quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

A tortura







A tortura


LUCILENE GOMES LIMA



Um exemplo que bem se adequa à descrição do tipo de seringalista perverso de No circo sem teto da Amazônia figura também num encaixe (16) contido no romance Um punhado de vidas em que um seringueiro com saldo decide partir do seringal e para tanto reivindica o valor que lhe é devido. Em resposta, o seringalista propõe-lhe que vá caçar veado antes de partir para não esquecer do seringal no qual trabalhou tantos anos. O seringueiro fica intrigado com a proposta e é informado por outra personagem que a caça se tratava de uma cilada armada para os seringueiros com saldo. Mesmo desistindo de cobrar o saldo e apenas manifestando o desejo de ir embora, o seringueiro é mais uma vez intimidado pelo patrão, que para lhe provar do que é capaz, mata um empregado em sua presença como se abatesse um bicho. (17)
As demonstrações da vileza do caráter do seringalista se configuram nos castigos que infringe aos seringueiros que desobedecem suas ordens diretas ou os preceitos do regulamento. No romance Coronel de barranco, o seringalista pune um seringueiro que desobedece a ordem de não cultivar horta nem caçar ou pescar a fim de promover outra forma de sobrevivência além daquela obtida através dos aviamentos, pondo fogo na pequena plantação que esse seringueiro havia cultivado às escondidas nas horas que lhe sobravam do trabalho de extração e defumação do látex. (18) O romance Terra de ninguém, por outro lado, apresenta um seringueiro castigado com o aprisionamento no tronco por ter reclamado da qualidade do sabão que recebera no aviamento. (19).
Em Regime das águas, o instrumento descrito na prática de tortura é uma palmatória chamada “melindrosa”. A cena em que o seringalista é intimado a dar esclarecimento ao juiz sobre o objeto ressalta a empáfia daquele, cônscio de que é a lei em seus domínios:

[...] O juiz, moço novo ainda, com ares de muita importância, foi logo entrando no assunto, sem dar tempo a qualquer conversa. Queria saber que história era aquela de uma palmatória de dois quilos que, segundo denúncia recebida, costumava usar no seringal, judiando daquela pobre gente indefesa. Seria verdade tamanho absurdo?
- Mas foi aí que o homem da lei se enganou – dizia João Firmino, com sentido orgulho da coragem do patrão. – Então pensava ele que ia o homem amofinar, meter o rabo entre as pernas e arranjar uma desculpa qualquer para sair da encrenca? Nada disso! O patrão era cabra macho, homem de vergonha e de muita firmeza. E comentava com largo sorriso a resposta que, sem qualquer demora, dera o patrão à interpelação do magistrado:

- Dois quilos não, seu juiz! Quase três. Esse, com todo respeito à pessoa do Doutor Juiz, o peso da melindrosa. E digo mais, seu Doutor, ela só serve mesmo para corrigir cabra safado e mulher fuxiqueira. (20)



Lucilene Gomes Lima - "FICÇÕES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS". Estudo comparativo dos romances “A selva” (FERREIRA DE CASTRO), “Beiradão” (ÁLVARO MAIA) e “O amante das amazonas” (ROGEL SAMUEL), Editora da Universidade do Amazonas, 2009. 240p. ISBN 978-85-7401-458-6. Solicitações: lucileneglima@bol.com.br







16) Em teoria da narrativa, dá-se o nome de encaixe a uma seqüência inserida no interior da narrativa principal, compondo uma unidade autônoma, mas não independente, uma vez que guarda relação temática com essa. (Cf. Carlos REIS e Ana M. LOPES, Dicionário de teoria da narrativa, p. 156).
17) Aristófanes CASTRO, Um punhado de vidas: romance do “soldado da borracha”, p. 72-4.
18) Cláudio Araújo LIMA, Coronel de barranco, p. 243-247.
19) Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 84.
20) Francisco VASCONCELOS, Regime das águas, p. 24-5.

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