A VÃ FEITIÇARIA
Rogel Samuel
O feiticeiro Lêdo
Ivo escreveu:
Invento a flor e, mais que a flor, o orvalho
que a torna testemunha desta aurora.
Invento o espelho e, mais que o espelho, o amor
onde eu me vejo, vivo, num sarcófago.
E a vida, este galpão de sortilégios,
deixa que eu a invente com palavras
que são dragões vencidos pela mágica.
E não me espanta que eu, sendo mortal,
sujeito à injúria de tornar-me em pó,
crie uma rosa eterna como as rosas
inexistentes nesta flora efêmera.
Sonho de um sonho, a vida, ao vento, escoa-se
em vãs lembranças. Minha rosa morre
por ser eterna, sendo o mundo vão.
Encontro este poema,
que li quase menino, encontro ao acaso, folheando a «Poesia completa» de Lêdo
Ivo, poema que recito quase de cor, como tudo por que a gente apaixona na
adolescência, mas que, hoje vejo, não nunca lhe penetrei os labirintos de
sentido contidos escondidos entre aqueles misteriosos versos, meio herméticos,
daquela feitiçaria... Mas necessita a poesia ser realmente compreendida? Porque
eu continuo lendo, hoje relendo, entoando esses versos e vejo que bailo na musicalidade de suas sílabas, seu invento,
seu encanto, e me delicio pelo que nada sei, hipnotizado por suas metáforas
feiticeiras.
Os primeiros versos
dizem:
Invento a flor e, mais que a flor, o orvalho
que a torna testemunha desta aurora.
Ora, agora, vejo,
perturbado, emocionado, que o sujeito poético inventou a flor, o orvalho, o
espelho, o amor, a vida, a rosa eterna, a rosa!, a rosa mística!, o sonho, o
sonho de um sonho, a vida, o vento, a rosa eterna, o mundo vão...
Sim, eu logo que tomo
este gigantesco volume das «Poesias completas» (são 1099 páginas!), logo eu
senti que o encontraria, por uma intuição de leitor deste Ivo - mas logo me
desviei e comecei lendo o «Estudo introdutório» do poeta Ivan Junqueira, que me
convenceu e agradou. Ivo é, segundo Ivan, aquele «lírico elegíaco», cujo enigma
é não seguir o breviário estético de sua geração de 45, ainda que, como todos
os outros, nunca se libertou da «idéia parnasiana» que em todos nós nasce,
morre e renasce... Desde Rimbaud. Aliás, diz Ivan Junqueira, que o verso
«desabo em ti como um bando de pássaros» poderia ter sido escrito por Rimbaud,
assim como:
Muda-se a noite em dia
porque existes
feminina e total entre
os meus braços
E, diríamos nós, que
os versos:
e o tempo entronizado
sai da mó
que transforma as
austrálias em diademas
São dos mais belos
daquela poética rimbaudiana de que todos os poetas nunca se libertaram de todo,
por serem contagiados pelo barco bêbado da invenção da poesia moderna - e Lêdo
Ivo também, mas logo se libertou, posteriormente.
Cheio de sortilégios é
Lêdo Ivo poeta, feitiçaria nada vã da invenção das palavras, criatura de uma
rosa eterna que vai além dessas floras efêmeras - eterna porque morre, e morre
por ser eterna neste mundo vão - curiosa antítese que me lembra uma página da
filósofa Hannah Arendt em que fez a distinção entre eternidade e imortalidade (ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro,
Forense/Rio de Janeiro, Salamandra/São Paulo, Ed. Universidade São Paulo. 1981.
339p.)
A distinção,
que Hannah Arendt estabelece, entre imortalidade
e eternidade, esclarece parte da
alienação do mundo moderno
Pois Imortalidade significava continuidade no tempo, através da realização de grandes feitos,
obras e feitos notáveis. Por sua capacidade de produzir obras e de realizar
feitos imortais, os mortais podiam, através das marcas de sua passagem,
participar da natureza dos deuses. Na Antigüidade Clássica, havia os que ambicionavam
à fama e, portanto, à imortalidade, e havia os que, satisfeitos com os prazeres
que a natureza lhes oferecia, viviam e morriam como animais. Nesses dois casos,
uma alienação se percebe e uma falta de compreensão da natureza do real.
Outra coisa era
a experiência do eterno, própria do
filósofo, no sentido estrito do termo, isto é, aquela visão da eternidade,
ainda que passageira, momentânea. Diz Arendt que depõe muito a favor
de Sócrates o fato de ele não ter escrito nada, porque não estava preocupado
com a fama, ou seja, com a imortalidade. O filósofo vivia a experiência do
eterno. Se escrevesse a sua experiência do pensar, ambicionaria Sócrates a
imortalidade, ou seja, procuraria deixar
para a posteridade algum vestígio de si: assim é a fama. (Ironicamente se
admite hoje poder alguém ser «famoso» sem ter feito nada, sem ter produzido
nada, alguém que nada fez, que não deixaria nenhuma obra própria, como por
exemplo um locutor de TV).
A experiência
do eterno, diz Arendt, só pode ocorrer fora da esfera das ambições humanas. Se
morrer é deixar de estar entre os homens, ela, a experiência do eterno, é
morte. Seu contrário seria a intenção da fama, da imortalidade. Eternidade e
imortalidade estão, deste modo, em lados integralmente opostos e
contraditórios.
Entretanto, tal
experiência, a percepção do Eterno, diz Hannah Arendt, tem de ser rápida,
porque ninguém poderia suportá-la por muito tempo. Nós, seres condicionados e
mortais, não podemos encarar o eterno na sua eternidade, senão indireta e
rapidamente, numa intuição momentânea. O eterno está fora do nosso mundo. A
imortalidade, ao contrário, reside entre nós, é criação humana. Ao contrário, o
eterno não é condição de possibilidade humana, nem é tocado pela ambição
humana. O eterno advém ao homem quando este nada deseja, na imobilidade do
pensamento atento, silenciado pela vida contemplativa. Os poetas do Zen sabiam
disso. Pois o eterno não pode ser convertido em atividade da linguagem humana,
é uma iluminação fortuita que não se consegue senão com a intuição do poético,
com a observação pura dos movimentos do pensar. O eterno é positivo, nasce quando há radical negação. Não pode ser aprisionado
pelo discurso, mas representa a liberdade e libertação do que não pode ser
objetivado pelo discurso científico - o eterno é a poesia.
A Imortalidade, entretanto, foi impiedosamente abalada com a queda do Império
Romano. A destruição de Roma mostrou cruelmente que nenhum produto do homem
pode ser considerado eterno. A nossa feitiçaria é vã.
Sonho de um sonho, a vida, ao vento, escoa-se
em vãs lembranças. Minha rosa morre
por ser eterna, sendo o mundo vão.
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