Conheces a região do laranjal florido? ROGEL SAMUEL No início da "Canção de Mignon" de GOETHE misterioso verso: "Conheces a região do laranjal florido?" No original há um "lá", que se repete (Dahin, dahin), objetivando transcendência que a tradução excelente de João Ribeiro manteve. Um lá (Mignon) que talvez se refere a certo lugar na Itália, diz Eça de Queiroz, n'O mandarim. Um lieder de Schubert, de 1816. A terra privilegiada onde o laranjal floresce ouro (Citronen blühen). Um "lá... bem longe, além", que aponta para lugar, a princípio paradisíaco, onde o sujeito do poema nos convida a ir, com ele, onde dourados pomos brilham na escuridão (Gold-Orangen glühen), e no céu azul a brisa, tudo em paz, nada move, nada passa, nem a vida, nem a glória (nem o louro)... Não a conheces tu? Quisera ir-me contigo... Conheces a região do laranjal florido? Ardem, na escura fronde, em brasa os pomos de ouro; No céu azul perpassa a brisa num gemido... A murta nem se move e nem palpita o louro... Não a conheces tu? Pois lá... bem longe, além, Quisera ir-me contigo, ó meu querido bem! [Kennst du das Land, wo die Citronen blühen, Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühen? Kennst du es wohl? - Dahin, dahin! Möchtl ich... ziehn.] A estrofe epígrafe de "A canção do exílio", de Gonçalves Dias, por isso a transcrevo. Não sei alemão. João Ribeiro, sábio e erudito filólogo carioca (1860-1934), também poeta. Hoje esquecido. Não mais editado. Em 1932 escreveu um ensaio sobre Goethe. Foi jornalista, catedrático do Pedro II. Soube dar e transpor o clima da "A canção de mignon". A casa, sabes tu? em luzes brilha toda, E a sala e o quarto. O teto em colunas descansa. Olham, como a dizer-me, as estátuas em roda: - Que fizeram de ti, ó mísera criança! Não a conheces tu? Pois lá... bem longe, além, Quisera ir-me contigo, ó meu senhor, meu bem! Súbito, Goethe introduz, nessa região maravilhosa, fantástica, irreal - uma casa! Sólida casa, como deve ser a tradição familiar: "O teto em colunas descansa". Casa paterna, a sala e o quarto, o mais íntimo das forças arquitetônicas do espírito ("sabes tu?), que olham, falam, vêem a desgraça a que fomos reduzidos ("que fizeram de ti, ó mísera criança?") - não, não a conheço, não a reconheço, a casa de meus pais, no além, no bem longe, aonde o poeta me levou. Meus familiares estátuas tumulares... Conheces a montanha ao longe enevoada? A alimária procura entre névoas a estrada... Lá, a caverna escura onde o dragão habita, E a rocha donde a prumo a água se precipita... Não a conheces tu? Pois lá... bem longe, além, Vamos, ó tu, meu pai e meu senhor, meu bem! Goethe introduz palavra-chave, palavra grave, palavra-montanha, ponto de fuga, de onde a dor se despedaça: meu "pai". Não só pai, mas pai e "senhor", com os semas que a idéia de senhor nos traz, nos põe, dispõe, na mesa da leitura, do poder, da Lei. Do nome, do não. Goethe e João Ribeiro têm algo em comum além das "afinidades eletivas": a idéia, a ideologia do pai. João Ribeiro não teve pai (faleceu cedo), foi criado pelo avô, "culto e liberal" (diz Afrânio Coutinho). Goethe cultuou o pai, herói. Entre eles se estabelece laço cúmplice da volta ao Pai. Meu pai, cuja língua materna era o alemão, recitava Goethe de memória. Mas a montanha está enevoada, envolvem-se os mistérios de grandeza... os animais procuram estrada... lá reside o perigo - o dragão! - na Caverna escura, indevassável, uterina, se verte a água, da vida, que a prumo se precipita, nas veias do destino... Não a conheces tu? É lá, lá... Rogel Samuel |
sábado, 30 de junho de 2012
Conheces a região do laranjal florido?
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário