sexta-feira, 31 de maio de 2013
O escritor realizado
O escritor realizado
O escritor realizado
Rogel Samuel
Uma amiga me faz uma pergunta basilar:
- O que faltou para você ser um escritor realizado?
A questão está posta de modo errado, por isso ela é irrespondível.
Pois, o que será um escritor realizado?
Será ser um best-seller?
Benjamim Costallat, autor de “Mademoiselle Cinema”, foi um dos autores mais lidos na década de 20 e hoje ninguém nem conhece.
Mesmo Coelho Neto, Humberto de Campos, glórias de seu tempo, quem hoje os lê? Só são lembrados como nomes de rua.
Alguns Prêmios Nobel de Literatura jazem hoje no sepulcro das bibliotecas onde ninguém mais os lê nem sabe deles, como Maurice Maeterlinck, Gerhart Hauptmann, ou Karl Adolph Gjellerup.
Escritor plenamente realizado é aquele que escreveu todos os textos que quis ou pôde escrever, e isso eu o fiz com os meus romances, minhas novelas, meus contos, crônicas e poemas.
Se minha amiga X. não os leu nem sabe deles é porque não quer ou não quis. Todos estão publicados e disponíveis e acessíveis em livro e principalmente na Internet.
O escritor realizado
Rogel Samuel
Uma amiga me faz uma pergunta basilar:
- O que faltou para você ser um escritor realizado?
A questão está posta de modo errado, por isso ela é irrespondível.
Pois, o que será um escritor realizado?
Será ser um best-seller?
Benjamim Costallat, autor de “Mademoiselle Cinema”, foi um dos autores mais lidos na década de 20 e hoje ninguém nem conhece.
Mesmo Coelho Neto, Humberto de Campos, glórias de seu tempo, quem hoje os lê? Só são lembrados como nomes de rua.
Alguns Prêmios Nobel de Literatura jazem hoje no sepulcro das bibliotecas onde ninguém mais os lê nem sabe deles, como Maurice Maeterlinck, Gerhart Hauptmann, ou Karl Adolph Gjellerup.
Escritor plenamente realizado é aquele que escreveu todos os textos que quis ou pôde escrever, e isso eu o fiz com os meus romances, minhas novelas, meus contos, crônicas e poemas.
Se minha amiga X. não os leu nem sabe deles é porque não quer ou não quis. Todos estão publicados e disponíveis e acessíveis em livro e principalmente na Internet.
quinta-feira, 30 de maio de 2013
quarta-feira, 29 de maio de 2013
terça-feira, 28 de maio de 2013
PARIS
Paris
Rogel Samuel
Havia uma chuva fina que molha o chão das ruas e põe as folhas das árvores pensativas. Nas três vezes anteriores que estive em Paris chovia sempre. Como todo amazonense, adoro Paris. Sonho morar em Paris, como os amazonenses da época de meu avô. Manaus, réplica, miniatura de Paris. Existia a Casa Louvre, A la ville de Paris, Café da Paz, Au bon marché, Livraria Palais Royal, Casa Sorbonne, Bijou . "Manaus, pequena Paris". Boulevar Amazonas, Boulevard Álvaro Maia. "A samaritana". Manaus, toda francesa. Na "Praça da Polícia", uma réplica do "Temple d'amour", de Versailles. Quando a borracha faliu, os comerciantes quebraram, mudaram-se para Paris, Lisboa. Os jornais da época marcam anúncios, despedida. Bela maneira de ir à falência: Iam para Paris. Onde já estudavam seus filhos. Um amigo reacionário me diz, com indignação: "A filha do Lula estuda em Paris". Meu pai estudou em Paris, no entre-guerras. Na realidade, ele era francês, ainda que tivesse nascido a bordo do navio Adamastor, em Remate de Males, que eu só sei onde fica devido a um livro de Mário de Andrade. Antes que a malária matasse todas as crianças nascidas ali, meu avô, que era alsaciano, transbordou sua mulher e filho para um navio inglês que passava. O menino ficou em Estrasburgo, a bela cidade, a Catedral mais bela do mundo. Aliás, ele morava perto da Catedral. Acordava ao som de seus sinos. A catedral é maior do que a própria cidade. Um dia, estando em Frankfurt, em casa de Karl Joseph, eu disse: "Vou ver Estraburgo". E ele respondeu: "Eu levo você". Fomos, que era domingo, eu, ele e sua esposa brasileira. De Estrasburgo, mandei um cartão para meu pai, ainda vivo. Lá, depois do almoço, quiseram voltar. No dia seguinte trabalhavam. Eu disse: "Não volto sem ver e ouvir o relógio da Catedral". Passei a infância ouvindo falar daquele relógio. Karl Joseph e a mulher foram descansar num hotel, na estrada, eu esperei dar 6 horas da tarde dentro da Catedral. A primeira coisa que aconteceu foi abrir-se uma portinhola e dali sair um boneco mecânico, um esqueleto vestido de Morte, bateu com um martelinho num sininho. Aquilo ecoou por toda a nave. Ao que o grande sino da Igreja respondeu, solene. Grave. Chove sempre que estou em Paris. Com Annie Gerault, que não tem medo de chuva, cortamos o Bois de Vincennes, pelas margens do lago "des Minimes", sob chuva forte, à noite. Annie mora na Rue Fondary, não longe da Torre Eiffel. Um dia fomos ver a nova iluminação da Torre. Depois, já bem tarde, Annie quis passear pela noite, no Jardin du Luxembourg. Como carioca, logo pensei em assalto. O jardim estava deserto, mas a sensação era de calma. Lembrei-me então: não estávamos no Rio.
