Holderlin vê as heras amarelas e as rosas. A paisagem sobre a lagoa. Holderlin parece um poeta zen. Ele vê. Cisnes Graciosos enfiam a cabeça na água. Na água plácida, santa, calma. Mas ele parece que sonha. Pois não é verão, mas inverno. Não há água no lago, nem cisnes, nem flores, nem calor, nem sol. Os muros estão mudos e frios. São muros. As bandeiras congelam.
METADE DA VIDA
Heras amarelas E rosas silvestres Da paisagem sobre a Lagoa.
Ó cisnes graciosos, Bêbedos de beijos, Enfiando a cabeça Na água santa e sóbria!
Ai de mim, aonde, se É inverno agora, achar as Flores? e aonde O calor do sol E a sombra da terra? Os muros avultam Mudos e frios; ao vento Tatalam bandeiras.
Filme sobre Monge Budista preso pelos chineses no Festival do Rio.
O Fogo sob a neve
Titulo Original: Fire Under the Snow Titulo em Inglês: Fire Under the Snow Classificação:16
Direção: Makoto Sasa Roteiro:
Elenco:
Fotografia: Vladimir Subotic, Lincoln Maguire, Makoto Sasa Montagem: Milica Zec Música:
País: Estados Unidos / Japão Ano: 2008 Duração: 75min
Sinopse:
O monge budista Palden Gyatso nasceu em 1933, e assistiu ainda jovem à invasão da China ao Tibet. Na época, foi preso junto com muitos outros monges em manifestações pacíficas de protesto. Durante os 33 anos em que esteve detido pelo governo chinês, viveu em prisões e campos de trabalho forçado. Sua fé no budismo permitiu sua sobrevivência após décadas de tortura. Em 1992 foi solto e fugiu para a Índia, onde encontrou com o Dalai Lama. Hoje vive lá com outros exilados tibetanos e é ativista na luta pela libertação do Tibet. O filme conta com farto material de arquivo da invasão do Tibet.
Biografia do diretor:
Nasceu no Japão e estudou Mídia na Universidade de Keio. Em 1998, mudou-se para Nova York, onde fez mestrado em Estudos de Mídia na New School. Dirigiu diversos curtas-metragens e trabalhou como assistente de edição e montadora de longas-metragens de ficção e documentários. Hoje, realiza vídeos para um canal de streaming da Sony no Japão, o website World Event Village. Este é seu primeiro longa-metragem.
Mostra: Limites e Fronteiras
Em Exibição Sábado - 03/10/2009 Espaço de Cinema 2 14:30:00 hs EC250 Sábado - 03/10/2009 Espaço de Cinema 2 21:15:00 hs EC253 Domingo - 04/10/2009 C.C. Justiça Federal 17:15:00 hs JF025 Segunda - 05/10/2009 Est Barra Point 2 16:30:00 hs BP251 Quarta - 07/10/2009 Est Vivo Gávea 5 17:30:00 hs GV563 Quinta - 08/10/2009 Est Vivo Gávea 2 22:40:00 hs GV270
O mar paira sobre a imaginação do cemitério, o mar recomeçando sempre, onda após onda, o mar profundo túmulo coberto de diamantes, abismo do sol, límpidas obras, ondas de uma eterna causa, o tempo o sonho, a sabedoria, tesouro e templo de Minerva?, massa calma e nítida, o mar dos primeiros poetas, o mar de Homero, o mar heróico, como nos primeiros versos desse CEMITÉRIO MARINHO de Valéry na tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correa, tradução clássica:
Esse teto tranqüilo, onde andam pombas, Palpita entre pinheiros, entre túmulos. O meio-dia justo nele incende O mar, o mar recomeçando sempre. Oh, recompensa, após um pensamento, um longo olhar sobre a calma dos deuses!
Que lavor puro de brilhos consome Tanto diamante de indistinta espuma E quanta paz parece conceber-se! Quando repousa sobre o abismo um sol, Límpidas obras de uma eterna causa Fulge oTempo e o Sonho é sabedoria.
Tesouro estável,templo de Minerva, Massa de calma e nítida reserva, Água franzida, Olho que em ti escondes Tanto de sono sob um véu de chama, -Ó meu silêncio!... Um edifício na alma, Cume dourado de mil, telhas, Teto!
Diz Bloch que “o próprio processo do mundo é uma função utópica”.
O que ele quis dizer com isso?
Todo planejamento e transformação do mundo visa a uma utopia: é a Aurora que ainda ronda o mundo. Os anseios, as enteléquias. Segundo Aristóteles, “o resultado ou a plenitude ou a perfeição de uma transformação ou de uma criação, em oposição ao processo de que resulta tal criação ou transformação – é a enteléquia. Isto é uma energia. A forma ou a razão que determinam a transformação ou a criação de um ser”. A energia é “segundo Aristóteles, o exercício mesmo da atividade, em oposição à potência da atividade e, pois, à forma”.
A utopia é uma função pública. O que persegue o bem, o que acha que a sociedade se transforma.
O Brasil mudou, mas a grande media parece que ainda não percebeu. O que há na media: ela perdeu o poder de definir o real.
“Todas as novas modas já não servem para nada”. No mundo pós-moderno cada um vai por si.
Tudo se esvai. Fantasmas,
Benvenuto Celline conta que fantasmas foram projetados na fumaça no Coliseu. Assim, “Le néant” de Montparnasse dizia: todo progresso ruma para o nada.
A teoria da decisão filosófica de Euryalo Cannabrava
Rogel Samuel
Mais uma vez tento reler o livro de meu mestre Euryalo Cannabrava. Livro difícil, mas extraordinário.
Cannabrava tentava publicá-lo quando era meu professor, na pós-graduação.
Ele um dia entrou furioso na nossa sala e contou que tinha ida ao gabinete do amazonense Artur Cesar Ferreira Reis, que era então presidente do Conselho Federal de Cultura, autoridade que dirigia o Instituto Nacional do Livro em plena era da ditadura militar.
