quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O sol é de ouro





O sol é de ouro

LUCILENE GOMES LIMA


(Gravura Heloisa Pires Ferreira)


Em decorrência dos dados desabonadores sobre a conduta dos seringalistas apontados na pesquisa histórica e atestados pelos próprios regulamentos do trabalho no seringal, ganhou livre curso nas ficções da borracha a figura vilanesca deste agente econômico em função do qual o seringal se organizava. Não raro ele é pintado com cores fortes que lhe acentuam o caráter perverso, a exemplo dessa descrição no romance “Terra de ninguém”: “homem de poucas palavras, sibilino. Profundamente tacanho e mau, somente disfarçava a fisionomia moral e se (sic) avistava com algum lêmure político da cidade” (14).

Na obra No circo sem teto da Amazônia, o traço de vileza atinge o paroxismo por conta da caracterização grotesca que dá à personagem ares teatrais e pelas comparações grandiosas e a adjetivação abundante:

Jacinto Gazela é um desses repulsivos queirópteros que riem.
O seu estalão moral se baliza no limo pegajoso dos barreiros.
O seu ideal é irmão–siamês do amplexo mortificante do apuizeiro.
Alto, forte, espadaúdo, pela caraça insondável rastreiam estigmas variólicos. A dentuça patinada de sarro como o teclado adormecente de um piano antigo, é defendida aqui e ali pela cárie fagedênica do fumo.
Gazela é um vulto mórbido e rapace de Alighieri, que o tesourão metapsíquico de um gênio recortou de um capítulo da Divina Comédia, para grudá-lo depois, numa folha verde do álbum adolescente da Amazônia.
Todas as torpitudes, todas as macabras idealizações de um cérebro doentio, alienando rechãs e deturpando honras e riquezas, residem no âmago daquele bruto.
O seu seringal “Nova Vida” é um burgo medieval cheio de tiriricas e mucuins. É ele, com pompa e majestade, um senhor de baraço e cutelo.
O baraço que manieta o indefeso trabalhador, o cutelo que o estripa nas tentaculares escroquerias das contas e dos saldos.
Como as flores carnívoras é o seu sorriso. Desfiado em traquitanas de hipócritas oblatas, ele se seduz pelo aspecto sereno dos seus verticilos morais. Caída a presa na fascinação da oferenda inocente, fecha-se a corola na constrição putrívora. E o ser incauto e bom, parece estrangido e exânime, ao beijo inenarrável do monstro, cujos esgares semelham os instantes nauseosos da digestão dos reptis.
O seu olhar se alarga no telescópio ambicioso da conquista.
E lambe os escaninhos da Terra, arrastando na ânsia incontida, os pequenos trabalhadores e os humildes industriais. Seu coração é uma víscera metálica, obediente às imposições de um ritmo mecânico e rapace. Os gadanhos dos seus sentidos solertes farejam, no amplo cenário da natureza em festa, os vestígios de azinhave das cafurnas. O sol é de ouro. O rio é uma áurea corrente. Os vegetais só interessam ao amanhecer e ao sol-posto, quando a luz, em vertigem, nos últimos acenos da vida a se extinguir, distende as mãos actínicas para chapear de ouro a coma das samaúmas e o dorso floral dos acapus. (15)



Lucilene Gomes Lima - "FICÇÕES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS". Estudo comparativo dos romances “A selva” (FERREIRA DE CASTRO), “Beiradão” (ÁLVARO MAIA) e “O amante das amazonas” (ROGEL SAMUEL), Editora da Universidade do Amazonas, 2009. 240p. ISBN 978-85-7401-458-6. Solicitações: lucileneglima@bol.com.br



14) Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 83.
15) Ramayana de CHEVALIER, No circo sem teto da Amazônia, p. 69-70.





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