Rogel Samuel
Havia uma chuva fina que molha o chão das ruas e põe as folhas das árvores pensativas. Nas três vezes anteriores que estive em Paris chovia sempre. Como todo amazonense, adoro Paris. Sonho morar em Paris, como os amazonenses da época de meu avô. Manaus, réplica, miniatura de Paris. Existia a Casa Louvre, A la ville de Paris, Café da Paz, Au bon marché, Livraria Palais Royal, Casa Sorbonne, Bijou . "Manaus, pequena Paris". Boulevar Amazonas, Boulevard Álvaro Maia. "A samaritana". Manaus, toda francesa. Na "Praça da Polícia", uma réplica do "Temple d'amour", de Versailles. Quando a borracha faliu, os comerciantes quebraram, mudaram-se para Paris, Lisboa. Os jornais da época marcam anúncios, despedida. Bela maneira de ir à falência: Iam para Paris. Onde já estudavam seus filhos. Um amigo reacionário me diz, com indignação: "A filha do Lula estuda em Paris". Meu pai estudou em Paris, no entre-guerras. Na realidade, ele era francês, ainda que tivesse nascido a bordo do navio Adamastor, em Remate de Males, que eu só sei onde fica devido a um livro de Mário de Andrade. Antes que a malária matasse todas as crianças nascidas ali, meu avô, que era alsaciano, transbordou sua mulher e filho para um navio inglês que passava. O menino ficou em Estrasburgo, a bela cidade, a Catedral mais bela do mundo. Aliás, ele morava perto da Catedral. Acordava ao som de seus sinos. A catedral é maior do que a própria cidade. Um dia, estando em Frankfurt, em casa de Karl Joseph, eu disse: "Vou ver Estraburgo". E ele respondeu: "Eu levo você". Fomos, que era domingo, eu, ele e sua esposa brasileira. De Estrasburgo, mandei um cartão para meu pai, ainda vivo. Lá, depois do almoço, quiseram voltar. No dia seguinte trabalhavam. Eu disse: "Não volto sem ver e ouvir o relógio da Catedral". Passei a infância ouvindo falar daquele relógio. Karl Joseph e a mulher foram descansar num hotel, na estrada, eu esperei dar 6 horas da tarde dentro da Catedral. A primeira coisa que aconteceu foi abrir-se uma portinhola e dali sair um boneco mecânico, um esqueleto vestido de Morte, bateu com um martelinho num sininho. Aquilo ecoou por toda a nave. Ao que o grande sino da Igreja respondeu, solene. Grave. Chove sempre que estou em Paris. Com Annie Gerault, que não tem medo de chuva, cortamos o Bois de Vincennes, pelas margens do lago "des Minimes", sob chuva forte, à noite. Annie mora na Rue Fondary, não longe da Torre Eiffel. Um dia fomos ver a nova iluminação da Torre. Depois, já bem tarde, Annie quis passear pela noite, no Jardin du Luxembourg. Como carioca, logo pensei em assalto. O jardim estava deserto, mas a sensação era de calma. Lembrei-me então: não estávamos no Rio.
Annie já não está entre nós, faleceu há poucos anos.
segunda-feira, 27 de maio de 2013
O MENINO QUE ESCREVIA VERSOS
O menino que escrevia versos
Mia Couto
De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(VERSOS DO MENINO QUE FAZIA VERSOS)
— Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
— Há antecedentes na família?
— Desculpe doutor?
O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:
— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.
— São meus versos, sim.
O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?
Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
— O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.
Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.
Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
— Dói-te alguma coisa?
—Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?
— O que melhor sei fazer, excelência.
Mia Couto
De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?
(VERSOS DO MENINO QUE FAZIA VERSOS)
— Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
— Há antecedentes na família?
— Desculpe doutor?
O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:
— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.
— São meus versos, sim.
O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?
Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
— O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.
Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.
Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
— Dói-te alguma coisa?
—Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?
— O que melhor sei fazer, excelência.
— E o que é?
— É sonhar.
Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.
O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:
— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.
A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.
Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.
— Não continuas a escrever?
— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.
O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.
— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.
— Não importa — respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.
Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:
— Não pare, meu filho. Continue lendo...
— É sonhar.
Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.
O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:
— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.
A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.
Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.
— Não continuas a escrever?
— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.
O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.
— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.
— Não importa — respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.
Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:
— Não pare, meu filho. Continue lendo...
Mia Couto vence o Prêmio Camões 2013
Mia Couto vence o Prêmio Camões 2013
O escritor e biólogo moçambicano Mia Couto é o
vencedor do Prêmio Camões de 2013, o mais importante da literatura em língua
portuguesa. Ele vai receber 100 mil euros.
O júri, formado escritores, críticos e
jornalistas lusófonos, foi composto pelos brasileiros Alberto da Costa e Silva e
Alcir Pécora, pelos portugueses João Paulo Borges Coelho, José Carlos
Vasconcelos e Clara Crabbé Rocha e pelo angolano José Eduardo Agualusa.
Criado por Portugal e Brasil em 1989, o prêmio é
o maior de língua portuguesa e é concedido ao escritor cuja obra contribua para
sua projeção e reconhecimento.
Nas 24 edições anteriores da premiação, Portugal
e Brasil foram vencedores por dez vezes cada. Angola teve dois escritores
ganhadores: Pepetela, em 1997, e José Luandino Vieira, que, em 2006, recusou o
prêmio. De Moçambique, já havia sido premiado José Craveirinha, em 1991, e, de
Cabo Verde, Arménio Vieira, em 2009.
Veja a lista completa dos vencedores:
2013 – Mia Couto (romancista moçambicano)2012 – Dalton Trevisan (contista brasileiro)
2011- Manuel António Pina (poeta, cronista, dramaturgo e romancista português)
2010 – Ferreira Gullar (poeta brasileiro)
2009 – Armênio Vieira (escritor de Cabo Verde)
2008 – João Ubaldo Ribeiro (romancista brasileiro)
2007 – António Lobo Antunes (romancista português)
2006 – José Luandino Vieira (escritor angolano; recusou o Prêmio Camões)
2005 – Lygia Fagundes Telles (romancista brasileira)
2004 – Agustina Bessa Luís (romancista portuguesa)
2003 – Rubem Fonseca (romancista brasileiro)
2002 – Maria Velho da Costa (romancista portuguesa)
2001 – Eugénio de Andrade (poeta português)
2000 – Autran Dourado (romancista brasileiro)
1999 – Sophia de Mello Breyner Andresen (poeta portuguesa)
1998 – Antonio Candido (crítico literário e ensaísta brasileiro)
1997 – Pepetela (romancista angolano)
1996 – Eduardo Lourenço (crítico literário e ensaísta português)
1995 – José Saramago (romancista português)
1994 – Jorge Amado (romancista brasileiro)
1993 – Rachel de Queiroz (romancista brasileira)
1992 – Vergílio Ferreira (romancista português)
1991 – José Craveirinha (poeta moçambicano)
1990 – João Cabral de Melo Neto (poeta brasileiro)
1989 – Miguel Torga (poeta e romancista português)
domingo, 26 de maio de 2013
VIVER ATRAVÉS DO ZEN
VIVER ATRAVÉS
DO ZEN
D. T. SUZUKI
D. T. SUZUKI
O que significa
"viver através do Zen"? Não estamos todos vivendo através do Zen, no
Zen e com o Zen? Podemos escapar disso? Embora muito nos esforcemos para
escapar dele, somos como aqueles pequenos peixes apanhados em quantidade; a
luta não tem proveito algum, e termina por nos ferir gravemente.