- Começa que eu tive de marcar audiência e ele me deixou esperando na ante-sala, contou irado.
- Quando entrei no gabinete com os manuscritos do livro debaixo do braço, ele, sem levantar os olhos dos papéis que assina, perguntou:
- Que o senhor deseja, professor?
- Eu não agüentei: dei o murro na mesa dele e disse: "Exijo respeito!"...
E por aí foi a briga.
- Certamente o livro não será publicado... - disse Cannabrava.
Mas foi.
Euryalo Cannabrava é um dos mais importantes filósofos do Brasil. Mario de Andrade o chamava de Mestre. Professor catedrático do Colégio Pedro II, professor-visitante das Universidades de Columbia, de Londres (a convite de A. J. Ayer). Era professor de Cibernética e Lógica Matemática. Autor de diversos livros, como "Descartes e Bergson"(que tenho, com dedicatória), "Elementos de metodologia filosófica", "Ensaios Filosoficos", "Estética da Crítica" e outros.
O curso de Cannabrava a que assisti foi surpreendente. Ele contava casos de sua vida pessoal, de suas amizades, de sua formação. Disse que teve uma preceptora alemã quando criança, e que caçou búfalos selvagens na ilha de Marajó.
Seu nome é mundialmente conhecido nos dicionários de filosofia e ele se correspondia até com Bertand Russel.
O difícil era acompanhar suas aulas quando começava a discorrer sobre a lógica matemática...
Morreu hoje (24) pela manhã a Drª. Eugenia Torenco Beça, que há exatos 22 dias perdeu o marido, o poeta Anibal Beça. Parada respiratória e refluxo foram às causas da morte, ela estava internada na unidade 2 do Hospital Santa Júlia – na Av. Boulevard Álvaro Maia, zona centro-sul de Manaus. O corpo seguirá para o necrotério do próprio hospital e posteriormente encaminhada a uma funerária para ser velada por familiares e amigos.
A manhã(Anibal Beça)
A manhã nasce entre as muitas janelas invadindo meu corpo fatigado, sede dos meus caminhos sem cancelas, na luz de muitos astros albergados.
Casa onde me recolho das mazelas, dos louros, derroteiros, lado a lado, para ouvir de mim, franco, das seqüelas: Ecce Homo! Eis o triste camuflado.
Essa tristeza de há muito em residência às vezes se constrói em face alegre máscara sem eu mesmo em aparência
num carnaval escuro no seu frege. O que me salva, cor nessa vivência, é saber que a poesia é quem me rege.
outubro 3 de uma manhã chuvosa na primavera amazônica.
Aníbal Beça -N.13 Set 1946/F. 25 de Agosto de 2009
Morreu hoje, às 15 horas, no Rio de Janeiro, o poeta amasonense IRANÁRIS FERREIRA DA SILVA (Manaus 4 de abril 1912 - 24 de setembro 2009), o Iran Fersil. Ele foi jornalista no Rio (A noite) e professor de matemática na Escola Técnica de Manaus.
Ele tinha 97 anos e meio e era casado há 75 anos com sua esposa, Eulice Esteves da Silva hoje com 93. Morreu dormindo, de parada cardíaca. Deixou os filhos Maíra Esteves, Nicolino Marinho D'Antona, Renata D'Antona e duas netas, a conhecida escritora Eulícia Esteves (Coordenadora de Música Popular da Funarte) e Isabela Esteves Albrecht, arquiteta, que mora em Paris.
Iranáris era meu amigo há 50 anos. Sua produção poética é muito grande, mas toda publicada nos jornais de Manaus. Ele nunca publicou um só livro. Ele dizia que sua mãe era uma índia Baré.
Era do nosso Grêmio Gregório de Matos. Leia:
POUCO SONHO E MUITO AMOR
Diz-me baixinho, amor; diz, segredando, palavras de afeto e de carinho, para que eu vá dormindo de mansinho, depois desperter mais e mais te amando. Vem em meus olhos, lado a lado, andando, para que eu não me sinta tão sozinho; vem, sem receio, que eu serei bonzinho, porque sem ti me quedarei chorando. E nosso par será mui venturoso: símbolo de amor, de gozo e de ventura que tanta inveja então há de causar. Serás feliz, querida, eu bem ditoso, no lindo sonho cheio de ternura que de tão belo não devia findar!
VOLTA!
Você voltou! Por que você voltou? Melhor seria sempre ser ausente. Pois que mudada está, mui diferente, não parecendo aquela que me amou.
Perdeu, mesmo, o jeito de inocente que, noutros tempos, tanto me encantou... Sorriso, fala... em fim tudo mudou... Como possível foi, tão de repente?
Volta! Já não desejo ter agora o mesmo amor que tive outrora, que fêz minhalma desvairada, louca.
Vai! Segue, em paz, seus floridos caminhos!... Que outros possam colher os seus carinhos, que de o fazer minha vontade é pouca!
MINHA VIDA
É minha vida um grã vergel talhado por fortes ventos das desilusões; os flóreos ramos com que hei sonhado brotam flôres de decepções.
Nos seus canteiros, já não há trinado a passarada, tão belas canções... somente anum, em canto magoado, toca de perto os nossos corações.
Minhalma errante, passa, preocupada, colhendo, aqui, ali, pétalas caídas que já não têm um pouco de perfume...
Assim, meu coração, de caminhada, está deserto de amizades tidas, guardando um resto de feral ciúme...
A MORENA E A ROSA
Dei-lhe uma rosa perfumada e bela colhida há pouco num dos meus jardins tenho açucenas cravos e jasmins mas nenhum’outra se compara a ela.
Nem todas flôres têm felizes fins mas minha rosa que destino o dela: iluminando o peito da donzela dando realce a todos os seus quindins.
No lindo quadro se nos afigura uma bela e meiga, outra linda e pura que enfim nos deixa a alma duvidosa
pois entre a flor e a escultural pequena não sei se a rosa que enfeita a morena ou se a morena que realça a rosa.
