domingo, 31 de janeiro de 2010
Wilson Martins morre aos 87
Wilson Martins morre aos 87
Rogel Samuel
Wilson Martins morreu no sábado, aos 87.
Ele era um crítico excelente, crítico da cultura brasileira.
Isento de influências de amizade, foi o primeiro a nos incluir e nos citar em sua gigantesca obra, com a nossa "Crítica da escrita".
Morava em Curitiba, e morreu em decorrência de complicações cirúrgicas, cinco dias após sofrer uma operação para extração da bexiga.
Estava internado no Hospital Nossa Senhora das Graças, também na capital paranaense. Não deixa filhos.
O corpo está sendo velado no cemitério Luterano, em Curitiba, até às 17h. Em seguida, será encaminhado a um crematório, conforme seu desejo.
Wilson Martins nasceu em São Paulo, em 1921.
Sua carreira acadêmica tem passagem por universidades norte-americanas.
Lecionou na Universidade de Nova York durante 26 anos, até se aposentar, em 1992.
Sua obra literária inclui 12 volumes do livro "História da Inteligência Brasileira", onde estamos citado, e ele recebeu o prêmio Jabuti e o Machado de Assis.
Escreveu em "O Globo" e "Jornal do Brasil".
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Wilson Martins morre aos 87
sábado, 30 de janeiro de 2010
poema pelo haiti
poema pelo haiti
Rogel Samuel
ai! haiti
que inimigos tens, secretos
feitos de homens, feito de deuses?
monstruosidades calam em teu leito
mudas a cada grande dor teu enorme pleito
pela vida, pelas águas, pela multidão de
teus feitos
desde a colônia francesa de são domingos
desde a revolução francesa
desde teu líder Toussaint L'Ouverture
que derrotou a França e a Inglaterra
preso por Napoleão
desde Dessalines e os jacobinos negros
que prosseguiram o combate e a conquistaram,
em 1804,
a Independência cruel, sangrenta e definitiva,
que batizaram em sangue o País como o nativo Haiti
e onde meu amigo chinês mora ou morava
(não sei dele) e ensinava;
ai de ti, ó povo da Independência vitimado
que atrai da vitória a maldição
a maldição dos heróis
a maldição dos deuses
pelo que produziste
o café, o anil, o cacau, o algodão
e o açúcar melhor do que ninguém
e onde meio milhão de escravos africanos trabalharam
ó vítima da liberdade
que os deuses me protejam da tua maldição!
ó, haiti
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
J.D. Salinger
J.D. Salinger
AMELIA PAIS
Conheci -o em livro de bolso, e em francês, quando li (título francês "L'attrape coeurs". O amigo que mo ofereceu, creio que em 1968, deu.-me oito dias para considerar que era o livro mais bonito que tinha lido...Era-o na altura, achei, e continua a ser um dos mais bonitos, ainda. Em português tinha, na altura, o título Uma Agulha em palheiro e era traduzido por Jorge de Sena (a edição de Livros do Brasi).
Ofereci-o a muitos jovens, ao longo da vida.
Notícia :
O escritor norte-americano J.D. Salinger, autor do clássico "À Espera no Centeio" ("Catcher in the Rye" no título original), morreu hoje, no estado do New Hampshire, aos 91 anos.
in Público.pt
Jerome David Salinger tinha celebrado os 91 anos de idade a 1 de Janeiro, em Manhattan, Nova Iorque. Filho de pai judeu de origem polaca e de mãe com ascendência escocesa e irlandesa, escreveu os primeiros contos na década de 1940, publicados em revistas como a "Esquire" ou a "New Yorker".
O primeiro, que surge em 1951 ("À Espera no Centeio", Difel, 2005, antes editado com o título "Uma agulha no palheiro"), fez um enorme sucesso. A obra, que retrata os desafios da adolescência através do protagonista Holden Caufield, foi lida em todo o mundo, tendo sido obra de referência para muitos adolescentes e jovens. Foi este livro de Salinger que Mark Chapman - o homem que assassinou John Lennon - pediu ao ex-Beatle para autografar na manhã em que o matou. A relação entre o adolescente, com um esgotamento nervoso, e Chapman, foi abundantemente explorada, mas sem que uma relação de influência sobre a morte de Lennon tivesse sido traçada.
Livros publicados em Portugal
"À espera no Centeio" (Difel 2005)/"Uma Agulha no Palheiro" (Livros do Brasil, 1983)
"Franny e Zooey", (Bertrand, 1962)
"Carpinteiros, Levantem Alto o Pau de Fileira", (Bertrand 1964)
"Nove Contos", (Bertrand, 1966)
Ler mais:
em
http://www.tvi24.iol.pt/internacional/salinger-escritor-americano-tvi24/1135113-4073.html:
Mor eu esta quinta-feira o escritor norte-americano J.D. Salinger. Tinha 91 anos (nasceu a 1919), vivia em Cornish (New Hampshire), e faleceu de causas naturais, segundo relata a Associated Press.
Publicado em 1951, «The Catcher in the Rye» (À Espera no Centeio, Ed. Difel ), é o seu trabalho mais famoso, relatando a vida do adolescente Holden Caulfield entre a rica burguesia nova-iorquina, revelando o vazio social e os falsos valores encontrados pelos jovens da época.
Não publicou qualquer livro desde 1965 e teve uma vida de quase total isolamento, tendo recusado a atenção do mundo literário e dos media durante décadas.
David Chapman, o assassino de John Lennon, era grande admirador da sua obra e transportava precisamente o livro «The Catcher in the Rye» quando atirou a matar sobre o ex-Beatle a 8 de Dezembro de 1980.
Em 2007, o escritor francês Frédéric Beigbeder tentou encontrar Salinger, numa jornada que ficou registada no documentário «Catching Salanger».
ver:http://www.youtube.com/watch?v=K8tycVEG7fs
quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
JEREMIAS E OS MORTOS DA BAIXADA
CASSIANO RICARDO
JEREMIAS E OS MORTOS DA BAIXADA
«Na sexta-feira, 1 de abril de 2005, chacinas no Rio podem ter matado 41 pessoas. Foi uma das madrugadas mais sangrentas no Estado.» Noticiários transformados em plantões policiais.
«A esperança mói.
A esperança dói.»
Escreveu Cassiano, em «Jeremias sem chorar».
Antes da queda do muro de Berlin, estava eu em casa do Lothar, na Mendelsonstrasse, em Frankfurt. Via tv todos os dias, fora estava frio. Comentei, para ele: «Não vejo notícias de crimes, por aqui». Ele retrucou: «Não há, não. Uma associação de consumidores impôs, em ação na Justiça, que não se divulgasse isso».
- Por quê? Perguntou o senso comum brasileiro. Não fere a liberdade de imprensa?
- Não, disse ele. A media tem de estar a serviço da população...
- Mas a população não deve ser informada sobre o perigo?
- Não é o caso, argumentou ele. Se há um assassino, ou uma quadrilha solta na cidade, não é meu problema, mas da polícia, cabe à polícia prendê-lo. A polícia tem o dever constitucional de proteger-me, e para tal é paga. Quanto à imprensa, não tem o direito de aterrorizar-me.
Calei-me.
Pareceu-me ter um ar
de abismo, não obstante alva
e limpa como uma estrela-
Cassiano Ricardo, dos maiores poetas do Brasil. Sob certos aspectos, o maior de sua geração, na técnica, na variação de sua poética, «renovando a poesia», disse Cabral. Sobre ele, Oswaldino Marques escreveu o clássico da crítica literária brasileira: «O laboratório poético de Cassiano Ricardo».
Lembra Oswaldo Mariano a observação de Mestre Alceu de que Archibald MacLeish escreveu que o poema deveria ser um «globe fruit», integrado no «pensamento planetário», na era cósmica. Por isso, diz o autor do prefácio, no livro predomina «a esfericidade semântica», e a rima «esfera» e «espera». Ou em «Os sobreviventes»:
Milhões de crianças chorando
na noite esférica.
Por que choram?
Não são
elas que choram.
É o futuro.
Escreveu Archibald MacLeish:
Haverá pouca coisa a esquecer:
o vôo dos corvos,
uma rua molhada,
o modo do vento soprar,
o nascer da lua, o por-do-sol,
três palavras que o mundo sabe,
pouca coisa a esquecer.
Em «Os que virão depois», diz Cassiano:
não os sobreviventes
que hoje usam máscaras
pra fingir de vivos
não os que poderiam
ter morrido esta noite
sob a chuva de sol
nuclear
mas os que acordarão
como pássaros
que anunciam o amanhe-
cer
sem nenhuma surprêsa
de ainda estarem
vivos
É assim na tradução de Bandeira.
É assim nos mortos da Baixada.
Sim, acordar. Como os pássaros. Mas sem nenhuma surpresa acordaremos vivos, sem a esperança que dói. O mundo que mais parece abismo, uma estrela branca, pairando no ar. Quando morrer esquecerei de tudo, e todos me esquecerão. Haverá, de pouca coisa a esquecer, quase nada: o fracos poucos versos que fiz, os romance que construí, essas minhas crônicas. Pouca coisa. Três palavras que o mundo sabe. Para mim, será bem mais difícil esquecer: meu amor fracassado, minhas impossibilidades, meu caso perdido. Acordar, renascer? Não creio. Meus olhos fechados sob a campa. Não verei nem o nascer da lua, nem o por-do-sol.
A chuva pinga, na argila rasa.
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segunda-feira, 25 de janeiro de 2010
Waldemar Baptista de Salles
Waldemar Baptista de Salles
Rogel Samuel
Faleceu ontem o jornalista Waldemar Baptista de Salles, autor de vários livros.
Nasceu Waldemar Baptista de Salles em 24/09/1913 e faleceu ontem, 24/01/2010.