SUZUKI
Visto de outro
modo, "viver através do Zen" é como pôr outra cabeça sobre a que nós
já tínhamos antes mesmo de nosso nascimento. Qual a utilidade, então, de falar
sobre isso?
SUZUKI
Mas é da
natureza humana perguntar sobre questões evidentes por si mesmas e,
freqüentemente, nós nos encontramos inextricavelmente envolvidos nelas. Não há dúvida
alguma sobre o tamanho da estupidez, mas é essa própria estupidez que abre um
domínio de cuja existência nunca tínhamos suspeitado até agora. A estupidez é,
em outras palavras, a curiosidade, e a curiosidade é aquilo que Deus implantou
no espírito humano.
SUZUKI
Provavelmente,
o próprio Deus estava curioso por conhecer a si mesmo e criou o homem, e está
tentando satisfazer sua curiosidade através do homem.
SUZUKI
Embora possa
ser assim, aqui está o título deste livro, Viver através do Zen, e vamos ver o
que significa. Para fazer isso, descendemos de Deus, da Vida Divina, e fazemos
uso do intelecto ou da consciência humana como se desenvolveu em nós, pois essa
é a única coisa que distingue, essencial e caracteristicamente, a nós humanos
do resto da criação. O intelecto revela-se, por várias formas.
SUZUKI
Um mestre disse: "O Zen é como um
pote de óleo fervendo" .
SUZUKI
Outro mestre disse: "Os macacos
sobem na árvore e, com suas caudas,
segurando um ao outro, penduram-se do topo".
SUZUKI
E outro mestre: "É um pedaço de
tijolo quebrado".
Outro ainda: "Eu levanto minhas
sobrancelhas, movo meus olhos".
Um monge
jardineiro aproximou-se certa vez do mestre e manifestou-lhe o desejo de ser
iluminado no Zen. O mestre disse: "Venha novamente quando não houver ninguém por perto,
e eu lhe direi o que ele é". No dia seguinte, o monge chegou outra vez,
observou que não havia ninguém perto e implorou-lhe para revelar o segredo.
Disse o mestre: "Aproxime-se mais de mim", e o monge chegou mais
perto dele. Disse então o mestre: "O Zen é algo que não pode ser
transmitido por palavras".
SUZUKI
Conta-se
uma história semelhante de Suibi. Certa vez ele foi abordado por Reijun (d.C.
875-919) de Seiei-san que desejava saber sobre o segredo do Zen, como fora
levado para a China por Bodi-Darma. Disse-lhe Suibi que o segredo lhe seria
transmitido quando não houvesse ninguém nas proximidades. Quando ele voltou,
Suibi desceu de sua cadeira e levou o ansioso indagador para debaixo da alameda
de bambus onde tudo estava quieto. Suibi disse, apontando os bambus: "Veja
como estes são compridos e estes são curtos".
Estranhas
definições essas, e não há concordância, nem ao menos como tentativa, entre
elas. De fato, há tantas definições como há mestres, desde o início do Zen. E
sobre o Buda, então, que é considerado como o primeiro mestre? Têm elas nutrido
o único e o mesmo Buda?
Quando
perguntaram a um mestre a respeito de quem era o Buda, ele respondeu: "O
gato sobe no poste". O discípulo confessou sua inabilidade em compreender
o sentido dessas palavras e o mestre disse: "Se você não compreende,
pergunte ao poste".
Um monge
perguntou: "O que é o Buda"?
Reikwan
de Useki-san pôs a língua de fora e mostrou-a a ele.
O monge fez uma reverência.
O mestre disse: "Para com isso; o
que você viu ao fazer sua reverência"?
Replicou
o monge: "Tudo isso deve-se à bondade de seu coração, pois mostrou-me o
Buda por intermédio de sua língua".
Disse o mestre: "Ultimamente tenho
uma fenda na ponta de minha língua".
Um monge perguntou a Keitsu de
Kwaku-san: "Quem é o Buda"?
O mestre esbofeteou-o e o monge o
mestre.
Disse o mestre: "Há uma razão para
você me esbofetear, mas não há tal razão para eu tê-lo esbofeteado".
O monge
não soube responder, conseqüentemente o mestre esbofeteou-o novamente e
correu-o para fora da sala.
Yero
perguntou a Sekito (700-790) : "Quem é o Buda"? Sekito disse:
"Você não tem a natureza do Buda". "E sobre aquelas criaturas
serpeantes, então"?
"Elas
possuem a natureza de Buda".
"Se
é assim, como é que eu, conhecido como Yero, não possuo a natureza do
Buda"?
"O mestre disse: "Justamente
porque você não reconheceu" .
Um monge
perguntou a Gi-an de Tanka-san: "Quem é o Buda"?
"Quem
é você"? Perguntou o mestre.
"Se
é assim, não há nenhuma diferença"?
"Quem
lhe disse isso"?
O poste ou o
pilar freqüentemente aparecem no mondo [ Forma de perguntas e respostas do Zen] do Zen,
pois é um dos objetos comuns à vista no mosteiro. Um monge perguntou a Sekito:
"Qual é a idéia da visita de Bodi-Darma a este país"? Disse o mestre.
"Pergunte ao poste". O monge confessou que não comprendera. O mestre
disse: "Estou em pior situação quanto a isso".
Das respostas dadas às perguntas "O que é o
Zen"? e "Quem é o Buda"? podemos avaliar qual a espécie de
ensino do Zen. A forma em que o Zen concebe o Buda não permite nenhuma
uniformidade da parte de seus seguidores, e o método adotado por cada mestre
para fazer com que seus indagantes compreendam o que ou quem ele é tende a um
absurdo que vai além da inteligência humana. Embora o Zen possa afirmar ser uma
forma, ou mesmo a essência, do Budismo, isto não parece levar à mais leve
indicação do que realmente seja.