Quando somos jovens temos naturalmente muitos amigos, espontaneamente. São colegas de rua, de colégio, de faculdade.
Na meia-idade diminui o número de amigos.
Mas na velhice (e eu me incluo aqui) são raros os amigos. Muitos já morreram. Outros mudaram-se, moram longe, em outra cidade, ou país.
Também o velho fica chato, fala menos, reclama mais, sente dores, seu corpo não agüenta longos encontros nos bares, pára de beber, tem de fazer dieta e por aí vai.
As velhas amizades permanecem. Mas há um problema: as pessoas mudam, ficam reacionárias, repetitivas, conversar com um velho às vezes é já saber o que ele vai dizer.
E há velhos que param de ler, ou só se limitam a reler os velhos livros já sabidos.
Algumas pessoas até ficam desagradáveis, só falam de filhos e netos, ou de doença.
Mas para mim o pior velho é aquele cujas opiniões são formadas pela televisão, pela imprensa em geral (que no Brasil mente sem pudor).
"A amizade é um refúgio, diz Dugpa Rinpochê, uma comunidade sagrada, fraterna. É um dos "refúgios preciosos" de que falam os diferentes Budas. No tumulto do mundo moderno, o homem e a mulher devem encontrar refúgio. Quando se encontrou refúgio, os problemas desaparecem como um vôo de pássaros perturbados pela pedra. Perdem o seu peso, e põem-se a dançar.
"Precisarias da força ascética do eremita, do mestre de sabedoria, para te libertar a ti próprio da cegueira e da ilusão. Hoje, o homem moderno não pode fazer nada sem a ajuda dos outros. Não vive nas solidões do Tibete, fora do mundo, protegido dos profanos pelo recinto sagrado do mosteiro. É o diálogo, a partilha, a reciprocidade que nos libertam, e nos trazem de novo à nascente Única, comum a todos os seres", conclui ele.
Abandonar o aconchego da lareira, do lar, do ninho, e lançar-se no sonho, no erguer das asas, abandonar a felicidade, a paz da vida que apenas dura, a espera da sepultura, o contentamento e lançar-se para as conquistas, para a Conquista, para o realidade do Quinto Império.
Que seria o Quinto Império?
O Quinto Império foi imaginado por Vieira: os quatro Impérios eram dos Assírios, dos Persas, dos Gregos e dos Romanos.
Pessoa diz que os quatro primeiros impérios são o Império Grego, Romano, o Cristianismo e a Europa.
Seria a Era de D. Sebastião.
Oh, triste de quem fica em casa, feliz com seu lar. "Vive porque a vida dura". Não tem alma, ou nada lhe diz mais que a espera da sepultura.
Ser descontente! Viajar! Perder e perder-se em países! Um dia a terra será o Teatro do Dia Claro do Quinto Império... parece que o Quinto Império deve ser procurado, não construído.
Será que o Quinto Império não seria o próprio Fernando Pessoa?
Triste de quem vive em casa, Contente com o seu lar, Sem que um sonho, no erguer de asa Faça até mais rubra a brasa Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz! Vive porque a vida dura. Nada na alma lhe diz Mais que a lição da raiz Ter por vida a sepultura.
Eras sobre eras se somem No tempo que em eras vem. Ser descontente é ser homem. Que as forças cegas se domem Pela visão que a alma tem!
E assim, passados os quatro Tempos do ser que sonhou, A terra será teatro Do dia claro, que no atro Da erma noite começou.
Grécia, Roma, Cristandade, Europa-- os quatro se vão Para onde vai toda idade. Quem vem viver a verdade Que morreu D. Sebastião?
Alain no seu delicioso "Propos sur le bonheur" diz que com mau humor ninguém consegue nada.
O mau humor, diz ele, é mais causa do que efeito. Ele até arrisca a dizer que uma das causas das doenças dos humanos é o esquecimento da gentileza, da polidez. O mau humor é, para ele, uma violência do corpo sobre si mesmo.
Aquele que busca a felicidade, que gosta dela, deve aprender a rir.
Mas reagir contra o mau humor não é fácil, quase impossível.
Dizia Chagdud Tulku Rinpochê que o ser humano de mau humor vira porco-espinho: ninguém se aproxima dele. Fica só.
Acredito que a solidão é do solitário, não das gentes - é o solitário quem quer.
Alguns têm o riso fácil e quase nunca se irritam. "Nós temos a liberdade de amar, de escolher. Não és tu quem decide, com as tuas angústias e as tuas contradições, mas a vida soberana que está em ti, aquela a quem os lamas chamam a Grande Deusa", diz Dugpa Rinpochê.
"A felicidade é primeiramente uma disposição de espírito, uma maneira diferente de olhar para o mundo. Chega até nós porque nós a desejamos apaixonadamente, segundo a lei de atração e de harmonia que rege o universo", diz o Rinpochê.
Afinal entre estar irritado, triste e estar feliz a diferença é de uma interpretação.
Os gregos diziam que a eudaimon, que é a palavra para “feliz”, ou eudaimonia, significa “que tem um poder divino (daimon) bem disposto". A felicidade era uma disposição divina, acima das disposições humanas. Algo divino, como para Aristóteles, tem a ver com a auto-suficiência.
"De um modo estrito, o termo "eudaimonia" é uma transliteração da palavra grega para prosperidade, boa fortuna, riqueza ou felicidade", diz Scott Carson. Mas sem a concepção utilitarista de felicidade, apesar de ambas as noções poderem, em alguns pensadores, contar como aspectos da eudaimonia.
A palavra é composta pelo prefixo eu- (bem) e pelo substantivo "daimon" (espírito).
Pode-se dizer que a eudamonia é uma predisposição para a felicidade. E que os gregos de um modo geral entendiam que a eudamonia, ou felicidade, era o fim último da vida, algo que estamos sempre buscando, da vida a finalidade. Seja prazer, riqueza etc.