Ele era um bom escritor. Eu passei minha juventude lendo seus textos, suas crônicas nos
jornais de Manaus.
Infelizmente escrevo longe de casa, numa pousada, em Tiradentes. Não posso consultar os
seus livros que tenho.
Mas me lembro de seus artigos, escritos numa linguagem fluida e de fácil leitura, tão
diferente de seus pares da Academia Amazonense de Letras de sua época.
Ele era professor, agrônomo, advogado. Foi secretário de Estado da Fazenda.
Escreveu " O Amazonas – o meio físico e suas riquezas naturais", " Pétalas rubras" e outros.
Mas o principal de sua obra está publicado nos jornais de Manaus. Vai ser difícil recuperar.
Ele era, principalmente, um cronista.
Waldemar Baptista de Salles foi fundador da cadeira 40, cujo patrono é Paulino de Brito.
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QUE IMPORTA O AREAL E A MORTE E A DESVENTURA?
QUE IMPORTA O AREAL E A MORTE E A DESVENTURA?
A leitura do romance histórico de Aydano Roriz, O DESEJADO, me fez reler a terceira parte da MENSAGEM de Fernando Pessoa.
'Sperai! Cai no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
O romance me surpreendeu. Em vários pontos.
O autor diz que o jovem rei era hermafrodita, e por isso não se casou.
Seu cadáver foi embalsamado em Marrocos, e anos mais tarde resgatado por Felipe de Espanha.
Oh, tudo é mistério, e não 'haverá rasgões no espaço / que dêem para outro lado'...
Romance intrigante, momentos de rara beleza. Mas volto ao mito. Prefiro o mito.
Sou, a meu modo, um sebastianista: Durante 15 anos minha amiga X. pagou todas as prestações de seu apartamento com a pontualidade que somente mulheres honestas sabem ter, e ao fim e ao cabo o Banco (particular, o maior do Brasil) lhe disse que ainda devia o preço total. Ela não tinha o dinheiro: Não consegui convencê-la do contrário - ela vendeu o imóvel e pagou pela segunda vez a mesma dívida... (mais pagaria se não fosse, para tanto pagar tão curta a vida...). Por isso Camões entregou seu poema a D. Sebastião.
O jovem rei no livro é rapaz extremamente religioso, pudico, puritano, que se delicia em matar porcos na cozinha, em assistir às sessões de tortura, ao suplicio dos condenados. Havia condenados pelos mais extremos e hediondos crimes, como o crime da masturbação etc.
A obsessão do rei de matar-mouros lembra certo presidente de nação distante, hoje. Conflito que vem de longe, entre nossa boníssima civilização cristã e a dos cruéis árabes pagãos. Mas:
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Devemos a D. Sebastião o nome da nossa cidade do Rio de Janeiro.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?
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Acabo de assistir ao filme de Karim Ainouz, Madame Satã. Quase um grande filme. Fotografia luxuosa. Cenário da Lapa fantástico. O jovem ator Lázaro Ramos convence em tudo. Ainda não vi Cidade de Deus, filme extraído do romance de Paulo Lins, meu ex-aluno na Faculdade de Letras da UFRJ. Conheci João Francisco dos Santos, ou Madame Satã. Na Ilha grande, onde acampei no início dos anos 70. Já bem velho, mais de 70 anos, ainda bem forte.
O filme, porém, não deprime, é positivo, levanta o moral brasileiro. É apologia do espírito nacional. As cenas de sexo nada acrescentaram porém, e umas senhoras da platéia muito se incomodaram com elas. Mas não é nada explícito, somente beijos e navalhadas. Madame Satã, afinal, morreu velho, realizado, em paz, no Abraão, povoado da Ilha Grande, onde o vi. Feliz.
Hoje teria sido logo morto. Não antes sem uma sessão de tortura piedosa.
Satã deve ter sido descendente de rei africano: orgulhoso, imbatível, não se curvava. Nem à polícia. Duplamente discriminado, foi uma espécie de Zumbi na Lapa. Em suas memórias, ditadas a um jornalista do Pasquim, ele não fala de seus amores, de sua privacidade.
Num país onde a discriminação é mais forte hoje do que naquele tempo devido a Aids, ele era fiel a si mesmo, preferia a morte à humilhação.
O filme não conta que pôs a nocaute vários marinheiros, que invadiu uma delegacia para quebrar cara de delegado, etc.
Talvez seja Mito.
Prefiro o Mito.
No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.
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domingo, 24 de janeiro de 2010
ABRE A BOCA UM SILÊNCIO ENORME
ABRE A BOCA UM SILÊNCIO ENORME
Pois de Ricardo Reis canta certa ode, digo Pessoa, nos meus ouvidos sempre que penso em morte que me diz:
Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.
De meu mestre Euryalo Cannabrava certa vez contava, em sala de aula, que, quando algum dilema lhe aparecia ele preparava a sua morte, hipotética morte, ele a previa, com data e hora marcada, para depois de alguns dias se matar, dizia ele, e logo seus problemas se diluíam, nada resiste à morte, à Ela, - a suprema! - que «tão cedo passa tudo quanto passa!» e sem a morte a vida seria uma chatice, repetitiva e cruel.
Nesse sortilégio o nada mortal vai da invenção de palavras, criatura de uma rosa eterna, para além dessas floras efêmeras - eterna porque morre, e morre por ser eterna, neste mundo, - curiosa antítese.
A morte, entretanto, é coisa séria, como o que «contam de Clarice Lispector» de João Cabral:
Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.
Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.
Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?
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sábado, 23 de janeiro de 2010
Ó VIRGENS QUE PASSAI AO SOL POENTE
Ó VIRGENS QUE PASSAI AO SOL POENTE
ROGEL SAMUEL
É assim que diz o famoso soneto de Antonio Nobre:
Ó virgens que passai, ao Sol-poente,
Pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente,
Que me transporte ao meu perdido Lar.
Cantai-me, nessa voz onipotente,
O Sol que tomba, aureolando o Mar,
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a Graça, a formosura, o luar!
Cantai! cantai as límpidas cantigas!
Das ruína do meu lar desaterrai
Todas aquelas ilusões antigas
Que eu vi morrer num sonho, como um ai...
Ó suaves e frescas raparigas,
Adormecei-me nessa voz... Cantai!
Antônio Nobre é poeta simbolista, portanto no seu famoso soneto, o «sol-poente» nos deve remeter a «algo», deve escamotear o sentido, para alguma outra natureza, esconde o que diz.
Não seria a velhice, pois o poeta morreu jovem, com 33 anos, em 1900.
Talvez as virgens, úberes, fartas de potencialidades, a ser fecundadas na «fartura da seara reluzente», gozosas, obreiras dessa tarde, desejantes, grávidas de prazeres, vitalidades...
Mas, por que «o sol poente»?
Por que não o despertar, o meio-dia, o pleno sol da tarde?
E, sendo «poente», por que «ardente»?
E sendo «ardente», por que tomba, por que cadente, no meio dessa seara reluzente?
E se «virgens», por que «o vinho, a Graça, a formosura, o luar!»
Sim, que de mistérios vive a poesia.
Engana o/a leitora, engana-se o/a leitora, que pensa estar, apenas, o sujeito do poema lastimando o seu «perdido lar», as suas «ilusões antigas», as ruínas do seu lar.
Sim, é certo.
Certo, certo de que tudo isso é assim, também.
E o que o poeta Nobre não se deve confundir com a pessoa Nobre.
O «personagem» do poema pode ser um velho.
Mas velho possante («O Sol que tomba, aureolando o Mar»), rico de vida, de vitalidade («A fartura da seara reluzente»).
A força, a beleza do poema reside no contraste: «suaves e frescas raparigas» X «ruína do meu lar».
E sua canção é o hino que desperta «todas aquelas ilusões antigas».
A oposição e o sentido está nas belas rimas poente-ardente, cantar-lar, onipotente-reluzente, mar-luar, cantigas-raparigas, desaterrai-cantai.
São rimas significativas, verdadeiras pontes de significação, irradiam sentidos.
Sim.
Sim, tudo isso «eu vi morrer», de súbito, sim, o lar despedaçado.
E o poeta precisa morrer, dormir, esquecer, fugir daquelas lembranças do passado familiar, feliz, longe daquelas «estradas ermas», lar que era «sol», «mar»,
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a Graça, a formosura, o luar!
O poema se encontra consigo mesmo. No fim.
Toda a fantasia da dança feminina, ao cair da tarde, seus cantos, suas suavidades reluzentes no conjunto desses evocativos versos.
Afinal são fantásticos dias de infância recuperados ao sol poente. Na voz daquelas raparigas virgens, que passam, como passaram as vozes familiares das mulheres da infância, das irmãs, mães tias avós que passaram todas pela estrada.
O lar é isso. Conjunto de pessoas.
Não lar-casa. Mas grupo familiar.
Ó Primas e Irmãs, ó virgens, cantai! Esta é a canção. O poema envolve sonoridade corredia: é poema para ler lido alto, em voz alta.
Poesia alta, graça, frescura, leveza. Aureolando o Mar, límpidas cantigas.
Fartura do canto daquelas ilusões antigas de um passado, das lembranças da infância do seu perdido lar.
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Ó VIRGENS QUE PASSAI AO SOL POENTE
sexta-feira, 22 de janeiro de 2010
WOODSTOK
WOODSTOK
Rogel Samuel
À noite, no meu quarto, leio poema de James Hopkins. Ele é poeta premiado americano, autor do livro “ eight pale women”, ganhou o prêmio “ Word works”, da cidade de Washington, conferido por este organização literária. Hopkins é um rapaz jovem, bonito, com longos cabelos. Conheci-o em Walden, New York. Ele me pede que escreva sobre seu livro, que é muito bom.
Naquele dia fui a Woodstook.
Estive lá recentemente duas vezes.