Se formos julgar o Zen do ponto de vista do nosso
senso comum, sentiremos o chão desaparecer sob nossos pés. O nosso assim
chamado modo racionalista de pensar aparentemente não tem uso para avaliar a
verdade ou a falsidade do Zen. Ele está inteiramente além da percepção da
compreensão humana. Portanto, tudo que podemos declarar sobre o Zen é que sua
singularidade está na sua irracionalidade ou no seu ultrapassar da nossa
compreensão lógica. Na verdade, a religião geralmente tem algo que não pode ser
entendido apenas pela lógica e recorre a uma revelação ou aceitação pela fé.
Por exemplo, a existência de Deus, que criou o mundo do nada, não é plausível
logicamente ou demonstrável experimentalmente só podendo ser aceita pela fé.
Mas a irracionalidade do Zen não parece ser da mesma ordem da chamada
irracionalidade religiosa.
O que possui o Zen, perguntamos, que afirma ser a
quintessência do Budismo, para tratar da subida dos macacos na árvore ou na
escalada dos gatos no poste? O que tem ele para tratar do elevar das
sobrancelhas de alguém ou do abrir e fechar dos olhos? Se pedimos ao poste para
explicar o que significa o subir nele, deseja ou pode o poste explicar-nos
isso? O que realmente ganhamos dessas declarações feitas por mestres do Zen?
É verdade que todos eles falam a respeito do Buda e da
verdade do Zen, mas, evidentemente, seus Budas não vão além do gato e do poste,
e nada há neles que nos faça pensar em santidade ou algo sagrado, ou
santificado, idéias que naturalmente associamos ao estado do Buda, ou o objeto
de culto religioso. O gato não está envolvido em um halo, o poste não tem
semelhança alguma com a Cruz.
Quanto
ao oferecimento do mestre em divulgar o segredo do Zen a seus discípulos logo
que estivessem a sós. pode uma verdade espiritual ser comunicada privativamente
de uma pessoa para outra? Quando o discípulo apresentou-se ao mestre, foi-lhe
pedido que se chegasse mais para perto, como se o segredo devesse ser
sussurrado pelo mestre.
Mas nenhum
segredo chegou aos ouvidos dos discípulos, exceto que não devia ser comunicado
pela fala humana. Na realidade foi assim? Havia um segredo além desse? O mestre
não enganou a si próprio quando afirmou que não havia segredo algum no Zen que
pudesse ser comunicado por palavras? E o discípulo não se contradisse quando se
comportou como se ignorasse a verdade do Zen? O episódio todo parece ser apenas
uma farsa. Mas será mesmo? Não há nada profundamente espiritual que, na
verdade, esteja escondido do intelecto, mas revelado no comportamento do discípulo,
assim como o que não foi falado pelo mestre?
No
segundo caso, onde o segredo do Zen é novamente o assunto, o mestre não disse
que não poderia expressá-lo por meio da linguagem humana. Simplesmente apontou
para os bambus e deu sua apreciação quanto ao seu comprimento; ele não disse
uma palavra acerca da mensagem secreta que supostamente teria vindo para o
Reino do Meio por intermédio de Bodi-Darma. Algum segredo foi aqui revelado? Os
bambus aparentemente não transmitem nada para Suibi ou para Reijun. Mas, de
acordo com O Registro, Reijun disse ter sido um lampejo da verdade do
Zen. O que foi isso, então? Os bambus menores são curtos, os bambus maiores são
compridos, e permanecem verdes durante todo o ano e ficam eretos, balançando-se
suavemente quando uma brisa passa sobre eles.
Baso
(-788), um dos maiores mestres do Zen, da dinastia T'ang, foi certa vez
interpelado por um monge que lhe perguntou: "Deixando de lado as quatro
proposições e indo além de uma centena de negações, Mestre, por favor diga-me
qual é o significado da vinda de Bodi-Darma para a nossa terra".
Bodi-Darma
( -528) tradicionalmente é considerado como o primeiro patriarca do Zen na
China; isso significa que ele é considerado como aquele que primeiro trouxe a
idéia do Zen da índia para a China, na primeira parte do século VI. A pergunta:
"Qual é o significado de sua vinda para a China"? vem a ser o mesmo
que perguntar: "Qual é a verdade do Zen-Budismo"? Ora, o monge que
fez a pergunta desejava saber se havia alguma coisa que fosse especificamente
conhecida como a verdade do Zen, o que está absolutamente além do entendimento
humano. As quatro proposições são: (1) afirmativa, (2) negativa, (3) nem
afirmativa nem negativa, (4) tanto afirmativa. como negativa, "centena de
negações", que na realidade se refere a cento e seis declarações negativas
no Lankavatara sutra, significa uma negação por atacado de toda
declaração que possa ser feita sobre qualquer coisa.
A pergunta do monge, portanto, equivale a perguntar
sobre uma verdade absolutamente última, se poderia haver alguma assim, quando é
categórica e consistentemente negado. O Zen está, na realidade, na posse de tal
coisa? Se é assim, o monge procurava obter isso do mestre. Na. terminologia
cristã, tal verdade última é Deus ou a Divindade. Quando alguém vê um ou outra,
uma busca espiritual ou religiosa chega a um fim; uma alma inquieta encontra
seu lugar de repouso final. A pergunta do monge não é realmente uma pergunta
infundada; ela brota dos recessos mais profundos de seu coração que busca a
verdade. Qual foi a resposta de Baso? Foi esta:
"Estou cansado hoje e não posso contar-lhe. Fale
com Chizo (Chihtsang) e pergunte". O monge foi até Chizo, um dos
discípulos chefes de Baso, e repetiu a pergunta. Disse Chizo: "Por que não
pergunta ao próprio mestre'?"
O monge
replicou: "Foi o próprio mestre que disse para vir aqui e lhe perguntar
sobre isso." Chizo disse: "Estou com dor de cabeça hoje e não lhe
posso contar nada a nesse respeito. Vá ao Irmão Kai (Hai) e pergunte." O
monge
dirigiu-se a Kai e repetiu a pergunta. Disse Kai: "Realmente, não
compreendo nada disso." O monge finalmente voltou a Baso e relatou tudo o
que acontecera. Baso observou d seguinte: "Chizo tem a cabeça branca,
enquanto que a de Kai é preta."
