AS CORES DO PURGATÓRIO
Rogel Samuel
Em dado momento da “Divina comédia”,
Dante escreve assim:
Bailando, à destra roda,
sobre a via,
vinham três damas.
(Purg., XXIX, 121/2)
Lá atrás, ao chegarem no Paraíso
Terrestre, Virgílio diz que não pode mais orientá-lo na caminhada e que mais
além não pode acompanhá-lo. A partir dali, de então, Dante deveria conduzir-se
pelo seu próprio juízo: “contempla o sol, que à tua frente luz, / observa a
relva, as plantas, as umbelas, / que a terra, à própria força, aqui produz”.
Valho-me da tradução de Cristiano
Martins que tanto amo, para mim a melhor tradução do texto em português (Villa
Rica, Belo Horizonte, 7ª ed.).
Virgílio diz que ele deve prosseguir
até encontrar Beatriz: “imponho-te o laurel da liberdade!”
Mas ainda estamos no Purgatório!
Porém Dante não fica não só. Uma
dama, Matelda, lhe aparece e com ela ele avança pelas margens do rio Letes, em
sentido contrário à corrente, quando vê um “fulgor” que ilumina o seio da
floresta.
O brilho vem de sete candelabros
acesos.
Como em todo o poema, as coisas são
fantásticas, milagrosas.
Pois “sete árvores douradas, de
repente, / pareceram-me erguer-se...” Não eram árvores, eram os candelabros.
Logo mais adiante, diz ele dessa
maneira: “eis vi surgir quatro animais, coroados”, que se interpretam como os
quatros evangelhos: São João (águia), Marcos (leão), Lucas (touro), Mateus
(homem). Cada animal era dotado de seis asas...
No meio disso aparece um Grifo (simbolizando
Cristo) puxando um carro (alegoria da Igreja). O Grifo tinha asas de ouro,
brilhava como o sol.
O surpreendente cortejo começa assim.
Mais três damas aparecem.
Uma era vermelha. Brilhava tanto que
“mal se percebia”. Outra era “de um verde vívido trajada / que lembrava a
esmeralda fulgurando”.
E a terceira era branca, vivíssima.
As três damas simbolizam as três
virtudes teologais: a caridade vermelha; a esperança verde; e a branca fé.
De repente aparecem mais quatro
damas, bailando em festa à esquerda do carro, todas de cor púrpura (a da frente
tinha três olhos sobre a testa).
Eram as quatro virtudes cardeais: a
prudência (que tinha três olhos), a justiça, a temperança e a fortaleza.
Nesse cortejo seguiam-se dois
velhos, lentamente.
Um devia ser um médico; o outro um
soldado.
Vêm a seguir mais quatro personagens
que aparecem, de difícil interpretação, que acompanham a seqüência. E além
disso logo surge mais um quinto, que avança como se estivesse dormindo...
*
* *
Quando o carro enfim chega em frente
ao poeta narrador, acontece algo da maior significação e surpresa, da mais
surpreendente:
estalou um trovão, e
aquelas gentes,
como os que têm o passo
interceptado,
estacaram, com as tochas
refulgentes.
Por quê?
O que aconteceu tão de repente?
Por que a poderosa procissão parou
assim, sob um trovão?
Que grandioso fato aconteceu ali,
naquele caminho, capaz de fazer parar Cristo e a Igreja, as três virtudes, as
quatro virtudes cardeais, a medicina, o exército e mais todos? Quem era assim tão maior e melhor, e mais
puro do que tudo isso, que sob um trovão punha a parar o sublime cortejo da
caridade, da esperança e da fé?
Quem foi aquela divina aparição que
“firme estacou o séqüito veraz” e se colocou além de todos e sobre todos a
ponto que o cortejo pára e todos se voltam para trás a fitar o carro puxado
pelo grifo, que simbolizava a Igreja, e assim era pois a verdadeira
representação da paz e da salvação?
Quem era?
Era Beatriz, a amada, que
aparecia...
Numa verdadeira heresia, não é a
Igreja, ou Cristo, quem vai guiar o Poeta para o Paraíso.
Quem vai conduzi-lo é Virgílio e
Beatriz.
A poesia e o amor.
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