Na primeira vez chegamos ao anoitecer. Fomos diretos para o alto da montanha, onde nos esperava uma reunião. Quase não sentimos o lugar. Só sua atmosfera. Não da nostalgia, ou da memória do festival de música de 1969 – que não foi mesmo realizado lá – mas no ar havia algo daquele bom tempo dos hippies que fomos, dos cabelos compridos, das nossas sandálias, das nossas artes, das nossas almas puras.
Sim, porque éramos uma geração de jovens de almas puras, amávamos a música, as fotos, as histórias, a natureza. Não vivíamos, acampávamos neste mundo. Fomos ali, em Woodstock, para reencontrar-nos. Woodstock não era uma cidadezinha nas montanhas, mas um lugar no nosso coração. Vi, logo que cheguei, que não tínhamos ficado velhos, que ainda estávamos no jogo da vida, que ainda amávamos nossa jornada.
Na segunda vez fui mais cedo, na hora do almoço, a Woodstook.
Almoçamos em pequeno restaurante onde, à noite, havia música. Os dois garçons, jovens e andróginos, já eram de outra era. A cozinha excelente. Depois, com minhas duas amigas americanas, “fomos às compras”. Woodstok agora é um grande shopping. Particularmente, nada vi interessante. Mas gosto de shopping. O melhor foram as lojas de artigos orientais. Principalmente uma, chamada “Dharmaware”. Mas tudo muito caro, para nós, brasileiros. Entro num sebo. Nada vi, que me entusiasmasse. Um rapaz, na rua, tenta-me desesperadamente vender duas fitas cassetes usadas por dois dólares. Ele tem ansiedade nos olhos, tem pressa. Arrependo-me de não ter comprado, ainda que desconfie por que ou de que ele precisa, ou por isso mesmo.
Num supermercado comprei uma caneta, que tenho usado até hoje. É um modelo antigo, de aço inoxidável. Gosto de canetas, já tive uma boa coleção. A maioria de pena. Mas hoje só consigo escrever no computador.
Faz calor, em Woodstock. Sinto-me cansado, desanimado. Estou perdendo o interesse, o gosto pelas coisas. Woodstock sem o clima místico de paz, de amor dos anos sessenta. Estamos na era Bush. “Os nossos ídolos morreram de overdose”. Já não somos os mesmos.
À noite, no meu quarto, leio um poema de James Hopkins. O poema diz, mais ou menos assim, que traduzo: “ trate \ os fantasmas \ do quase-passado \ com um pouco mais de respeito -- \ aquelas vaporosas pistas que derivam dos parques \ aproveitam as ruas \ em segredo. \ o tremor \ apenas \ no vértice \ da escuridão \ quando o vermelho \ escorreu do céu. \ a sombra que pisca \ no canto de seu olho \ antes da noite \ engolir \ a lua”.
Fecho o livro, a luz da cabeceira. Fecho os olhos. Adormeço. Rondam os fantasmas da noite.
quarta-feira, 20 de janeiro de 2010
DOCES FANTASMAS
DOCES FANTASMAS
Doces fantasmas esvoaçam os ares dentro de meu quarto. Parecem pássaros, invisíveis voam. Eles passeiam, bailam, mas não aparecem, ou não os vejo, somem nas cortinas da noite, mas me despertam, como no super-soneto de Pessoa:
Súbita mão de algum fantasma oculto
Entre as dobras da noite e do meu sono
Sacode-me e eu acordo, e no abandono
Da noite não enxergo gesto ou vulto.
E eu acendo luzes, ouço a madrinha da madrugada. Medito. Ligo a TV, mas logo desisto, desligo. No fim perco o sono, e...:
Mas um terror antigo, que insepulto
Trago no coração, como de um trono
Desce e se afirma meu senhor e dono
Sem ordem, sem meneio e sem insulto.
Acordo. Tento entender o terror antigo, insepulto. Resolvo ouvir música, assim baixinho, no headphone. Afinal é tarde, muito tarde. Perco as horas. Ouço o CD, comprado durante aquela tarde, onde Wilhelm Backhaus, em gravações de 1929 e 1932, toca o concerto n01, de Brahms. O disco ainda estava lacrado.
E eu sinto a minha vida de repente
Presa por uma corda de Inconsciente
A qualquer mão nocturna que me guia.
Backhaus, diz um crítico, está para os outros pianistas com o monte Everest sobre as outras montanhas. «Majestade e sutileza, técnica sobre-humana, presença e graça». Tocou por cerca de 70 anos, e foi um dos primeiros a gravar um disco. Dizem que ele teve duas fases, antes e depois da Segunda Guerra Mundial. Antes demonstrava vitalidade, emoção. Depois, entristeceu.
Sinto que sou ninguém salvo uma sombra
De um vulto que não vejo e que me assombra,
E em nada existo como a treva fria.
Escreveu Backhaus, «quanto mais simples, mais belo». Ele não era chegado às aparições espetaculares. Era modesto, ainda que idolatrado, reconhecido, famoso. Suas interpretações equilibradas, a delícia de seus ouvintes, não para a demonstração de sua virtuosidade pianística.
Depois do concerto volto a dormir. Em êxtase. Os doces fantasmas da música me conduzem a um lugar de extraordinária e lúcida beleza, embora onírica, e «sinto que sou ninguém salvo uma sombra», que «em nada existo como a treva fria».
domingo, 17 de janeiro de 2010
A beleza pesa como a morte
A beleza pesa como a morte
Rogel Samuel
Todos conhecemos «A CANÇÃO DE AMOR DE J. ALFRED PRUFROCK» de T. S. Eliot. E conhecemos seus labirintos, seus desvios, suas alusões. Sua dificuldades de leitura, a começar pelos primeiros versos:
Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites indormidas em hotéis baratos,
Ao lado de botequins onde a serragem
Às conchas das ostras se entrelaça:
Ruas que se alongam como um tedioso argumento
Cujo insidioso intento
É atrair-te a uma angustiante questão.
Oh, não perguntes: “Qual?”
Sigamos a cumprir nossa visita.
Os poetas mais difíceis são os que mais me impressionam. Não a dificuldade aleatória, gratuita. Mas a profundidade dos semas mais alucinantes, como no «Por de sol» de Holderlin, na tradução de Manuel Bandeira:
Onde estás? A alma anoitece-me bêbeda
De tôdas as tuas delícias; um momento
Escutei o sol, amorável adolescente,
Tirar da lira celeste as notas de ouro do seu canto da noite.
Ecoavam ao redor os bosques e as colinas;
Êle no entanto já ia longe, levando a luz
A gentes mais devotas.
Que o honram ainda.
Nos versos de Elliot, o anoitecer é um «um paciente anestesiado sobre a mesa». Esta metáfora hospitalar retorna no que pergunta:
E valeria a pena, afinal,
Teria valido a pena,
Após os poentes, as ruas e os quintais polvilhados de rocio,
Após as novelas, as chávenas de chá, após
O arrastar das saias no assoalho
- Tudo isso, e tanto mais ainda? -
Impossível exprimir exatamente o que penso!
Mas se uma lanterna mágica projetasse
Na tela os nervos em retalhos...
Sim, «impossível exprimir exatamente o que penso! », diz, ele, Eliot, como se «uma lanterna mágica projetasse / Na tela os nervos em retalhos...»
A beleza está no que não diz, mas retém. Silencia.
Nos versos de Holderlin a alma anoitece bêbada de prazeres, dos prazeres da poesia. O sol joga uma malha de ouro sobre tudo e começa a cantar. O som do canto ecoa nas colinas. Nos bosques. Há uma pátina de sexualidade nesse cantar, bêbado de prazeres. O adolescente-poeta escuta o ouro do cantar do sol, que leva as luzes. A noite caminha próxima, há delícias no ar desse poetar. Nesse pomar, como a «Quietude», de Ungaretti, que diz, na tradução de Menotti del Picchia:
A uva está madura e campo arado,
o monte se destaca das nuvens.
Nos poentos espelhos do verão
caiu a sombra
Entre os dedos incertos
sua luz é clara
e longínqua
Foge com as andorinhas
o último desespero
Ou «Já se desprende a magra flor», de Salvatore Quasimodo, na tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti:
Nada saberei de minha vida
escuro monótono sangue.
Não saberei quem amei, quem amo
agora que aqui contido, reduzido a meus membros,
no gasto vento de março
enumero os males dos dias desvendados.
Já se desprende a magra flor
dos galhos. E eu contemplo
a paciência de seu vôo irrevogável.
Ou, na «Imitação da alegria», diz Quasimodo:
Ali onde as árvores fazem
a tarde ainda mais abandonada
indolente
sumiu teu último passo,
como a flor que mal se mostra
sobre a tília e insiste em viver.
Buscas sentido para teus afetos,
encontras o silêncio em tua vida.
Outro destino me revela
o tempo refletido. Pesa-me
como a morte, a beleza que agora
noutras faces brilha.
Perdida está toda coisa inocente
mesma nesta voz, sobrevivente
a imitar a alegria.
O que o poeta diz é «vamos, tu e eu», «sigamos por certas ruas quase ermas, através dos sussurrantes refúgios», « Ali onde as árvores fazem / a tarde ainda mais abandonada», «nos poentos espelhos do verão / Entre os dedos incertos», vamos « tirar da lira celeste as notas de ouro do seu canto da noite». Enfim, vamos buscar da poesia o poema e mergulhar no «sentido para teus afetos», pois a beleza pesa como a morte.
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A beleza pesa como a morte
sexta-feira, 15 de janeiro de 2010
CONHECES A REGIÃO DO LARANJAL FLORIDO?
CONHECES A REGIÃO DO LARANJAL FLORIDO?