O que podemos deduzir deste "incidente" ou
desta "história" (Yin-Yuan) do Zen, aparentemente, é apenas o
sentimento de cansaço do mestre, sendo que um dos dois discípulos tinha uma dor
de cabeça e o outro não compreendia, e, finalmente o comentário displicente do
mestre sobre os cabelos grisalhos de um e o pretume dos do outro. Todos estes
são incidentes comuns de nossa experiência diária, que parecem não ter muito a
ver com objetos tão profundas como a verdade, Deus ou a realidade. E se eles
todos concordam que o Zen poderia dar-se ou se daria ao que busca
fervorosamente a verdade, depois de muitos anos de sérias investigações,
valeria a pena realmente estudar o Zen? A mensagem secreta do Bodi-Darma que
veio para a China no século VI pondo em risco sua vida sobre as ondas violentas
dos mares do sul - ela não vai algo além disso?
O que quer que seja, vemos que a singularidade do Zen
não consiste apenas na sua óbvia irracionalidade, mas também em seus métodos,
na maioria incomuns, de demonstrar a verdade. A respeito da irracionalidade, na
sua maioria, podem as classificar as proposições religiosas. Por exemplo,
tomemos a afirmação cristã de que Deus enviou seu filho único para salvar a
humanidade da condenação final. Para dizer o mínimo, isto é irracional.
Supõe-se que Deus seja onisciente e onipotente e devia estar completamente
cônscio do destino do homem ao criá-lo, se assim é, por que se deu ou teve de
se dar ao trabalho de sacrificar seu único filho gerado para salvar
a
humanidade pecadora? Deixando de lado sua onisciência, não poderia ele provar
sua onipotência por outros meios que não o de dar seu filho único para ser
sacrificado na Cruz? Se Deus fosse racional como o são os humanos, ele não
precisaria ser tão irracional a ponto de se transformar em um de nós para
provar seu infinito amor de pai para conosco. Estas e muitas outras
interrogações irracionais podem ser levantadas contra a concepção cristã de
Deus e seu plano de salvação.
Pode-se dizer que as irracionalidades do Zen são de
ordem diferente das do cristianismo, porém são tão irracionais apenas quanto ao
que se refere à ilogicidade. Diz o Zen: "Seguro uma espada em minhas mãos
e fico com as mãos vazias. Monto em cima de um boi e estou caminhando a
pé." Isto não é tão ilógico e contra a experiência humana como quando os
cristãos afirmam que Cristo levantou-se de sua tumba três dias depois da
crucificação?
Não há dúvida alguma de que o método do Zen de tratar seus assuntos é
único na história do pensamento. Não usa idéias ou conceitos; apela diretamente
para a experiência concreta. Se o monge não consegue despertar em si próprio a
consciência da verdade assim transmitida da maneira mais viva, pessoal e
prática, ele tem de esperar por outra oportunidade. Enquanto isso, pode ir
percorrendo a imensidão do pensamento abstrato.
Todas as outras religiões ou ensinamentos espirituais
tentam provar a verdade de suas irracionalidades por meio, de dedução ou
indução, através de abstração, racionalização e postulação; mas os mestres do
Zen se recusam a fazer isso. Eles apenas põem em liberdade sua "ação
direta" e dão suas lições da forma mais efetivamente pessoal. Se o monge
não pode captá-la no momento, o mestre espera pela próxima ocasião, quando o
próprio monge sente um anseio interno de abordar o mestre, desta vez,
provavelmente, com outra forma de. pergunta.
Quando Suiryo abordou Baso com a pergunta: "Qual
é a verdade do Zen assim convertida por Bodi-Darma?" o mestre golpeou-o,
derrubando-o. Esse tratamento rude despertou-o para a verdade do Zen. Quando
ele restabeleceu seu equilíbrio, bateu as mãos, rindo alto e disse:
"Que estranho! Todos os samadis, toda a
profundidade inesgotável que aparece nos sutras são, de uma só vez
reveladas no ponto de um único fio de cabelo!" Então, ele faz uma
reverência para o mestre e retira-se. Posteriormente, ele costumava dizer:
"Desde que experimentei o pontapé de Baso, não pude parar de rir."
Quando lhe perguntavam qual era a verdade última do budismo, ele simplesmente
esfregava as mãos e ria alto.
Há no Zen uma grande quantidade de atos violentos,
bofetadas e golpes com a vara. Quando um monge é tratado de maneira tão
inesperavelmente sem-cerimônia, muitas vezes ele abre os olhos para a verdade
do Zen. Mas, freqüentemente, ele segue sem dizer, o golpe não é proveitoso e
deixa o indagante ainda num dilema.
Tokusan (780-866), um grande monge da última disnatia
T'ang, destacou-se por balançar seu bastão. Seu dito predileto era: "Não
importa o que você diga, seja 'sim' ou 'não', você obterá somente as mesmas
trinta reverências." Certa vez, ele fez um sermão em que dizia: "Se
você pergunta, é culpado; se não pergunta, também está errado." Um monge
dirigiu-se a ele preparado para fazer sua reverência, quando Tokusan bateu-lhe
com o bastão. O monge protestou:
"Eu estava justamente indo
fazer-lhe minha reverência, por que esse golpe?"
"Se eu esperasse que você abrisse a
boca, o golpe não teria, absolutamente, serventia alguma", disse Tokusan.
Kotei foi um discípulo do Kisu Chijo de Kosan. Um
monge de Kassan veio até ele e, quando ele estava fazendo suas reverências cerimoniais,
o mestre bateu-lhe. O monge falou: "Estou aqui para receber sua instrução
específica, por que esse golpe, Mestre?" Assim dizendo, ele se curvou
novamente..
O mestre aplicou-lhe outro golpe e levou-o' para fora do mosteiro.
O monge voltou a Kassan, a quem fez um relato completo
de sua entrevista com Kotei. Disse-lhe Kassan: "Você entendeu Kotei?"
"Não, Mestre", respondeu o mongei Logo após, Kassan observou:
"Foi sorte que você não tenha entendido; se isso tivesse acontecido, eu
ficaria mudo."