"Como explicar que aquele pianista que morre de medo antes de entrar em cena depois seja possuído de grande e jubilosa alegria?", pergunta Alain. Talvez porque seus dedos não sabem o que é ter medo, e o medo é um fantasma da sua cabeça. Esse é o sentido do "treinamento" do corpo.
Em tudo podemos nós treinar. Eu escrevo diariamente como "treinamento", como um pianista que depende de várias horas de estudo por dia para poder estar sempre em forma: Quando se senta ao piano, "naturalmente" seus dedos sabem o que fazer e aquilo se torna para ele uma verdadeira natureza, ele naturalizou e se integrou com o piano. Nós somos capazes de muitas coisas desde que treinemos. Como os lutadores treinam e se adestram. E como há uma integração do corpo com a mente, vencemos alguns obstáculos.
Este é o sentido da disciplina.
A disciplina não é uma canga rígida, que estrangula o corpo. Ela permite que nos libertemos constantemente de nós próprios, disse Dugpa Rinpochê.
Creio que sem alegria não há disciplina. Sem prazer.
O maior obstáculo é aquela sensação enorme de um “eu” que há em nossa mente. O “eu” é um fantasma que nos segue como uma sombra.
Quando começamos a nos exercitar, esquecemos temporariamente do “eu”. Aí somos felizes.
Os conflitos, o ódio, a violência, provêm de um sentimento enorme de um eu ferido, nascido de desconhecimento de si mesmo, que gera dor e confusão, disse o Rinpochê.
“Não somos nada, tudo é o que almejamos”, escreveu mais ou menos Heidegger na Floresta Negra.
“Não duvides do teu próprio esplendor interior. Cada ser vivo é uma estrela”, disse Dugpa Rimpochê.
São pensamentos contraditórios. Mas sem a contradição não damos conta da dialética da realidade, diz o materialismo histório marxista.
Li no "Propos sur le bonheur", do lendário filósofo Alain (Paris, Gallimard, 1928), que o Bucéfalo era um cavalo rebelde porque tinha medo da própria sombra. Quando ele foi dado ao jovem rei Alexandre ninguém o podia montar, era terrível.
Alexandre, discípulo de Aristóteles, logo compreendeu a causa e, tomando-o por suas rédeas, fez com que o belo cavalo malígno ficasse com os olhos voltados para o sol até cansá-lo e domá-lo.
Assim, todos os que têm medo. Temem a própria sombra. Temem o próprio bater de seu coração, temem o futuro e porque ignoram a verdadeira causa inventam logo qualquer perigo inexistente.
Alexandre não era somente um guerreiro, mas um filósofo, como seu preceptor. Não tinha medo?
Talvez. Mas, como o seu cavalo Bucéfalo, só se voltava para o sol.
Diz Dugpa Rinpochê que devemos escolher os amigos “pela qualidade das suas almas”, mesmo que eles não partilhem das nossas aspirações e dos nossos projetos. Recomenda que não fiquemos sozinhos, pois precisamos “de uma família humana maior, para abrir o coração”, para libertar-nos. Os Amigos devem ser considerados “como irmãos e irmãs, com os quais partilhamos um segredo”. Podem comunicar-se por silêncios, sonhos premonitórios, intuições.
Para ele os amigos são espelhos dos amigos, se reconhecem uns nos outros, avaliam-se no mesmo espelho e nunca deixam de se amar. “Um é o espelho fiel do outro”, diz. “Fica à escuta dos teus amigos, atento, disponível, como deve estar um irmão, um confidente - então eles formarão à tua volta um círculo mágico, uma mandala protetora”.
É a luz do coração que os junta, diz Dugpa Rinpochê.
Quem consegue entender? Pois disse Dugpa Rinpochê: "Constrói uma ilha para ti e para aqueles a quem amas, um templo, uma fortaleza inexpugnável... mas deixa a tua porta aberta dia e noite".
Que a porta está aberta, da fortaleza inexpugnável, do castelo, do templo, da ilha.
A porta da ilha é o amplo mar, com suas algas e ilhas e vôo de gaivota.
Toda a vez que penso, que vejo o mar me lembro do poema de Sebastião Norões, que foi meu professor de geografia.
“Eu quero é o meu mar, o mar azul. Essa incógnita de anil que se destrança em ânsias de infinito e me circunda em grave tom de inquietude langue. O mar de quando eu era, não agora. Quando as retinas fixavam tredas a incompreensível mole líquida e convulsa. E o pensamento convidava longes, delimitava imprevisíveis rumos viagens de herói e de mancebo guapo. Quando as distâncias fomentavam sonhos. Rebenta em mim essa aspersão tamanha que a imagem imatura concebeu de quando o mar era meu, o mar azul.”
O mar é isso, é a glória do espaço da liberdade, das ânsias de liberdade de voar, o mar antigo. O mar de Austrálias e de luzes. Viagens de Ulisses e de mancebos guapos, de heróis e de barcos bêbados de ondas. O mar dos azulejos de amestistas, o mar que era meu, o meu mar, o mar azul.
Nada mais belo do que isso: ser dono do mar, imaginar-se dono do mar. De quando o mar era meu, essa aspersão ampla e tamanha de tudo, essa viagem de longes, de langues, de anil e de esmeraldas balançantes.
O que seria a mais alta realização? P'ang Yün fixa uma imagem do que seria a mais alta realização. O passado, o presente, o futuro... o tempo é a realização suprema.
A realização é "mente vazia". Sem "saudade" do passado, sem apego ao presente, sem ansiedade pelo futuro. Deixar o presente se apresentar como é. A realidade (os dharmas aqui significam o real da realidade) não tem vida auto-consciente, inerente. A maior penetração é ver que nada "tem vida", nem mesmo o presente (que está passando). O passado não mais existe, o futuro nem ainda é.
E mais: tudo é como é. Não existe nada errado (a ser purificado), nem existe nenhuma ordem a ser mantida. Tudo é, ou está sendo. Tudo está passando (portanto não existe nada, algo que passa não pode ser considerado).