Rogel Samuel
No início da "Canção de Mignon" de GOETHE misterioso verso: "Conheces a região do laranjal florido?" No original há um "lá", que se repete (Dahin, dahin), objetivando transcendência que a tradução excelente de João Ribeiro manteve. Um lá (Mignon) que talvez se refere a certo lugar na Itália, diz Eça de Queiroz, n'O mandarim. Um lieder de Schubert, de 1816. A terra privilegiada onde o laranjal floresce ouro (Citronen blühen). Um "lá... bem longe, além", que aponta para lugar, a princípio
paradisíaco, onde o sujeito do poema nos convida a ir, com ele, onde dourados pomos brilham na escuridão (Gold-Orangen glühen), e no céu azul a brisa, tudo em paz, nada move, nada passa, nem a vida, nem a glória (nem o louro)... Não a conheces tu? Quisera ir-me contigo...
Conheces a região do laranjal florido?
Ardem, na escura fronde, em brasa os pomos de ouro;
No céu azul perpassa a brisa num gemido...
A murta nem se move e nem palpita o louro...
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além,
Quisera ir-me contigo, ó meu querido bem!
[Kennst du das Land, wo die Citronen blühen,
Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühen?
Kennst du es wohl? — Dahin, dahin!
Möchtl ich... ziehn.]
A estrofe epígrafe de "A canção do exílio", de Gonçalves Dias, por isso a transcrevo. Não sei alemão. João Ribeiro, sábio e erudito filólogo carioca (1860-1934), também poeta. Hoje esquecido. Não mais editado. Em 1932 escreveu um ensaio sobre Goethe. Foi jornalista, catedrático do Pedro II. Soube dar e transpor o clima da "A canção de mignon".
A casa, sabes tu? em luzes brilha toda,
E a sala e o quarto. O teto em colunas descansa.
Olham, como a dizer-me, as estátuas em roda:
- Que fizeram de ti, ó mísera criança!
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além,
Quisera ir-me contigo, ó meu senhor, meu bem!
Súbito, Goethe introduz, nessa região maravilhosa, fantástica, irreal - uma casa! Sólida casa, como deve ser a tradição familiar: "O teto em colunas descansa". Casa paterna, a sala e o quarto, o mais íntimo das forças arquitetônicas do espírito ("sabes tu?), que olham, falam, vêem a desgraça a que fomos reduzidos ("que fizeram de ti, ó mísera criança?") - não, não a conheço, não a reconheço, a casa de meus pais, no além, no bem longe, aonde o poeta me levou. Meus familiares estátuas tumulares...
Conheces a montanha ao longe enevoada?
A alimária procura entre névoas a estrada...
Lá, a caverna escura onde o dragão habita,
E a rocha donde a prumo a água se precipita...
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além,
Vamos, ó tu, meu pai e meu senhor, meu bem!
Goethe introduz palavra-chave, palavra grave, palavra-montanha, ponto de fuga, de onde a dor se despedaça: meu "pai". Não só pai, mas pai e "senhor", com os semas que a idéia de senhor nos traz, nos põe, dispõe,
na mesa da leitura, do poder, da Lei. Do nome, do não. Goethe e João Ribeiro têm algo em comum além das "afinidades eletivas": a idéia, a ideologia do pai. João Ribeiro não teve pai (faleceu cedo), foi criado
pelo avô, "culto e liberal" (diz Afrânio Coutinho). Goethe cultuou o pai, herói. Entre eles se estabelece laço cúmplice da volta ao Pai. Meu pai, cuja língua materna era o alemão, recitava Goethe de memória. Mas a
montanha está enevoada, envolvem-se os mistérios de grandeza... os animais procuram estrada... lá reside o perigo - o dragão! - na Caverna escura, indevassável, uterina, se verte a água, da vida, que a prumo se
precipita, nas veias do destino... Não a conheces tu? É lá, lá...
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CONHECES A REGIÃO DO LARANJAL FLORIDO?
Punições e castigos
Punições e castigos
LUCILENE GOMES LIMA
Desse modo, punições e castigos físicos são circunstâncias comuns na ficção sobre a borracha. Exercer algum tipo de violência sobre o seringueiro é uma forma de o seringalista expressar sua autoridade e fazer-se respeitado. Expressando esse poder sem limites estabelecido no seringal, o narrador do romance memorialista Arapixi comenta: “O patrão se faz respeitar e obedecer por sua menor ou maior perversidade, pela grandeza de seu coração, por sua autoridade moral, por sua bondade de alma, por seus sentimentos humanos, pela grandeza de seus gestos, ou pelo horror de sua ação sanguinária. É um homem que na planície varia na conformidade do ‘centro’ na vulgaridade dos hábitos, na conduta da freguesia, sem peias, sem escrúpulos, sem formalidades”. (21).
Dos instrumentos utilizados pelo seringalista como forma de punição, o tronco figura como o mais referido e o mais abominável tanto que leva o negro Tiago, personagem de A selva, a pôr fogo no barracão como ato de revolta contra o patrão que usara desse expediente de tortura contra os seringueiros que haviam tentado fugir do seringal. (22).
A utilização do tronco nos seringais estabelece uma curiosa relação dos hábitos do mundo do seringal como os da sociedade patriarcal escravista. Para Tocantins, ambos os contextos se assemelham, a começar pela economia baseada na monocultura, com a diferenciação de uma ser agrícola e a outra extrativa. O patriarca representado na figura do seringalista seria outro ponto de contato. Também o barracão do seringal, apesar de apresentar aspecto mais tosco, guardaria semelhança com as casas-grandes dos engenhos de açúcar do Nordeste. Sobre o ciclo da cana de açúcar e o da borracha, o autor pondera: “[...] Dessemelhantes em forma e grau, mas semelhantes na essência comum do patriarcalismo, a civilização da borracha aproveitou muitas das constantes culturais daquela, naturalmente adaptando-as às realidades do meio amazônico, num interessante experimento de assimilação”. (23).
Lucilene Gomes Lima - "FICÇÕES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS". Estudo comparativo dos romances “A selva” (FERREIRA DE CASTRO), “Beiradão” (ÁLVARO MAIA) e “O amante das amazonas” (ROGEL SAMUEL), Editora da Universidade do Amazonas, 2009. 240p. ISBN 978-85-7401-458-6. Solicitações: lucileneglima@bol.com.br
21) Adaucto de Alencar FERNANDES, Arapixi: cenas da vida amazônica, p. 229.
22) José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 304-305.
23) Leandro TOCANTINS, Formação histórica do Acre, v. 1, p. 156.
quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
A rua das flores
A rua das flores
NEUZA MACHADO
Assinalo a palavra “solidamente”, porque ela está destacada no romance. A fortuna do personagem ficcional Ribamar de Souza, por vários motivos, é sólida. O dinheiro que amealhou, posteriormente, em Manaus, não poderá ser conceituado historicamente como ilegal. O fato de ter transformado as casas da Rua Frei José dos Inocentes - hipotecadas por Juca das Neves - em “puteiro”, não desmerece historicamente o talento comercial do personagem. À época, tal comércio, era considerado aceitável. Em verdade, a Rua das Flores - em sua exterioridade, como retrato ficcional da prostituição, ou mesmo interiormente, enquanto criação literária - realça um dos maiores negócios da crise amazonense pós-borracha.
O que ocorreu na tenção [sic] ficcional rogeliana: Depois do falecimento de Juca das Neves, Ribamar de Souza, como sócio do patrão, herda as dívidas do velho, resgata as hipotecas e compra os terrenos da Rua Frei José dos Inocentes, transformando-os em “puteiro”. Por meio de uma transação comercial com a dona do prostíbulo de Transvaal, traslada as “meninas” de “D. Conchita” para Manaus. Posteriormente, induzido naturalmente por Maria Caxinauá (que o enviou para Manaus, depois do declínio econômico do Seringal Manixi), casa-se com Diana d’Artigues, neta da Caxinauá, herdando - por intermédio do casamento - a fortuna “roubada” pela índia, e, com isto, tornando-se um dos maiores novos ricos da Cidade.
O fogo da labareda da serpente
Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel
A tortura
A tortura
LUCILENE GOMES LIMA
Um exemplo que bem se adequa à descrição do tipo de seringalista perverso de No circo sem teto da Amazônia figura também num encaixe (16) contido no romance Um punhado de vidas em que um seringueiro com saldo decide partir do seringal e para tanto reivindica o valor que lhe é devido. Em resposta, o seringalista propõe-lhe que vá caçar veado antes de partir para não esquecer do seringal no qual trabalhou tantos anos. O seringueiro fica intrigado com a proposta e é informado por outra personagem que a caça se tratava de uma cilada armada para os seringueiros com saldo. Mesmo desistindo de cobrar o saldo e apenas manifestando o desejo de ir embora, o seringueiro é mais uma vez intimidado pelo patrão, que para lhe provar do que é capaz, mata um empregado em sua presença como se abatesse um bicho. (17)
As demonstrações da vileza do caráter do seringalista se configuram nos castigos que infringe aos seringueiros que desobedecem suas ordens diretas ou os preceitos do regulamento. No romance Coronel de barranco, o seringalista pune um seringueiro que desobedece a ordem de não cultivar horta nem caçar ou pescar a fim de promover outra forma de sobrevivência além daquela obtida através dos aviamentos, pondo fogo na pequena plantação que esse seringueiro havia cultivado às escondidas nas horas que lhe sobravam do trabalho de extração e defumação do látex. (18) O romance Terra de ninguém, por outro lado, apresenta um seringueiro castigado com o aprisionamento no tronco por ter reclamado da qualidade do sabão que recebera no aviamento. (19).
Em Regime das águas, o instrumento descrito na prática de tortura é uma palmatória chamada “melindrosa”. A cena em que o seringalista é intimado a dar esclarecimento ao juiz sobre o objeto ressalta a empáfia daquele, cônscio de que é a lei em seus domínios:
[...] O juiz, moço novo ainda, com ares de muita importância, foi logo entrando no assunto, sem dar tempo a qualquer conversa. Queria saber que história era aquela de uma palmatória de dois quilos que, segundo denúncia recebida, costumava usar no seringal, judiando daquela pobre gente indefesa. Seria verdade tamanho absurdo?