Quando Chosa estava apreciando a lua com um de seus
irmãos monge, Kyosan do século IX, este último observou: "Cada um possui
isto, e é uma pena que não saibam utilizá-lo de modo completo." Chosa
falou: "Posso fazer com que você utilize isto?" Replicou Kyosan:
"Tente, ó monge irmão." Em conseqüência disso, Chosa deu um forte
pontapé em Kyosan, derrubando-o. Levantando-se do chão, disse Kyosan: "ó
meu Irmão monge, você não é realmente como um tigre selvagem."
A literatura Zen narra um grande número de tais relatos
que podem assustar, afastando-os, alguns dos não-iniciados. Eles podem pensar
que o Zen é apenas uma forma de disciplina cheia de rudeza e de irracionalidade
e, provavelmente, muito daquilo é puro contra-senso. A afirmação do Zen de que
é a essência do ensinamento budista pode ser mera fanfarronice. Essa crítica
talvez estivesse certa se a percepção do crítico não pudesse ir além da
superficialidade. Mas o fato histórico é que o Zen tem florescido desde o seu
estabelecimento na China, há mais de mil anos, e que ele ainda é, no Japão, uma
ativa força. espiritual na formação de sua cultura. É possível concluir, depois
disso, que pode haver algo vital no Zen que apele diretamente para as nossas
mais profundas experiências espirituais.
II
Outro fator singular no método Zen de ensinar é o que
é conhecido como mondo. O discípulo faz uma pergunta (mon) e o
mestre responde (to ou do), mas às vezes é ao contrário, e a
resposta não se dá sempre em palavras. Pois esse perguntar e responder dá-se na
região do pensamento concreto, e não da abstração e do raciocínio. Não há
nenhuma troca extensa de palavras entre o mestre e o discípulo, nenhuma
argumentação discursiva. O mondo geralmente pára com a sentença do
mestre, declaração epigramática, ou sua exibição de força física, e nada leva a
um sério desenvolvimento de sutilezas lógicas. Se o discípulo não compreender o
mestre imediatamente, ele bate em retirada, e esse é o fim da entrevista
pessoal.
O Zen nunca se encarrega da conceitualização. Ele vive
numa percepção intuitiva ou estética e sua verdade sempre é demonstrada por
meio de contato pessoal, o que é a significação do mondo. O golpear
derrubando, ou esbofetear a face, ou vários outros atos de "rudeza"
ou violência são o resultado natural de contato pessoal. Pode parecer estranho
que o entendimento do Zen surja desses feitos, mas, visto que o Zen não se
baseia num raciocínio lógico e numa persuasão conceitual, seu entendimento deve
vir da própria experiência pessoal. E deve ser compreendido que a experiência
pessoal significa não apenas a experiência do mundo dos sentidos, mas também a
daquele dos acontecimentos que tomam lugar no domínio psicológico de uma
pessoa.
Rinzai (-867) fez certa vez um sermão para o efeito
seguinte: "Há um homem verdadeiro sem um título na massa de sangue
vermelho; ele sai e vai através dos portões dos sentidos. Se você ainda não o
testemunhou, olhe, olhe!"
Um .monge dirigiu-se a ele perguntando:
"Quem é esse homem verdadeiro sem um título?"
Rinzai desceu de sua cadeira e agarrou
seu cofre ordenando: "Fale, fale!"
O monge
hesitou e depois disso exclamou: "Que espécie de avarento sujo é esse
homem verdadeiro sem um título!" Assim dizendo, Rinzai voltou para seu
quarto.
A idéia de um "homem verdadeiro sem
um título" é bastante clara, bastante geral; mas quando um testemunho de
sua presença em cada um de nós é reclamado, Rinzai lança mão não da
verbosidade, mas de um encontro pessoal direto. É dada ao indagante a tarefa de
testemunhar sua existência tal como se apresenta. Não há dialética abstrata
aqui, e sim um fato de experiência viva, repleta de carne e sangue. Quando não
podia tê-lo do monge cuja mente estava trabalhando no plano da elaboração
intelectual, ele empurrava-o para fora e chamava-o de velho avarento sujo.
"O único homem verdadeiro sem nenhum título" virou do avesso para ser
um desprezível pedaço de madeira. Este é o destino do racionalista. E é somente
nas mãos do mestre do Zen que a "folha insignificante da grama na estrada
passa a brilhar na cor dourada do Buda de dezesseis pés de altura."
Rinzai, isto é,
o Zen exige
isso de cada um de nós. .
A esse respeito, pode-se dizer que Cristo pertence à.
escola do Zen-Budismo, quando ele declara que "A não ser que vós comais
comigo a carne do filho do homem o bebais seu sangue, vós não tereis vida em
vós" (João, VI, 53). O que quer que o filósofo ou o espiritualista possam
dizer sobre nossa existência corporal, nós temos fome
quando não comemos, sede quando não há o. bastante para beber - esses são fatos
concretos da experiência humana. Todos nós somos feitos de carne e sangue, e é
nisso que a verdade do Zen vê a luz.
Por esse motivo, o mestre do Zen descreve-o como sendo
um pote de óleo fervendo. Esta é a autêntica experiência de cada estudante do
Zen, pois ele tem de mergulhar seus dedos nele, prová-lo na essência do seu
coração. Novamente descreve-se o Zen como a vida de "sete jornadas e oito
tombos" o que significa um estado de confusão indescritível; a idéia é que
se alcança o Zen somente depois de atravessar uma série de crises mentais e
espirituais. Aprender a verdade do Zen não é uma ginástica espiritual fácil.
Tem-se de comer a própria carne e beber o próprio sangue.
A
propósito desse comentário, acrescentarei algumas palavras. Quando se diz que a
vida espiritual surge do fato de se comer a carne de Cristo e de beber seu
sangue, isso pode soar grosseiramente materialista, mas, do ponto de vista do
Zen, é um grande engano fazer distinção entre a mente e o corpo, e
considerá-los irrevogavelmente diferenciados um do outro. Esse ponto de vista
dualístico da realidade tem sido um grande bloco vacilante para o nosso
'Correto
entendimento da verdade espiritual.
As observações seguintes podem ajudar o leitor a
esclarecer o ponto de vista do Zen em relação a uma concepção advaitística
[não-dualistica] da realidade.