A mais alta realização (P'ang Yün)
O passado já é passado. Não tente recuperá-lo.
O presente não permanece. Não tente tocá-lo.
De momento a momento. O futuro não vem; Não pense nisto Antes.
Tudo que vem ao olho, Deixe que seja.
Não há nenhuma ordem A ser mantida; nenhuma sujeira a ser limpa.
Com a mente realmente vazia Penetrante, os dharmas Não têm nenhuma vida.
Quando você puder ficar assim, Você completou A mais alta realização.
Escreveu Dugpa Rinpochê: "Podes utilizar o instante como uma porta, e deslocar-te no tempo. Tudo é possível. Reencontrar-se com a idade de cinco anos, num quarto de criança, ou no pátio de uma escola, não é uma divagação pouco consistente, nostálgica. Estás realmente nesse quarto de criança, nessa escola, isto é, no Presente dessa época. É o segredo do Instante, a chave de ouro que abre todas as portas: tudo se passa no mesmo lugar, no mesmo tempo, no mesmo momento. Estamos realmente lá, e lá é aqui".
Por que viajar por essa porta? Ver a escadaria da minha escola "Princesa Isabel", em 1948, subindo para aquele espaço, onde D. Ivete Ibiapina nos esperava com seu cantar, e de lá avistar a praça, o espaço, o Ideal Clube, o palacete dos dois pianos, o monumento ao Congresso Eucarístico, e ao longe o rio, o Rio Negro, o Rio Sempre Negro, o Rio para sempre Negro, ameaçador como a morte, no centro do qual tudo gira, num rodopio de vida e de morte, onde tudo desaparece e reaparece, ou melhor, onde nada desaparece sem deixar o seu rastro: "o instante como um vazio rodopiante, no centro da roda da vida e da morte. Esse estado de ser nunca desaparece. Ele é a permanência, o fundamento, e, no entanto, move-se constantemente, sem nunca alterar a sua imobilidade irradiante", diz o mesmo Dugpa Rimpochê.
Escreveu Dugpa Rimpochê: "Mantém o teu espírito permanentemente na alegria do instante e o medo será destruído. Nenhuma noite é tão longa e escura que impeça a alvorada".
Nenhuma noite é tão longa que impeça a alvorada de surgir. Nenhuma noite é tão escura que não deixe de nascer o sol. A obscuridade da noite, por mais sinistra que seja, também passa.
Por que manter-se o espírito no instante?
- Porque o instante passa.
Nenhuma noite é tão longa: o dia nascerá. As épocas mais obscuras da História foram longas noites tenebrosas, obscuras, mas passaram.
O mundo do espírito, o mundo da mente, é o momento presente, onde tudo o ocorre.
"Quando tu andas, abandona-te à estrada, com o espírito calmo, sem tensão nem agitação. A marcha é regeneradora. Utiliza-a como uma meditação", escreveu Dugpa Riompochê.
Caminhar, abandonar-se ao andar, ouvir o caminho, o silêncio do caminho.
A meditação andando é excelente.
No "Manual para a prática da meditação", escreveu BIKKU MANGALO:
"Entre as sessões da prática sentada,o meditador deve procurar um local tranqüilo, onde possa caminhar de lá para cá sem ser perturbado. Não precisa ser muito longo. Mesmo o nosso quarto, se não for pequeno demais, pode servir. Ou um corredor, jardim, salão, etc. O melhor neste exercício é que caminhamos mais lentamente do que o fazemos normalmente. A marcha deve ser, entretanto, tão simples e natural quanto permita sua velocidade. Durante o período de andar, de lá para cá, a atenção deve estar fixa no movimento das pernas e pés".http://caminhodeshantideva.blogspot.com/2009/07/manual-para-pratica-da-meditacao.html
Escreveu Dugpa Rinpochê: "Não oponhas o visível e o invisível, o mundo material e o mundo do espírito. Seria como afirmar que o gelo não é água". Que dizem nossos olhos sobre o visível e o invisível? Onde está o limite que separa, a que podemos chegar, entre o pensável e o além? Eu me lembro de um belo texto de Heidegger sobre a questão desse limite. Heidegger e Wittgeinstein pensaram o limite. "O pensamento contém a possibilidade do estado de coisas que ele pensa. O que é pensável é igualmente possível", escreveu Wittgeinstein. Transcrevo aqui a súmula que fiz para meus alunos da tradução de Authur Gianotti do:
TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS DE WITTGENSTEIN (1918/1921)
Trad. José Arthur Gianotti
Sinopse feita por Rogel Samuel
O mundo
1 - O mundo é tudo o que ocorre. 1.1 - O mundo é o conjunto dos fatos, não das coisas. 1.11 - O mundo é determinado pelos fatos, estes fatos sendo a totalidade dos fatos. 1. 12 - Porque a totalidade dos fatos determina aquilo que ocorre e também aquilo que não corre. 1. 13 - Os fatos, no espaço lógico, constituem o mundo. 1. 2 - O mundo se decide em fatos. 1. 21 - Algo pode ocorrer,ou não ocorrer e todo o resto permanecer igual. 2 - O que ocorre, o fato, é a existência de estados de coisas. 2.01 - O estado de coisas é uma ligação de objetos (entidades, coisas). 2.011 - É essencial para a coisa poder ser parte integrante de um estado de coisas. 2.012 - Em lógica nada é acidental: se a coisa pode aparecer dentro de um estado de coisas é necessário que a possibilidade do estado de coisas esteja previamente inscrito na coisa.