- Mas foi aí que o homem da lei se enganou – dizia João Firmino, com sentido orgulho da coragem do patrão. – Então pensava ele que ia o homem amofinar, meter o rabo entre as pernas e arranjar uma desculpa qualquer para sair da encrenca? Nada disso! O patrão era cabra macho, homem de vergonha e de muita firmeza. E comentava com largo sorriso a resposta que, sem qualquer demora, dera o patrão à interpelação do magistrado:
- Dois quilos não, seu juiz! Quase três. Esse, com todo respeito à pessoa do Doutor Juiz, o peso da melindrosa. E digo mais, seu Doutor, ela só serve mesmo para corrigir cabra safado e mulher fuxiqueira. (20)
Lucilene Gomes Lima - "FICÇÕES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS". Estudo comparativo dos romances “A selva” (FERREIRA DE CASTRO), “Beiradão” (ÁLVARO MAIA) e “O amante das amazonas” (ROGEL SAMUEL), Editora da Universidade do Amazonas, 2009. 240p. ISBN 978-85-7401-458-6. Solicitações: lucileneglima@bol.com.br
16) Em teoria da narrativa, dá-se o nome de encaixe a uma seqüência inserida no interior da narrativa principal, compondo uma unidade autônoma, mas não independente, uma vez que guarda relação temática com essa. (Cf. Carlos REIS e Ana M. LOPES, Dicionário de teoria da narrativa, p. 156).
17) Aristófanes CASTRO, Um punhado de vidas: romance do “soldado da borracha”, p. 72-4.
18) Cláudio Araújo LIMA, Coronel de barranco, p. 243-247.
19) Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 84.
20) Francisco VASCONCELOS, Regime das águas, p. 24-5.
quarta-feira, 13 de janeiro de 2010
O sol é de ouro
O sol é de ouro
LUCILENE GOMES LIMA
(Gravura Heloisa Pires Ferreira)
Em decorrência dos dados desabonadores sobre a conduta dos seringalistas apontados na pesquisa histórica e atestados pelos próprios regulamentos do trabalho no seringal, ganhou livre curso nas ficções da borracha a figura vilanesca deste agente econômico em função do qual o seringal se organizava. Não raro ele é pintado com cores fortes que lhe acentuam o caráter perverso, a exemplo dessa descrição no romance “Terra de ninguém”: “homem de poucas palavras, sibilino. Profundamente tacanho e mau, somente disfarçava a fisionomia moral e se (sic) avistava com algum lêmure político da cidade” (14).
Na obra No circo sem teto da Amazônia, o traço de vileza atinge o paroxismo por conta da caracterização grotesca que dá à personagem ares teatrais e pelas comparações grandiosas e a adjetivação abundante:
Jacinto Gazela é um desses repulsivos queirópteros que riem.
O seu estalão moral se baliza no limo pegajoso dos barreiros.
O seu ideal é irmão–siamês do amplexo mortificante do apuizeiro.
Alto, forte, espadaúdo, pela caraça insondável rastreiam estigmas variólicos. A dentuça patinada de sarro como o teclado adormecente de um piano antigo, é defendida aqui e ali pela cárie fagedênica do fumo.
Gazela é um vulto mórbido e rapace de Alighieri, que o tesourão metapsíquico de um gênio recortou de um capítulo da Divina Comédia, para grudá-lo depois, numa folha verde do álbum adolescente da Amazônia.
Todas as torpitudes, todas as macabras idealizações de um cérebro doentio, alienando rechãs e deturpando honras e riquezas, residem no âmago daquele bruto.
O seu seringal “Nova Vida” é um burgo medieval cheio de tiriricas e mucuins. É ele, com pompa e majestade, um senhor de baraço e cutelo.
O baraço que manieta o indefeso trabalhador, o cutelo que o estripa nas tentaculares escroquerias das contas e dos saldos.
Como as flores carnívoras é o seu sorriso. Desfiado em traquitanas de hipócritas oblatas, ele se seduz pelo aspecto sereno dos seus verticilos morais. Caída a presa na fascinação da oferenda inocente, fecha-se a corola na constrição putrívora. E o ser incauto e bom, parece estrangido e exânime, ao beijo inenarrável do monstro, cujos esgares semelham os instantes nauseosos da digestão dos reptis.
O seu olhar se alarga no telescópio ambicioso da conquista.
E lambe os escaninhos da Terra, arrastando na ânsia incontida, os pequenos trabalhadores e os humildes industriais. Seu coração é uma víscera metálica, obediente às imposições de um ritmo mecânico e rapace. Os gadanhos dos seus sentidos solertes farejam, no amplo cenário da natureza em festa, os vestígios de azinhave das cafurnas. O sol é de ouro. O rio é uma áurea corrente. Os vegetais só interessam ao amanhecer e ao sol-posto, quando a luz, em vertigem, nos últimos acenos da vida a se extinguir, distende as mãos actínicas para chapear de ouro a coma das samaúmas e o dorso floral dos acapus. (15)
Lucilene Gomes Lima - "FICÇÕES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS". Estudo comparativo dos romances “A selva” (FERREIRA DE CASTRO), “Beiradão” (ÁLVARO MAIA) e “O amante das amazonas” (ROGEL SAMUEL), Editora da Universidade do Amazonas, 2009. 240p. ISBN 978-85-7401-458-6. Solicitações: lucileneglima@bol.com.br
14) Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 83.
15) Ramayana de CHEVALIER, No circo sem teto da Amazônia, p. 69-70.
terça-feira, 12 de janeiro de 2010
Famílias
Famílias
LUCILENE GOMES LIMA
A História que, no aspecto geral, serve de base para as ficções da borracha, registra que muitos seringueiros conseguiram enviar dinheiro para suas famílias no nordeste, (12) muito embora o quadro apresentado por Euclides da Cunha em seu livro À margem da história não demonstre uma avaliação otimista da possibilidade de o seringueiro enriquecer através do sistema escorchante do aviamento:
Admitamos agora uma série de condições favoráveis, que jamais concorrem; a) Que seja solteiro; b) Que chegue à barraca em maio, quando começa o corte; c) Que não adoeça e seja conduzido ao barracão, subordinado a uma despesa de 10$000 diários; d) Que nada compre além daqueles víveres – e que seja sóbrio, tenaz, incorruptível; um estóico firmemente lançado no caminho da fortuna arrostando uma penitência dolorosa e longa. Vamos além – admitamos que, malgrado a sua inexperiência, consiga tirar logo 350 quilos de borracha fina e 100 de sernambi; por ano, o que é difícil, ao menos no Purus.
Pois bem, ultimada a safra este tenaz, este estóico, este indivíduo raro ali, ainda deve. O patrão é, conforme o contrato mais geral, quem lhe diz o preço da fazenda e lhe escritura as contas. Os 350 quilos remunerados hoje a 5$000 rendem-lhe 1.750$000; os 100 de sernambi, a 2$500, 250$000. Total 2:000$000.
É ainda devedor e raro deixa de o ser. No ano seguinte já é manso; conhece os segredos do serviço e pode tirar de 600 a 700 quilos. Mas considere-se que permaneceu inativo durante todo o período da enchente, de novembro a maio – sete meses em que a simples subsistência lhe acarreta um excesso superior ao duplo do que trouxe em víveres, ou seja, em números redondos, 1:500$000 – admitindo-se ainda que não precise renovar uma só peça de ferramenta ou de roupa e que não teve a mais passageira enfermidade. É evidente que, mesmo neste caso especialíssimo, raro é o seringueiro capaz de emancipar-se pela fortuna. (13)
12) Segundo pesquisa de Rodolfo Teófilo, até 1910, os nordestinos (seringalistas e seringueiros) enviaram cerca de 30.000 contos de réis para suas famílias. O nordestino que voltava para sua terra enriquecido era chamado paroara Cf. Samuel BENCHIMOL, Amazônia: formação social e cultural, p. 145.
13) Euclides da CUNHA, Amazônia: um paraíso perdido, p. 52-3.
Lucilene Gomes Lima - "FICÇÕES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS". Estudo comparativo dos romances “A selva” (FERREIRA DE CASTRO), “Beiradão” (ÁLVARO MAIA) e “O amante das amazonas” (ROGEL SAMUEL), Editora da Universidade do Amazonas, 2009. 240p. ISBN 978-85-7401-458-6. Solicitações: lucileneglima@bol.com.br
segunda-feira, 11 de janeiro de 2010
O sonho de riqueza
O sonho de riqueza
LUCILENE GOMES LIMA
Ainda que prepondere nas obras a desdita do seringueiro que vem para o seringal com o sonho de enriquecer e encontra apenas trabalho árduo, condições de sobrevivência precárias e risco de vida, há alguma referência a seringueiros enriquecidos com o trabalho de extração como nesta passagem do romance Dos ditos passados nos acercados do Cassianã:
[...] Deveras que muito seringueiro teve de sua sorte. Ganhou dinheiro a valer. Se não gastou nas safadezas na capital, voltou rico. José Francisco foi um dos agraciados. Com o saldão recebido, tornou ao Ceará. Montou comércio em Fortaleza, vive hoje de como que quer. Saber-se de outros, comprando fazenda de criação, engenho, grandes porções de terras no sertão. Uma dessas se dando, quando a borracha vai longe. De tirar saldo de não ter onde guardar [...] (11)
11) JACOB, Paulo Herban Maciell, Dos ditos passados nos acercados do Cassianã, p. 37-8
Lucilene Gomes Lima - "FICÇÕES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS". Estudo comparativo dos romances “A selva” (FERREIRA DE CASTRO), “Beiradão” (ÁLVARO MAIA) e “O amante das amazonas” (ROGEL SAMUEL), Editora da Universidade do Amazonas, 2009. 240p. ISBN 978-85-7401-458-6. Solicitações: lucileneglima@bol.com.br
domingo, 10 de janeiro de 2010
ALCEU
ALCEU
CLARISSE DE OLIVEIRA
Foto: Morte em Veneza
Você ficou numa estrada vendo se adiantarem amores, confirmações de fidelidades perenes, e nessa estrada que corta quatro abismos, como um local esquecido do Bardo, o vento sopra levando essas vozes mentirosas enroladas pelos sopros de Monstros Irresponsáveis.
