numas Indomáveis (possivelmente, uma das tribos ainda hoje isoladas, desconhecidas) ou descreveu realmente mulheres índias belicosas, comparadas com as lendárias amazonas guerreiras da Grécia Antiga? A verdade é que, ao longo da busca teórico-histórica restrita à época assinalada pelo escritor, não distingui nenhuma informação quanto à possibilidade de existência desta aludida tribo indígena e o encontro da mesma com os aventureiros citados, entre as muitas nações silvícolas da localidade apontada, inclusive, em relação às tribos originárias dos Andes, tribos estas oriundas da dominação espanhola (anos iniciais da Era Moderna) fronteiriça à região amazônica brasileira (Peru e Bolívia). No entanto, sobre o mito de um grupo de índias brasileiras de ânimo aguerrido, também conhecidas como amazonas guerreiras (inseridas no título do romance), existem muitas informações mítico-históricas. Por conseguinte, depois das reflexões teórico-críticas, buscando solucionar o assunto, pude perceber uma ligação dos Numas invisíveis com o título do romance, uma vez que o escritor, por sua formação humanístico-literária, foi certamente um circunspecto estudioso da mitologia indígena de sua região de nascimento, incluso também o conhecimento de outros arcabouços míticos da humanidade. Por este aspecto, percebo o romance O Amante das Amazonas firmemente associado ao escritor-narrador, enquanto apreciador (amante intelectual) das heróicas narrativas indígenas, as quais povoaram o seu imaginário infanto-juvenil nos anos em que ali viveu, além de conhecedor inconteste das inúmeras formações mítico-religiosas tanto do Oriente quanto do Ocidente. Assim, pelo meu ponto de vista crítico-interpretativo, as “amazonas” do título seriam os próprios índios Numas (homens e mulheres indistintamente), criativamente desrealizados por seu apreciador ficcional. Entretanto, tal afirmação será reinterpretada, a seguir, quando, por tal causa, buscarei conhecimentos histórico-lendários esclarecedores a respeito do mito das gregas amazonas guerreiras, mito este plantado aqui no Brasil por exploradores estrangeiros, desde o início da colonização. Por via histórico-interpretativa, manifesta-se o conceito de que os míticos Numas foram formalizados ficcionalmente a partir de anteriores relatos lendário-familiares, intensificados pelas doutrinações totalitárias amazonenses, impositivas, e pelas intermitentes transmissões da literatura oral e escrita, pois, segundo a ficção aqui assinalada, “não ficavam visíveis, às claras, de frente, nítidos, senão de viés, difusamente entrevistos, só pressentidos na obliqüidade do olhar”.

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