Os objetos
2.02 - O objeto é simples. 2.0201 - Cada enunciado sobre complexos se sobre complexos pode decompor em um enunciado proposições que descrevem integralmente os complexos. suas partes constitutivas e naquelas 2.021 - Os objetos formam a substância do mundo. Eis porque não podem ser compostos. 2.0211 - Se o mundo não tivesse ponto de substância, o fato de saber se uma proposição tem sentido dependeria de saber se outra proposição é verdadeira. 2.0212 - Seria impossível de projetar uma imagem do mundo, verdadeira ou falsa. 2.022 - É evidente que tão diferente que pudesse ser do mundo real um mundo imaginário ele deve ainda assim ter alguma coisa de comum -- uma forma -- com o mundo real. 2.023 - Esta forma estável consiste em objetos. 2. 0231 - A substância do mundo só pode determinar uma forma, e não propriedades materiais já que estas propriedades materiais são representadas pelas proposições, formadas pela configuração dos objetos. 2.0232 - Seja dito de passagem: os objetos são incolores.
Os estados de coisas
2.03 - No estado de coisas os objetos se ligam uns aos outros como elos de uma cadeia. 2.031 - No estado de coisas os objetos se comportam uns em relação aos outros de uma maneira determinada. 2.032 - A maneira pela qual os objetos se ligam no estado de coisas constitui a estrutura do estado de coisas. 2.033 - A forma é a possibilidade da estrutura. 2.034 - A estrutura do fato consiste nas estruturas dos estados de coisas. 2.04 - A totalidade dos estados de coisas existentes é o mundo. 2.05 - A totalidade dos estados de coisas existentes determina igualmente que tipos de estados de coisas não existem. 2.06 - A existência e a inexistência de estados de coisas constituem a realidade. (A existência de estados de coisas nós a chamamos também de fato positivo, sua inexistência de fato negativo.) 2.061 - Os estados de coisas são independentes uns dos outros. 2.062 - Da existência ou não-existência de um estado de coisas não é possível concluir a existência ou não-existência de outro. 2.063 - A realidade total é o mundo.
A imagem
2.1 - Nós nos fazemos imagens dos fatos. 2.11 - A imagem representa o fato no espaço lógico, a existência e a não-existência dos estados de coisas. 2.12 - A imagem é uma transposição da realidade. 2.13 - Na imagem os elementos da imagem correspondem aos objetos. 2.14 - A imagem reside no fato de que seus elementos têm ligações determinadas uns com os outros. 2.141 - A imagem é um fato. 2.15 - O fato de que os elementos da imagem têm ligações determinadas uns com os outros se relaciona ao fato de que as coisas se comportam da mesma maneira umas com as outras. Esta conexão dos elementos da imagem nós a chamamos sua estrutura, e a possibilidade dela sua forma de representação. 2.151 - A forma da representação é a possibilidade de que as coisas se comportem umas com as outras como os elementos da imagem. 2.1511 - A imagem se enlaça com a realidade; ela a atinge. 2.1512 - É como um padrão de medida que se aplica à realidade. 2.15121 - Somente os pontos extremos dos traços que dividem a superfície estão em contato com o objeto a medir. 2.1513 - Segundo esta concepção, pertence igualmente à imagem a relação de representação que a torna uma imagem. 2.1514 - A relação de representação é constituída pelo modo por que os elementos da imagem se coordenam com as coisas. 2.1515 - Estas coordenações são espécies de antenas dos elementos da imagem, pelas quais as imagens entram em contato com a realidade. 2.16 - O fato de ser imagem implica que haja alguma coisa comum entre a imagem e aquilo que ela representa. 2.161 - É necessário que na imagem e naquilo que ela representa haja qualquer coisa de idêntico, para que uma possa:ser uma imagem do outro no sentido preciso do termo. 2.17 - Aquilo que a imagem deve ter de comum a fim de que a possa representar à sua maneira com é a forma da representação. 2.171 - A imagem pode representar cada realidade da qual ela tem a forma A imagem entendida no espaço pode representar tudo o que é espacial, a imagem colorida tudo o que é colorido etc. 2.172 - Entretanto a imagem não pode representar sua própria forma de representação: ela apenas a mostra. 2.173 - A imagem representa seu objeto de fora (seu ponto de vista constitui sua forma de representação); eis por que a imagem representa o objeto de modo justo ou falso. 2.174 - A imagem, porém, não poderia representar-se fora de sua forma de representação. 2.18 - Aquilo que cada imagem, de qualquer maneira que seja, deve ter em comum com a realidade, para absolutamente podê-la representar -justamente ou falsamente -- é a forma lógica, isto é, a forma da realidade. 2.181 - Se a forma da representação é a forma lógica, a imagem se chama imagem lógica. 2.182 - Toda imagem é também uma imagem lógica (entretanto, nem toda imagem é espacial). 2.19 - A imagem lógica pode representar o mundo. 2.2 - A imagem tem em comum com o objeto representado a forma lógica da representação. 2.201 - A imagem representa a realidade porque ela representa uma possibilidade de existência e de não-existência de estados de coisas. 2.202 - A imagem representa uma possibilidade de estado de coisas no espaço lógico. 2.203 - A imagem contém a possibilidade do estado de coisas que ela representa. 2.21 - A imagem concorda ou não com a realidade: ela é fiel ou infiel, verdadeira ou falsa. 2.22 - A imagem representa aquilo que ela representa independentemente de sua verdade ou de sua falsidade; por meio de sua forma de representação. 2.221 - Aquilo que a imagem representa constitui seu sentido. 2.222 - No acordo ou no desacordo do sentido da imagem consiste sua verdade ou sua falsidade.