Os ventos eram tão fortes, que eu, por mais bem intencionada que fosse, não conseguia permanecer perto de você, para, gritando o mais possível, lhe dar
esperanças que os ventos enrolavam, enrolavam...
Os Monstros esqueceram da Vitória que conquistou ali, sozinho na Estrada e eu sendo arrastada pelos Ventos ainda não havia tido toda a visão da sua Grande Realidade Conquistada...
Clarisse
A dicotomia explorador-explorado
A dicotomia explorador-explorado
LUCILENE GOMES LIMA
Seringalistas e seringueiros são, na maioria dos romances da borracha, as personagens centralizadoras dos enredos ou, se considerarmos outro aspecto da narrativa, personagens sob as quais recai a focalização. (8) As demais figuras presentes nas atividades do seringal, entre elas gerentes, guarda-livros ou aquelas atreladas ao processo do ciclo, tais como aviadores, exportadores não têm presença de destaque na prosa do “ciclo da borracha”. Não se tem a visão do mundo do seringal senão através do seringalista que configura o explorador e do seringueiro, o explorado.
A condição do seringalista como explorador da força de trabalho do seringueiro possibilitou a criação de um estereótipo do patrão truculento. O endosso dessa imagem veio das próprias relações de trabalho estabelecidas nos seringais. Ao criar o contrato de trabalho, o patrão seringalista submetia o freguês seringueiro a um regulamento que estabelecia mais vantagens ao patrão do que ao freguês. Além das perdas que o seringueiro tinha com a cobrança de um débito que se iniciava pelo preço de sua passagem ao seringal e acrescia-se com o preço das ferramentas de trabalho, também era obrigado a se submeter a uma ração alimentar que meramente o mantinha vivo para o trabalho. No romance A selva, a percepção do narrador põe-se frontalmente em oposição ao seringalista, esclarecendo a condição de servidão do seringueiro, vítima da má fé e da extorsão:
"Aquele era sempre o ‘talão grande’ onde se juntavam as despesas da viagem e mais empréstimos, que prendiam por muitos anos ao seringal, em trabalho de pagamento, o sertanejo ingênuo.
Alberto viu-se com o seu na mão – setecentos e vinte mil réis parcelados por seis ou oito linhas – e depois, sobre o balcão, meia dúzias de coisas que lhe pareceram não valer um pataco. Atribuiu a engano a soma alarmante, mas o rabo do olho, atirado à nota do vizinho, descobriu nela uma quantia igual, repetida em quantos papéis se estendiam para Binda". (9)
Em Terra de ninguém, romance de Francisco Galvão, o narrador também demonstra aversão pela personagem do coronel seringalista. Identificando-se com os seringueiros, esse narrador critica o enriquecimento do seringalista, os privilégios que aufere às expensas do trabalho dos seringueiros. No contexto do romance, a possibilidade de saldo para os seringueiros é taxativamente negada:
"A vida corria monótona para os quinhentos homens que amealhavam a fortuna do dono do seringal. Todos lutavam com o mesmo esforço, como polias impulsionando a mesma máquina. As estradas contribuíam, com o suor humano, para que ele possuísse na firma J. G. de Araújo, grandes reservas monetárias.
[...]
Mil braços se estorciam ajudando a engorda pacífica e mansa desse homem, na selva bárbara, onde a esperança de libertação desaparecia ao tempo em que aumentava o débito da conta corrente pela desapreciação do preço das gomas.
O que se atrevesse a falar em saldo, no desejo natural da volta ao nordeste, arriscava-se a desaparecer, para sempre, à curva de uma estrada, morto à tocaia mandada fazer pelo Antônio". (10)
NOTAS
8) De acordo com Carlos Reis e Ana C.M. Lopes, a “focalização pode ser definida como a representação da informação diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de uma personagem da história, quer o do narrador heterodiegético, conseqüentemente, a focalização além de condicionar a quantidade de informação veiculada (eventos, personagens, espaços etc) atinge a sua qualidade, por traduzir uma certa posição afetiva, ideológica, moral e ética em relação a essa informação [...]” (Dicionário de teoria da narrativa, p. 246).
9) José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 101.
10) Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 89.
Lucilene Gomes Lima - "FICÇÕES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS". Estudo comparativo dos romances “A selva” (FERREIRA DE CASTRO), “Beiradão” (ÁLVARO MAIA) e “O amante das amazonas” (ROGEL SAMUEL), Editora da Universidade do Amazonas, 2009. 240p. ISBN 978-85-7401-458-6. Solicitações: lucileneglima@bol.com.br
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A dicotomia explorador-explorado
sábado, 9 de janeiro de 2010
Teresinha Morango
Teresinha Morango
Rogel Samuel
Teresinha Morango ficou em segundo lugar no concurso de Miss Universo de 1957. Ela era uma amazonense tão bela, que (dizem) a atriz Elizabeth Taylor a encontrou no hall do hotel e perguntou:
- Quem é aquela moça?
Responderam. Ela quis conhecê-la porque estava deslumbrada com sua beleza. Morango poderia ter sido atriz de Hollywood.
Nasceu em São Paulo de Olivença, AM, 26 de outubro de 1936.
Eu a vi, em Manaus. Sua beleza era extraordinária.
Dizem que era filha de pai português e mãe índia. No Rio de Janeiro em 1956 elegeu-se "Miss" Cinelândia e apareceu no filme "Garotas e Samba", ao lado de Zé Trindade, Zezé Macedo, Renata Fronzi, Sônia Mamede. Fez uma ponta como recepcionista de uma pensão para "moças de família", depois foi "Miss" Amazonas e "Miss" Brasil 1957.
Casou-se com o empresário Pittigliani.
A sedução da borracha
A sedução da borracha
LUCILENE GOMES LIMA
A presença constante do tema do “ciclo da borracha” na ficção amazonense levou Mário Ypiranga Monteiro, em Fatos da literatura amazonense, a criticar o filão em torno desse tema, observando: “[...] lamentavelmente todo contista que se inicia ou mesmo romancista já experimentado se deixa seduzir pelo denominador comum da economia da borracha [...]. (5) Para o autor, o tema do ciclo é o principal motivo do infernismo literário, o qual consiste em escandalizar a paisagem e explorar a tragédia em torno da figura opressora do coronel da borracha e da conseqüente submissão do seringueiro. A ficção da borracha padeceria, segundo sua avaliação, de um tautologismo ao repetir desgastadamente sempre os mesmos aspectos.
Opondo o infernismo do “ciclo da borracha” ao edenismo do ciclo do cacau, Monteiro demonstra as diferenças fundamentais entre esses ciclos. Observa que o ciclo do cacau promoveu a fixação à terra, criou condições para que se estabelecesse uma cultura expressiva do sedentarismo burguês. A própria estrutura arquitetônica da casa-grande do ciclo econômico do cacau ostentava permanência, comodidade, com sua variedade de janelas, seus quartos amplos, suas salas de jantar e de estar, seus móveis em estilo clássico e as redes armadas nas salas de jantar ou à sombra dos cacauais. Já o “ciclo da borracha” apresentou um panorama social bastante diverso. Sendo economia de transplantação, suas características eram as relações de desconfiança entre patrão e freguês, suas moradias ostentavam o aspecto da improvisação dos que não tomavam assento definitivo à terra. Nas palavras de Monteiro, a sociedade econômica do ciclo
[...] conduz os trabalhadores da ‘margem’ para o ‘centro’, da liberdade para a reclusão, isola-os, explora-os, escravíza-os ao regime da conta sem-fim, animalíza-os, brutalíza-os, inutilíza-os até para a satisfação sexual, instaurando um quadro de renúncia forçada aos acenos ambiciosos da vida, um estatuto de anacoretismo em que parece mais evidente o contexto da sabedoria popular: mente desocupada é oficina de satanás. A ausência da fêmea, nutrindo a preocupação dos machos famintos de associação e presença, é suprida pela imaginação sofredora e urgentiza a paródia, a busca de soluções desesperadas. Daí para os conflitos sangrentos é um passo.
Nasce o infernismo literário, produto da economia predatória e da paixão solitária. (6)
Monteiro aponta um tratamento superficial dado pela maioria dos escritores às obras do ciclo ao afirmar que tanto os antigos quanto os modernos deixaram de perceber o mundo do seringal por uma via verdadeiramente sociológica que penetrasse a sua engrenagem internamente e optaram pelo aspecto externo da tragédia fácil. (7) Para Monteiro, as características da economia de transplantação geraram as formas de abordagem que enfatizam a negatividade do meio, os comportamentos humanos aberrativos.
A ficção em torno do ciclo explorou abundantemente imagens da solidão do seringueiro na selva, solidão que na maioria das vezes é o degredo do nordestino retirante, vivendo o estranhamento de uma ambiente que lhe é desconhecido e hostil. A relação inamistosa do seringueiro com os índios que habitavam as grandes extensões de terras dos seringais é também um tópico quase sempre abordado nas obras do ciclo. Via de regra, o indígena aparece como um ser sanguinário, ameaça ao trabalho do seringueiro, pavor que faz o dia-a-dia nas estradas de corte de seringa um perigo constante. Além desses tópicos que geralmente se apresentam nas obras do ciclo, ocorre a constância de alguns aspectos, muitas vezes estruturadores dos enredos, que se relacionam diretamente às características das relações de trabalho estabelecidas em função da extração do látex. O relacionamento do patrão seringalista com o seringueiro ou freguês motivou a maior parte das abordagens das obras. Os dados históricos que informam as condições nem sempre justas do vínculo de trabalho entre o patrão e o freguês serviram de corolário à criação dos ficcionistas, abrindo um caminho que foi percorrido diversas vezes. Passaremos a analisar, a seguir, a constância desses aspectos nas obras do “ciclo da borracha”.