Quando perguntaram a Chosa, um disCípulo
de Nansen (748-834): "O que é o Buda?" ele replicou: "Ele não é
outro se não este corpo físico nosso." É significativo que Chosa tenha
falado do corpo físico (rupakaya) que se identifica com o Buda, e não a
mente, ou a alma, ou o espírito que popularmente apresentamos para
identificação nesses casos. Não se associa, em geral, a condição do Buda à
corporalidade; é algo um tanto à parte de nossa presença material que comumente
relegamos a uma ordem mais baixa da existência. Chosa colocou seu dedo no ponto
mais vulnerável do nosso racionalismo de senso comum. Um dos objetos do
treinamento do Zen é esmagar a idéia dualística da mente e corpo. O mestre é
enfático a esse respeito. O seguinte trecho é citado na Transmissão da
Lâmpada (fasc. X) :
Não há aqui
nenhum muro de obstrução que resista a seu modo de fazer,
Não há nenhum
vácuo que permita livremente sua passagem:
Quando
seu entendimento alcançar este ponto,
A mente e
o corpo recuperam sua identidade primária própria.
A natureza do
Buda manifesta-se de um modo muito conspícuo.
Somente aquele
que se demora com a natureza é que não a vê:
Ao estarmos
iluminados quanto à individualidade de todos os seres,
Que diferença
há entre minha face e a face do Buda?
Alguém
perguntou a Chosa: "Como podemos transformar a montanhas, rios e a grande
terra, e reduzi-los em sua Individualidade?"
Retrucou
o mestre: "Como transformar essa individualidade e fazer com que volte a
ser montanhas, rios e a grande terra?"
sábado, 25 de maio de 2013
sexta-feira, 24 de maio de 2013
NAVIO ADAMASTOR
"Em 1854, o Visconde de Mauá bloqueava as nações estrangeiras
de navegarem o Amazonas e resistiu até sua falência. O Santa Maria de la Mar
Dulce cruzava com o Adamastor poucos meses depois de ter nascido
José e para onde, a fim de salvá-lo da malária, que dizimava as crianças da
região, foi ele trasladado e transbordado com sua mãe, seguindo para
Inglaterra, e de lá para Estrasburgo, onde foi deixada a criança com o tio
Levy, com quem morou os anos de sua infância, primeiro na Praça Kleber n0 9,
depois em cima da Pharmacie du Dome, até que, em 1894, é trazido de
volta ao Manixi, onde fica mais 3 anos até partir de vez, em 97, para Paris,
onde morou no Boulevard Saint Germain, e de onde só retomou com 15 anos de
idade, em 1905, pouco antes do ataque dos Numas, que foi em meados de novembro.
Em 1906 foi de regresso para Paris, para os estudos" O AMANTE DAS AMAZONAS.
UM CORAL DE LIRAS
Um coral de liras
(Foto de M. Furtado)
Um coral de liras
Rogel Samuel
Começa pela música de Mahler, a quinta sinfonia, que nos faz sonhar, que nos mergulha nas profundezas de uma sonoridade não sei por que azul, para mim azul, e Mahler nos conduz aos melhores poemas de V. Solteiro, aos seus encantos sonoros e imagísticos, como nessa "Escrevedeira...", onde um pássaro toca o seu "lírico canto, sulca a sua rejubilante melopéia", doce como o néctar das maduras amoras, toca com seu bico afinado e agudo, pontiagudo como um flautim "revolteando o vazio" do ar, as vibrações do ar, cordas da sua fuga, da suas partituras, o poema de V. Solteiro ensombra as grades que aprisionam os homens e os faz livres, como livre é o seu pássaro, como livre são os acordes daquela sinfonia de Mahler... sinfonia que lembra Solti, que lembra "Morte em Veneza"... onde morremos de felicidade...
Tecelã das velas do lírico
canto
a escrevedeira
sulca
na sua rejubilante melopeia
um coral de liras
O seu fino e pontiagudo bico
flautim revolteando o vazio
vibra no ar
as cordas da fuga
Doce como o néctar
das maduras amoras
a frutuosa harpa que tanje
esculpe no xisto
um umbral
de deslumbramento
Prelúdio de novas partituras
o brilho do seu trinado
ensombra as grades
que agrilhoam
o peito dos homens
Poema de V. Solteirohttp://aarquitecturadaspalavras.blogspot.com/
(Foto de M. Furtado)
Um coral de liras
Rogel Samuel
Começa pela música de Mahler, a quinta sinfonia, que nos faz sonhar, que nos mergulha nas profundezas de uma sonoridade não sei por que azul, para mim azul, e Mahler nos conduz aos melhores poemas de V. Solteiro, aos seus encantos sonoros e imagísticos, como nessa "Escrevedeira...", onde um pássaro toca o seu "lírico canto, sulca a sua rejubilante melopéia", doce como o néctar das maduras amoras, toca com seu bico afinado e agudo, pontiagudo como um flautim "revolteando o vazio" do ar, as vibrações do ar, cordas da sua fuga, da suas partituras, o poema de V. Solteiro ensombra as grades que aprisionam os homens e os faz livres, como livre é o seu pássaro, como livre são os acordes daquela sinfonia de Mahler... sinfonia que lembra Solti, que lembra "Morte em Veneza"... onde morremos de felicidade...
Tecelã das velas do lírico
canto
a escrevedeira
sulca
na sua rejubilante melopeia
um coral de liras
O seu fino e pontiagudo bico
flautim revolteando o vazio
vibra no ar
as cordas da fuga
Doce como o néctar
das maduras amoras
a frutuosa harpa que tanje
esculpe no xisto
um umbral
de deslumbramento
Prelúdio de novas partituras
o brilho do seu trinado
ensombra as grades
que agrilhoam
o peito dos homens
Poema de V. Solteirohttp://aarquitecturadaspalavras.blogspot.com/
quinta-feira, 23 de maio de 2013
DESFAMILIARES - de Leila Miccolis
Convite para o lançamento do "Desfamiliares" de Leila Miccolis (obra completa de 1965 a 2012), na Livraria da Travessa de Ipanema, (R. Visconde de Pirajá, 572 - tel.: 3205-9002), às 19 horas, dia 7 de junho.