O signo proposicional
3. A imagem lógica dos fatos constitui o pensamento. 3.001 - "Um estado de coisas é pensável" significa: nos podemos fazer-nos dele uma imagem. 3.01 - A totalidade dos pensamentos verdadeiros constitui uma imagem do mundo. pensamento. 3.02 - O pensamento contém a possibilidade do estado de coisas que ele pensa. O que é pensável é igualmente possível. 3.03 - Nos não poder1amos pensar nada ilógico porque dessa forma teriamos de pensar ilogicamente. 3.031 - Alguém disse que Deus poderia tudo criar menos aquilo que contrariasse as leis lógicas. Com efeito, nós não poderíamos dizer como seria um mundo "ilógico". 3.12 - Chamo signo proposicional ao signo pelo qual exprimimos o pensamento. 3.144 - É possível descrever situações, impossível entretanto nomeá-las. (Os nomes são como pontos; as proposições são como flechas, elas têm um sentido). 3.202 - Os signos simples empregados nas preposições são chamados nomes. 3.221 - Eu não posso nomear os objetos. Os signos os representam. Eu só posso falar dos objetos. Eu não saberia pronunciá-los. Uma proposição só pode dizer de uma coisa como ela é, não o que ela é. 4.001 - A totalidade das proposições é a linguagem. 4.023 - Por meio da proposição a realidade é fixada enquanto sim ou enquanto não. A realidade é completamente descrita por ela. Assim como a descrição de um objeto se dá segundo as suas propriedade externas, a proposição descreve a realidade segundo suas propriedades internas. A proposição constrói o mundo com a ajuda de andaimes lógicos. 4.116 - Em geral tudo o que pode ser pensado o pode ser claramente. Tudo o que se deixa exprimir, deixa-se claramente. 4.12 - A proposição pode representar a realidade inteira, mas não pode representar o que ela deve ter em comum com a realidade para poder representá-a -- a forma lógica. Para podermos representar a forma lógica seria preciso nos colocar, com a proposição, fora da lógica; a saber, fora do mundo. O que se exprime na linguagem não podemos expressar por meio dela. A proposição mostra a forma lógica da realidade. Ela a exibe. 4.1212 - O que pode ser mostrado não pode ser dito.
Mudaria o Natal ou mudo iria Mudar sempre o menino o mundo em tudo? Ou fui só quem mudei, e meu escudo Novidadeiro, múltiplo, daria Ao mudadiço mito da alegria Em noite tão mutável jeito mudo? O homem é mudador, muda de estudo, De mucama, de verso, pouso, dia, Porque a muda modula esse desnudo Renascimento em palha, e molda e afia O instrumento da troca, o fim miúdo, A noite amena erguendo-se em poesia. Mudei eu sempre sem saber que mudo Ou somente o Natal me mudaria?
Depois de um elogio de Neuza Machado ao poema de Walmir Ayala abaixo, volto àqueles versos de mãos limpas de ouro, mas que sobrevivem a cada manhã fabricando seu próprio sol, rei pássaro matinal que tenta no desespero voar, e se pergunta, pária, que se condena ao estado de rei-mendigo onde claudica, ele, como pássaro, abre a sua canção ao espaço (oblíquo) de seu desusado jardim, demodê, "o coração já não se usa" (disse um poeta), pois não sendo ele-mesmo um jardineiro do chão, faz dos astros as suas flores a cada aurora, mar onde mergulha, mar onde adere, e onde naufraga, invertido (os mastros se mergulham primeiro, ao naufragar), e na sua esquadra feita de só de quilhas, no peso dessas quilhas está seu ouro, sua riqueza, suas luas, as luas do seu reino, as luas do seu reino de estrelas, que se desbobram cada madrugada como um pálio de párias, que poeta!
CANTO DO REI
Rico de ouro não sou, porém. fabrico o sol cada manhã, estendo penas (pássaro matinal) e atinjo antenas de desespêro no meu vôo ubiquo. Se tu, pálio de párias, me condenas à rude mendicância onde claudico, abro a minha canção no espaço oblíquo das tuas superadas açucenas. Jardineiro não sou. Feitor dos astros, recrio minha aurora de aderências na prematura submersão dos mastros. Nas quilhas dêstes barcos que me sobram, é que o sol dos meus ouros se conforma, e as luas do meu reino se desdobram.
O papel em branco pede o poema, o papel, pressagia o sonho, o papel, incita à escrita, o papel, nítido e branco, é uma superfície branca, de uma vida nova, que ainda vai nascer, o papel, onde nada existe, nem está escrito, o papel, me deixa vigilante, em silêncio experto, no sem-pensamento, o papel, onde me deito, em que espero lento, pingo na tinta, como que desenho, o papel, linhas finas magras, requebradas linhas, onde me descrevo, o papel, os meus dedos finos, parecem se alegram, como estar na praia, roupa de brim branca, sob o sol lavada, o papel, etc.
O PAPEL EM BRANCO
João Cabral de Melo Neto
Esta folha branca Me prescreve o sonho; Me incita ao verso Nítido e preciso.
Não é a morte Que a faz deserta; É branca de vida Ainda por nascer.
Eu me refugio, Nessa sala nua Onde nada existe Que o tempo gaste.
Fico em silêncio, Vigilante, desperto. Ah, não ter pensamento, Palavras ou obras.
Que amanhã esqueça (Mortes parciais) Que amanhã descubra (De mim mesmo o próximo).
Nessa folha branca, Em desenho me deito, Magro ser de linhas E dedos finos.
Pareço estar alegre De me saber na praia, Roupa de brim branco, Camisa lavada;
Ou do sol, que não é Lâmpada que se acende Para afugentar os sonhos Que povoam o quarto.
Essa folha branca É também paisagem De que sei traçar Toda a geografia.
Tudo aí existe Possível e futuro: Acidentes de terreno De trânsito e amor.
Nessa folha branca Um menino um dia Descobriu-se livre De tudo inventar.
Os cabelos nos olhos Não deixavam ver Que era menino triste Sempre por chorar.
Menos quando um lápis Entre os dedos sujos De tinta, viajava livre Nesse mapa virgem.
Nessa folha branca Agora, poeta, escreve Versos que contêm Sempre a palavra: branco.
O poema no corpo Se aproxima tímido Para grafar o mundo Que deseja branco.
Sem compreender Que o poema, talvez, Seja o deserto branco Que sua mão destrói.
(Donde pois o tédio Que é o verso feito? Por que só arrependimento Vem da folha escrita?)
Ante a folha branca Impossível é evitar O pensamento de sal, De luz, de saúde.
Nem sempre esse sol É o sol natural, É o sol de aspirina, Pequenos discos brancos.
Mas é sol: espanta Os fantasmas, e as sombras Fogem de sob as coisas Como ao meio-dia.