NOTAS
5) Mário Ypiranga MONTEIRO, Fatos da literatura amazonense, p. 297.
6) Mário Ypiranga MONTEIRO, Fatos da literatura amazonense, p. 41.
7) Ibid., p. 47.
sexta-feira, 8 de janeiro de 2010
O Senador
O Senador
NEUZA MACHADO
Ribamar apareceu resguardado pelo poder ficcional do segundo narrador. Este segundo, como representante legal do antigo poder em decadência, como representante daqueles que perderam o nome ilustre do passado (sobrenome), não se viu no direito de, para si mesmo, reivindicar uma demanda para um renovado poder sócio-político na Cidade de suas inspirações maiores. A população, até aquele momento, inferiorizada, menosprezada socialmente e politicamente, começava a reagir contra os abusos do antigo poder dos tiranos magnatas, naquele agonizante momento de impasse político.
Nas páginas finais do romance o personagem (anteriormente, primeiro narrador) passa a representar a burguesia manauara pós-borracha, ou seja, será ele o representante da burguesia comercial da Zona Franca, a qual, já naquele momento, estava também, por sua vez, em decadência. Em verdade, o representante de fato da decadente burguesia comercial manauara é o personagem Juca das Neves, o falido proprietário do “Armazém das Novidades”. Penso que o Ribamar (d’Aguirre) de Souza vai além, como representante da burguesia comercial e política de uma diferenciada sociedade manauara (um novo rico; um paupérrimo retirante nordestino que enriqueceu “solidamente” e tornou-se Senador da República).
O fogo da labareda da serpente
Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel
Coronel de barranco
Coronel de barranco
LUCILENE GOMES LIMA
O romance Coronel de barranco centra-se mais na margem e expõe o sistema extrativista da borracha através da personagem Cipriano, seringalista rude que desconhece as determinações econômicas do ciclo e ignora os riscos a que está exposto, confiando apenas na exploração da borracha nativa. Como A selva, o romance tem o objetivo claro de ensinamento conforme se nota nessa passagem em que a personagem Matias elucida para a personagem Cipriano o sistema de funcionamento econômico do ciclo:
- Veja bem, coronel. Todos os domingos, os seus seringueiros chegam aqui no armazém, para se aviar, levam tudo que precisam, a comida, a cachaça, o querosene, alguma ferramenta, remédios, uma peça de roupa...
- Levam tudo que precisam. Está aqui o besta velho pra dar tudo que eles querem, fiado.
- Exatamente. Eles não pagam ao senhor, não é verdade? Tudo fiado, não é verdade? A Casa Flores manda os vapores carregados de aviamentos...
- Manda, não. Mandava.
- Sempre mandou, Coronel. Mas, bem. A Casa Flores lhe manda tudo que o senhor pedir e até o que não pedir. Cobra do senhor à vista? Algum dia marcou data certa para o senhor pagar?
- Mas a minha seringa está lá no armazém deles.
- Perfeitamente. Chegaremos lá. E como a Casa Flores compra essas mercadorias, todas importadas do [sic] outros Estados ou do estrangeiro? Sobretudo do estrangeiro. Onde ela vai buscar o dinheiro, se o dinheiro só pode entrar depois que a seringa for vendida?
- Pra que é que eles têm a burra cheia de dinheiro?
- Que burra cheia de dinheiro, Coronel? O dinheiro eles vão sempre buscar nos bancos, Coronel. E em que bancos? Nos bancos estrangeiros. E como é que se pagam os bancos, Coronel? Não é como o seu seringueiro para o senhor, quer dizer, quando puder, quando Deus ajudar.
- Quando paga. E se o cabra foge? Ou morre? Ou leva o diabo?
- Também não é assim que o senhor paga a Casa Flores?
- Nunca deixei de pagar.
- Claro. Mas paga quando chega a Manaus. Quando a borracha já foi vendida. Quando o senhor chega lá para acertar as contas, sem data certa, porque o senhor tem crédito.
- Tenho porque mereço.
- E como é que a Casa Flores paga o banco?
- Quando quiser? Só quando puder? Não senhor, Coronel. Numa data certa, num prazo fixo. E quando chega o fim desse prazo, se não tiver dinheiro, a Casa Flores tem de reformar a dívida, dar um tanto por conta, para os juros, para esperar vender a borracha que o senhor mandou e ver entrar o dinheiro. Quer dizer, no fim da safra.
- Então? Que novidade, seu Albuquerque.
- Pois bem. Agora, Coronel, neste ano fatídico de 1914, nesta hora em que se está esperando uma guerra na Europa, uma guerra em que a Inglaterra terá também de entrar...
- Entrar pra quê? Besteira de guerra.
- Nesta hora difícil, Coronel, as matrizes dos bancos de lá mandam ordens às suas filiais de Manaus para não reformarem os títulos; querem o dinheiro na data marcada, no prazo fixado. Compreendeu agora, Coronel? Se a Casa Flores não paga, o banco pede a falência da Casa Flores.
- E por que o filho do Comendador, homem moço, não vai lá no banco dos bifes e quebra o focinho do gerente? Se fosse comigo, era assim. Ou um tiro nas ventas.
- Para não falir, a Casa Flores consegue a muito custo um último prazo, e pede ao senhor que pague a ela as mercadorias que lhe mandou a crédito durante o ano inteiro. Pergunto agora, o senhor pode obrigar o seu seringueiro a lhe pagar o que o senhor vendeu a ele fiado? O resto o senhor já sabe. E não se esqueça que citei a Casa Flores só para dar um exemplo. Todas as casas aviadoras estão vivendo a mesma situação, igualzinha, ou até pior. Compreendeu agora o funcionamento da máquina, Coronel? Compreendeu a situação? (4)
NOTAS
1) Esse romance foi publicado posteriormente (1934) com o título de Terra de Icamiaba.
2) José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 117.
3) José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 138-9.
4) Cláudio de Araújo LIMA, Coronel de barranco, p. 311-315.
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
A selva e Coronel de barranco
A selva e Coronel de barranco
LUCILENE GOMES LIMA
- Não lhe toque seu Alberto!
- Porquê?
- Vai ver...
Despiu a blusa, numa das mangas envolveu o cabo do seu facão e com a lâmina roçou de leve o dorso do puraqué.
- Agora toque aqui... Mas só com um dedo – e indicava o espigão do terçado, que aparecia na extremidade da madeira. Alberto obedeceu e logo se sentiu percorrido por um forte choque elétrico.
Firmino sorria e explicava:
- Esse bicho é assim. Se um homem tem o coração fraco e lhe toca dentro de água, pode ir para o outro mundo... (3)
(A selva)
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A selva e Coronel de barranco
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
A seringa
A seringa
LUCILENE GOMES LIMA
Em romances como A selva e Coronel de barranco, entretanto, os ficcionistas expõem em detalhes o funcionamento do seringal e o processo econômico do ciclo. Em A selva, tanto a margem quanto o centro recebem um enfoque didático. Alberto, o protagonista do romance, inicia uma ação romanesca que vai desde o recrutamento para o trabalho no seringal até a sua integração nele, conhecendo-o em profundidade. Inicialmente, Alberto observa e analisa a viagem no vapor, o tratamento dado ao nordestino, depois conhece o funcionamento do seringal e sua ingerência na vida dos seringueiros. Indo para o centro, é guiado pela personagem Firmino, seringueiro manso que lhe ensina pacientemente a técnica de coleta do látex e os conhecimentos necessários para sobreviver na selva. Esse aprendizado é explicitado nos seguintes trechos:
Isto são as tigelinhas. Se espeta elas na seringueira, pelas bordas. Assim... É preciso ter cuidado para que a folha fique bem segura, se não a tigelinha cai e o leite escorre todo para fora. Está compreendendo?
[...]
- Cada seringueira leva tantas tigelinhas conforme for a grossura dela. Uma valente, como aquele piquiá que você está vendo ali, pode levar sete. Uma assim como esta leva cinco ou quatro, se estiver fraca. Corta-se de cima para baixo e, quando se chega a baixo o machadinho volta acima, porque a madeira já descansou. Seringueiro malandro faz mutá, mas aqui é proibido.
- Que é isso?
- Vamos andando que eu já lhe explico. Mutá é fazer um girau com galho de árvore e ir cortar a seringueira lá em cima, junto à folha. A princípio dá mais leite, mas depois morre. (2)
terça-feira, 5 de janeiro de 2010
O ciclo da borracha
O ciclo da borracha
LUCILENE GOMES LIMA
O veio aberto pela pesquisa histórica sobre o “ciclo da borracha” foi também amplamente explorado pela ficção amazônica e amazonense, em particular. Do final do século XIX, passando por todas as décadas do século XX, foram escritas obras que abordaram integralmente ou fizeram referência parcial ao ciclo. O paroara (1899), de Rodolfo Teófilo, é uma das primeiras obras a abordar o ciclo através da aventura de um imigrante cearense na selva amazônica. Seguem-lhe Inferno verde, especialmente o conto “Maiby” (1908), de Alberto Rangel; o conto “Judas- Asvero” , em À margem da história (1909), de Euclides da Cunha; Deserdados (1921), de Carlos de Vasconcelos; A selva (1930), de Ferreira de Castro; Amazônia que ninguém sabe (1932)(1) , de Abguar Bastos; Terra de ninguém (1934), de Francisco Galvão; Marupiara (1935), de Lauro Palhano; Um punhado de vidas (1949), de Aristófanes Castro; No circo sem teto da Amazônia (1955), de Ramayana de Chevalier; Beiradão (1958), de Álvaro Maia; Arapixi (1963), de Adaucto de Alencar Fernandes; Dos ditos passados nos acercados do Cassianã (1969), de Paulo Jacob; Terra firme (1970), de Antisthenes Pinto; Coronel de barranco (1970), de Cláudio Araújo Lima; Regime das águas (1985), de Francisco Vasconcelos; O amante das Amazonas (1992), de Rogel Samuel e “Três histórias da terra”, em O tocador de charamela (1995), de Erasmo Linhares.