O ARCO DO AZUL INFINITO
O arco do azul infinito
Rogel Samuel
O arco do menino é de plástico, é de ouro, ferro, prata, e quem o sabe é de sonhos, de flores, de estrelas, de algas, de claridade do sol... mas não são de pássaros, nunca nunca, pois os pássaros pousam no ar do arco quando o menino dorme, no ar do arco das árvores como guerreiros cansados de azul, do azul silêncio do espaço infinito...
O MENINO E O ARCO
(Enviado por Amélia Pais)
O menino tem um arco.
É de plástico.
(Mas é de ouro
ou de ferro
ou de prata
- quem o sabe?)
E com ele
o menino colhe flores
e estrelas e algas
da funda claridade.
Nunca pássaros.
Esses, pousam no arco
enquanto o menino dorme
sob as árvores,
como um guerreiro cansado.
Glória de Sant'Anna, em Um Denso Azul Silêncio
* Nascida e falecida em Portugal, viveu longos anos em Moçambique
Rogel Samuel
O arco do menino é de plástico, é de ouro, ferro, prata, e quem o sabe é de sonhos, de flores, de estrelas, de algas, de claridade do sol... mas não são de pássaros, nunca nunca, pois os pássaros pousam no ar do arco quando o menino dorme, no ar do arco das árvores como guerreiros cansados de azul, do azul silêncio do espaço infinito...
O MENINO E O ARCO
(Enviado por Amélia Pais)
O menino tem um arco.
É de plástico.
(Mas é de ouro
ou de ferro
ou de prata
- quem o sabe?)
E com ele
o menino colhe flores
e estrelas e algas
da funda claridade.
Nunca pássaros.
Esses, pousam no arco
enquanto o menino dorme
sob as árvores,
como um guerreiro cansado.
Glória de Sant'Anna, em Um Denso Azul Silêncio
* Nascida e falecida em Portugal, viveu longos anos em Moçambique
quarta-feira, 22 de maio de 2013
A VIDA TEM POUCOS PRAZERES
A
VIDA TEM POUCOS PRAZERES
Rogel
Samuel
Sim, poucos prazeres tem a vida. Um é
degustar o chá da tarde na companhia da Doutora X na Confeitaria Colombo. Pena
que a Doutora seja mulher tão difícil, e ocupada. Iria eu todas as tardes lá, à
Colombo, se pudesse ela ir comigo. Não pelo que ali se come: um frugal chá
preto, com “torrada Petrópolis”. Chá com leite, à moda indiana e nepalesa. Mas
pela conversa amena, os olhares vagos, a decoração da casa. Pelo que aquela
Confeitaria Colombo é, desde 1894, com seus salões “art nouveau”, os grandes
espelhos belgas, as vitrines e molduras de jacarandá, as bancadas de mármore
italiano, o mobiliário. O chá servido em porcelana branca, com o logotipo
brasonado “CC” e friso dourado. Os talheres antigos, há poucos anos ainda de
prata. Tudo do que gosto, do luxo antigo, do ar aristocrático, do lugar onde,
em 1920, houve um banquete para o Rei Alberto, da Bélgica, e em 1968 para a
rainha Elizabeth II, da Inglaterra. Lugar freqüentado por Bilac, cujos poemas
da “Tarde” me fazem sonhar. Ali estiveram Getúlio e Juscelino; Lacerda e Negrão
de Lima, este tão elegante governador. E eu espero que meu querido Presidente
Lula, um dia, venha ali tomar o seu chá das cinco, agora que está sete quilos
mais magro, ele que deve ser, no futuro, reconhecido como o melhor presidente
do Brasil. Sim, amo aquele lugar à moda antiga, amo aqueles salões de um
requinte de luxo do passado, do decadente passado, o que me lembra Manaus, o
que acende minhas ascendências, meu orgulho de brasileiro meio índio, pois todo
índio é orgulhoso, altivo e nobre; da aristocracia indígena do Amazonas, onde
os índios eram cavalheiros nobres. Sim, a vida tem poucas delícias, o paraíso
não é aqui. Não. Mas na Colombo ainda estamos em paz, apesar da péssima
acústica daquele enorme espaço. É muito barato. Gasto pouco mais de dez reais,
e estou como um lorde, ou como um velho amazonense da Manaus da época de meu
avô Maurice, ainda que não vestindo a casaca, o colete e o chapéu. Se quiser
gastar e almoçar, peço o “Filet Mignon à Duchesse”, quem sabe o “Paillard Duque
de Windsor”, ou os “Mignonnettes à Dijon”. Também existe o “Filet de frango à
Cordon Bleu”. O “Peru à Bilac” tem úmidas fatias de peito de peru, acompanhadas
por deliciosa farofa de frutas e risoto ao champagne. Como sobremesa podemos
ter a “Bavaroise de Damasco”, a “Charlotte”, a “Pêra Belle Hélène”, ou umas
“Gaufrettes”. Sou um ser deslocado, ali, à moda parnasiana, vivo naquele mundo
construído e selado por um outro lado e modo, e, se tivesse talento lingüístico,
pela imaginação poética, gostaria transformar o simples chá da Colombo numa
especial página, como aquelas saídas da pena de Proust. Porque a Confeitaria
ainda ostenta o seu deslumbramento, os seus múltiplos reflexos, as
quinquilharias de seus espelhos de cristal, as suas janelas e bandeiras das
portas transformadas em lúcidas placas de prata rutilante numa edificação de
dois andares, de procedimento art-nouveau,
cingida de finos gradis torneados em convulsionadas e violentas volutas de
gavinhas elegantes de efeminado contorno, travestidas, descomedidas, decoradas
pela curva da escadaria de mármore, torta e enfática, escura e em pleno gozo
das réplicas vilas européias, de um poder surdo e solipsista, ágil e terrível,
que se expressa nas paredes de estuque e pinturas com irisações de um falso
ouro esverdeado e escuro, na entrançadura de seus ritmos de galhadas e
folhagens de uma vegetação alucinada e japonesa subindo por aquelas formas até
o teto multirefletido nos visotados espelhos e luminosos lustres, e nas flores
estilizadas de modo a evocar a lembrança de algum exótico prazer. Por isso amo
aquele lugar e os que ainda nos restam, poucos, como o Bar Luiz e o Lamas.
Talvez seja a idade. Talvez a insanidade.
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