Sou de uma geração que cultuava o poeta e crítico de arte Walmir Ayala. Grande poeta hoje esquecido nas vagas gavetas empoeiradas dos sebos e das antigas casas. Ayala era inteligente, ágil, meio gordinho (quando o vi). Aliás a única vez que o vi pessoalmente foi na sala de aula do mestre Alceu Amoroso Lima. Ayala assistiu ao curso de Cultura Brasileira do mestre Alceu, junto com outras personalidades. Sentado discretamente ali atrás, entrava e saía em silêncio, discreto, elegante, moderno. Ayala foi o primeiro intelectual moderno do Brasil, no sentido de sua pessoa e no seu modo de vestir, de ser, de ousar, rompendo uma tradição machista. Era um poeta. Um poeta excelente. Creio que nunca será esquecido.
CANTO DO REI
Rico de ouro não sou, porém. fabrico o sol cada manhã, estendo penas (pássaro matinal) e atinjo antenas de desespêro no meu vôo ubiquo.
Se tu, pálio de párias, me condenas à rude mendicância onde claudico,
abro a minha canção no espaço oblíquo das tuas superadas açucenas. Jardineiro não sou. Feitor dos astros, recrio minha aurora de aderências na prematura submersão dos mastros.
Nas quilhas dêstes barcos que me sobram, é que o sol dos meus ouros se conforma, e as luas do meu reino se desdobram.
"Não existe a oposição noite e dia, passado e futuro. O sol e a lua brilham ao mesmo tempo. As coisas que não se vêem têm também a sua luz", escreveu Dugpa Rinpochê.
Estamos no mesmo tempo presente, onde passado e futuro se encontram e se manifestam. Os três tempos são um só, a vida só tem uma face: a presença, o instante presente. Não existe a oposição entre noite e dia, passado e futuro, sol e lua. Tudo está aí, ao mesmo tempo está aí, estamos ao mesmo tempo em vários lugares do mundo. Não há divisão entre eu e você, entre sujeito e objeto, entre isso e aquilo. Tudo é um só elemento, brilha na mesma luz, soa na mesma música, canta a mesma canção. O modo do mundo é sua unidade.
Diz de Khrisnamurti, o filósofo indiano: "Ninguém pode aprisionar um homem livre. Podem arrancar-lhe os olhos, pô-lo no fundo da masmorra, mas interiormente ele é livre".
Como é isso? Que é a liberdade? Como medir o espaço da liberdade? É possível, a liberdade? Quem é livre não pode voltar à prisão nunca. Lá ele continua livre. O grande medo dos governos e das ditaduras é o homem livre. Ele está livre de crenças, de parâmetros, de conceitos, do seu próprio saber, da verdade, da religião, da moral, das marcas do passado.
Livre do passado, ele é livre de tudo, até livre de si mesmo, de seu conceito de "eu".
Livre do certo e do errado, da tradição e do erro, ele deve feito de luz, da luz da vacuidade, da luminosidade absoluta dos mil sóis.
"O sol do meio-dia, na sua alegria, a sua apoteose, brilha para toda a gente. Distribui prodigamente as suas riquezas. Mantém-te no zénite da tua vida, e serás inesgotável, para ti e para os outros.
Não é necessário ter um domínio total de si, um conhecimento profundo do coração, para dar aos outros. O dom mantém-se na superfície dos lábios, ao virar de um gesto. É fácil de levar. Cresce na inocência e na luz. Partilhar, é multiplicar as ocasiões de felicidade.
A alegria não é uma paixão humana, violenta, que se instala por um breve instante e desaparece imediatamente. Ela é a sabedoria inerente ao ser humano, a luz do coração, o seu cintilar na vida de todos os dias" diz Dugpa Rinpochê.
Quem bem vive rindo brilha para toda a gente, distribui sua melhor riqueza, sua luz, sua felicidade, espalha e deixa um rastro perfumado de felicidade, de brilho.
Ele recomenda mantermo-nos no zênite de nossas vidas, ou seja, sempre no nosso clímax, para dar aos outros o nosso brilho e a nossa luz.
Essa luz se mantém no que os lábios dizem, na gestualidade.
A alegria não deve ser passageira, mas devemos aprender a mantê-la, é uma espécie de sabedoria humana.
Certamente aqueles dias em que estive na bela casa de minha amiga Maíra foram dias felizes. Principalmente as praias, Malibu, e as outras. Foram 15 dias de farra. E Hollywood, que era bem perto, com suas belas calçadas com e sem fama, cheias de gente bonita e feliz. Jovens com carros esportes conversíveis, caríssimos, nos bares. Todo mundo parece muito rico, ali. Ou parecia. A vida luminosa, transparente. Subimos com Maíra até aquele letreiro "Hollywood", que fotografei. Éramos bons turistas, fazíamos tudo com alegria.
Até um templo budista visitamos, uma gompa gelugpa. Estava fechada, mas o encarregado abriu para que visitássemos.
Vida estranha, imagens vivas. Não, não se repetem.
Hoje falo de um lugar, de um Shopping: o Hollywood and Highland Center, em Hollywood, onde fui várias vezes com minha amiga Maíra, que lá estava morando, e agora voltou para o Brasil.
Ele tem um enorme e horroroso Elefante. Uma estátua gigantesca, perto do Kodak Theatre.
O Elefante é o seu signo, e dispõe de um Cartão Elefante.
Quando a mente está em paz o mundo também está. Nada é real, nada ausente, nada se apega à realidade nada se apega à vacuidade, você não é santo ou sábio, apenas alguém que completou o seu trabalho.
P'ang Yün (龐蘊 Hõ Un) (The Enlightened Heart 34)
É possível? O mundo é o reflexo do que eu penso. A paz é algo interno, e vacuidade, diz o poema. Nada se apega a realidade, nem a santidade nem a sabedoria, só a naturalidade. Quem é o iluminado? Apenas alguém "que completou o seu trabalho".