Através dessas obras, o “ciclo da borracha” e, mais especificamente, o mundo do seringal, desfilou na ficção, tornando-se um tema comezinho abordado na literatura amazonense. Surgiu, desse modo, um ambiente comum à ficção composto pela margem, onde se localiza o barracão com as atividades que lhe são peculiares, e pelo centro, o local onde se move o seringueiro e se desenrolam acontecimentos a ele ligados. Geralmente, o enfoque das obras acentua mais um ambiente do que o outro ou, ainda, os dois têm pouco destaque no sentido de serem tratados sem detalhamento. Nesse último caso, importa aos ficcionistas explorar imagens estereotipadas em torno do seringalista e do seringueiro, personagens centrais na ficção sobre a borracha.
Os mistérios de uma fotografia
Os mistérios de uma fotografia
Rogel Samuel
Como se pôde obter essa fotografia?
Fileto Pires Ferreira concluiu as obras do Teatro Amazonas, que estavam paradas, e o inaugurou em 31 de dezembro de 1896. Mesmo assim, no dia da inauguração, neste dia, os andaimes da construção do teatro ainda estavam lá, talvez, porque o teatro não estava inteiramente concluído. Inaugurou-se o teatro naquele dia com “La Gioconda”, de Amilcare Ponchielli, sob a regência do maestro brasileiro Joaquim de Carvalho Franco, que foi diretor da Academia Amazonense de Belas Artes.
Como se pôde obter aquela fotografia aérea?
A foto deve ser da época da inauguração. Governo Fileto Pires Ferreira.
Como não havia helicóptero, a foto só pôde ter sido tomada de um balão!
Mas como fotografar de um balão com as câmeras fotográficas da época?
Quem foi o autor da foto? Foi George Huebner (1862 1935), um fotógrafo alemão que se estabeleceu em Manaus, onde viveu cerca de 50 anos, e onde faleceu.
Diz Mário Ypiranga que a foto é da edição de George Huebner, de Dresden, Alemanha.
O livro está publicado hoje: "George Huebner 1862-1935: um Fotógrafo em Manaus", de Daniel Schoepf.
Sobre George Huebner, leia-se de Andreas Valentin:
http://www.studium.iar.unicamp.br/17/02.html?studium=index.html
Observando bem se vê em primeiro plano os fortes muros de contenção que foram construídos e que existem até hoje como o que hoje aparece na Rua Simão Bolívar e serviriam para conter o arrimo do Palácio do Governo, a maior obra de Eduardo Ribeiro, maior do que o Teatro Amazonas. O Palácio nunca foi finalizado, e sobre suas fundações Álvaro Maia construiu a escola normal tal como existe até hoje. Os muros estão lá, para confirmar. O Palácio seria, se construído, A MAIOR CONSTRUÇÃO DO BRASIL de sua época!
Naquele espaço depois do muro há umas casas que deviam abrigar operários ou materiais e muito mato. Ali hoje estão ruas e casas.
Atrás, à direita da foto, a observação é mais curiosa: onde está o Palácio da Justiça? Está ali, ainda quase no chão, está em obras. As obras podem ser vistas se ampliar a foto.
O que se vê é a estrada tosca do viria a ser a Avenida Eduardo Ribeiro e a Matriz, no canto superior direito. Dá para ver os postes de iluminação meio da Avenida, um luxo para época. São postes com várias lâmpadas cada um, cada um tem três fileiras de lâmpadas, contei 30 lâmpadas cada poste.
Mas atrás da igreja matriz há uma construção enorme. Que será aquilo?
Perto do quarto poste se pode distinguir a casa de Eduardo Ribeiro, talvez.
Observe no primeiro plano que o terreno desce e aquilo devia dar num lago ou pântano e essa depressão existe até hoje atrás da Academia de Letras. Aquele terreno era um pântano.
É uma foto aérea, rara para a época.
Foto extraordinária.
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segunda-feira, 4 de janeiro de 2010
A megaloteria
A megaloteria
Rogel Samuel
Se eu ganhasse essa megassena talvez fosse morar no Hotel Ritz, em Paris por um tempo. Lá teria inspiração da prosa de Proust.
Ou no Rio fosse morar no Copacabana Pálace, no mesmo apartamento da Madona. De lá se vê o mar, de lá se vê a piscina tremeluzir.
Mas meu sonho de consumo é este:
http://www.rolls-roycemotorcars.com/
Não sei onde poderia andar de Rolls-Royce no Rio de Janeiro. Lembro-me de uma piada acerca do carro. Numa reunião da diretoria, um diretor bem velho disse:
- O novo carro é tão silencioso que só se ouve o tic-tac do relógio.
Ao que outro diretor mais velho retrucou:
- Precisamos dar um jeito neste relógio...
Seria bom com o dinheiro da loteria montar uma editora e ter muito prejuízo publicando bons e belos livros. E fazer um filme. Adoraria fazer um filme sobre a Amazônia, sobre o roteiro que tenho escrito e que um dia ainda transformo em romance.
Publicarei no blog.
Nem preciso da megassena.
Leituras
Leituras
Rogel Samuel
Nessa manhã de calor, escrevo. Lembro-me de ter lido umas das melhores prosas de Rubem Braga, a sobre o verão. Ele morava no Rio, no Leblon (creio eu), e até plantou uma árvore em seu apartamento. Eu o conheci nas circunstâncias que já relatei, e foi a única vez que o vi pessoalmente. Ele é um escritor perfeito, ele e Clarice têm a melhor prosa do Brasil.
Mas isso não é nada: estou lendo um livro delicioso, escrito com a arte dos grandes prosadores: O MORRO DA CASA GRANDE, de Dílson Lages Monteiro. As frases curtas têm ritmo, o livro todo é um trabalho de linguagem de prosa poética extraordinária.
domingo, 3 de janeiro de 2010
O Punhal de Clarisse de Oliveira
O Punhal de Clarisse de Oliveira
Rogel Samuel
Um dos textos mais cortantes, mais fortes, mais plenos de significados de Clarisse de Oliveira é o seu "O punhal".
Eu o leio desde que foi escrito, há muitos anos.
Já foi elogiado até por uma crítica de literatura que mora em Paris, que me perguntou: "quem é esta escritora? eu a conheço?"
Lembrei-me dele neste início de ano, após um diálogo ardente com NEUZA MACHADO a respeito de certos pontos de minha vida.
O texto lembra um poema em prosa de Borges, mas tenho certeza de que Clarisse não se inspirou nele.
Eu conheci o Gerardo de que ela fala. E já devo ter visto esse punhal no apartamento de Clarisse quando ela morava em Ipanema e onde me hospedei.
Isso já faz muitíssimos anos.
Depois que ela se mudou para um lugar distante, só acessível por carro, não a visitei mais, pois estou há uns 30 anos sem dirigir.
Clarisse mora no meio do mato, numa floresta. Ela gosta, nada se pode fazer.
Leia O punhal:
O Punhal
(Clarisse de Oliveira)
A mão que acaricia é aberta;
Mas quando ela se fecha
no cabo de um punhal,
ela é mortal.
Quando meu amigo Gerardo morreu,
abriram seu armário de caça,
e me mandaram escolher
o que eu quisesse.
Escolho cinco assobios de madeira
que imitam os cantos dos pássaros,
e um grande e estreito punhal,
o cabo trabalhado em prata
e pedra preciosa brasileira.
Eu percebi muito tempo depois,
que a lamina do punhal
era mais pesada que o cabo
e isso permitia
que se eu o largasse de certa altura,
ele caia fincado na madeira
sem esforço.
Tive uma vida ferida,
no seio de uma familia
que não me compreendia.
Às vezes, adolescente,
eu segurava o punhal, pensando:
- Você me tiraria desta vida,
mas pressinto
que me acompanharás
o tempo todo -
companheiro agressor,
mas sustentáculo
onde muitas vezes
o amor nos ameaça
na sombra
mas o segredo da Vida
abre Asas em nosso Espirito.
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O Punhal de Clarisse de Oliveira
POR ALGUNS ÍNTIMOS CAMINHOS
POR ALGUNS ÍNTIMOS CAMINHOS
uma outra noite se levantará na noite
e por alguns íntimos caminhos
chegaremos à divindade dos cisnes
por um ínfimo caminho
chegaremos às suas asas de violinos
um território levíssimo
de hífens e de arminho
chegaremos um dia
pelos cisnes
à modalidade da Flauta e dos Sinos
pág. 43
Alexandra Kräft (Maria Azenha)
Ela, Alexandra Kräft, caminha, para o fim do mundo, para o fim do caminho, para o caminho mais íntimo, o caminho dos cisnes, no meio da noite sobre a noite, no meio da escuridão da mais terrível noite, para a divindade dos cisnes e de seus arminhos brancos, para suas asas de violinos finos, caminha, por um ínfimo caminho caminha, no território levíssimo dos seus hífens e de seus nadas, de seus sombrios íntimos, para chegar um dia desses aos cisnes, às flautas, aos sinos, à intimidade erótica das flautas mágicas e dos sinos. (Rogel Samuel)
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