O Manixi, o que me acena
provocativamente, não é o Manixi real dos manuais geográficos da região
amazonense. Encontro-me, aqui, acanhada pelo mítico-ficcional Seringal
Manixi e por seu Palácio magnificente, “supremo, inominável, majestoso” ;
inclusive, por seu dono extraordinário, cuja alcunha reputada é Pierre
Bataillon, “um homem que vivia debaixo do ouro no Alto Juruá” ; além de
deparar-me enlaçada nas inúmeras questões pós-modernas deste
diferenciado romance. Entretanto, para deslindá-lo reflexivamente, com
convicção teórico-interpretativa, buscando o plano do silêncio
fenomenológico à moda dos atuais pensamentos interativos, ou do filósofo
francês Gaston Bachelard, ou pela poderosa lente genealógica de Michel
Foucault, não me furtarei a um cotejamento com a realidade
histórico-geográfica do Amazonas, confrontando-a com o sistema
mítico-social da ficção rogeliana, em benefício de esclarecimentos
interpretativos. Por conseguinte, buscarei, no texto ficcional
pós-moderno, as informações proveitosas ao meu interativo e reflexivo
pensamento dialetizado.
O Manixi da narrativa rogeliana poderá ser
visto pelo mesmo prisma que revelou aos leitores universais o Sertão
ficcional de Guimarães Rosa. Assim como o Sertão roseano, oriundo do
sertão de Minas Gerais, que “está em todo lugar”, como diz Riobaldo (o
personagem-narrador de Guimarães Rosa), do mesmo modo percebo o Manixi
ficcional rogeliano. Assim como o Sertão de Guimarães Rosa foi visto,
por mim, em meu livro, Do Pensamento Contínuo à Transcendência Vital (do
cogito(1) ao cogito(3)), como um reflexo da casa primordial, repensada a
partir da ciência filosófica de Gaston Bachelard, da mesma forma o
espaço ficcional do Manixi será aqui interpretado. A narrativa
revelou-me, e revelará aos futuros leitores rogelianos, as íntimas
lembranças (memória) e recordações (matéria poética) do narrador
amazonense, sobre a sua “casa primordial” inesquecível. Os sentidos
vitais (auditivos, visuais, nasais, táticos, gustativos), provindos da
infância e adolescência, vividos ali, permaneceram/permanecem intensos e
persistentes em suas lembranças poetizadas, mesmo que ele esteja hoje
distanciado geograficamente de seu lugar de nascimento, e são percebidos
liricamente (matéria lírica interferindo no relato ficcional) ao longo
da narrativa. Quem se lembra (recorda ficcionalmente) do Igarapé do
Inferno (por que “do Inferno”?) e de toda aquela paisagem dantesca é o
segundo narrador, originário do entrópico século XX. O
personagem-narrador Ribamar de Sousa apenas se coloca como o porta-voz
de suas reminiscências (ou o duplo, ou a máscara ficcional do criador
singular atavicamente preso às lembranças e recordações do passado,
fossem boas ou más).
“Pois nós retornávamos em busca daquele passado
interdito, pois nós chegávamos no fim daquela era, quando o Palácio
transparecia com deslumbramento nos seus múltiplos reflexos das
quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas
em lúcidas placas de ouro reluzente e vívido e muito louco”, afirma(m)
o(s) narrador(es) (s). O primeiro narrador, Ribamar de Sousa
(reduplicado por uma pluralização pessoal) chega ao Palácio Manixi
quando este já começava a apresentar-se em seu processo de decadência.
Para revelá-lo reflexivamente aos leitores atuais e do futuro, buscarei
reforço analítico-interpretativo na Poética da Casa de Gaston Bachelard e
em outras interferências filosóficas (citações), valiosas, retiradas
dos diversos livros de sua fase noturna. O Palácio, a Floresta, a
Cidade, todos os planos desta obra diferenciada se distinguem a partir
de um único princípio, ou seja, refletem a “casa inesquecível” de que
nos fala Bachelard, com seus recantos secretos aninhados no mais
profundo dos pensamentos. Por isto, o “Igarapé do Inferno” (por que
Igarapé do Inferno?) se revela a sinalizar íntimas lembranças infernais,
lembranças que obrigam o primeiro narrador a revelá-las. Quem está
buscando o “passado interdito” é o segundo narrador, porque foi ele,
enquanto singularidade ativa de seu núcleo social primitivo, que chegou
ali, pelo nascimento, já no final de uma era de glórias capitalistas, já
no início da decadência do esplendor da borracha.
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