domingo, 10 de janeiro de 2010

A dicotomia explorador-explorado














A dicotomia explorador-explorado


LUCILENE GOMES LIMA



Seringalistas e seringueiros são, na maioria dos romances da borracha, as personagens centralizadoras dos enredos ou, se considerarmos outro aspecto da narrativa, personagens sob as quais recai a focalização. (8) As demais figuras presentes nas atividades do seringal, entre elas gerentes, guarda-livros ou aquelas atreladas ao processo do ciclo, tais como aviadores, exportadores não têm presença de destaque na prosa do “ciclo da borracha”. Não se tem a visão do mundo do seringal senão através do seringalista que configura o explorador e do seringueiro, o explorado.
A condição do seringalista como explorador da força de trabalho do seringueiro possibilitou a criação de um estereótipo do patrão truculento. O endosso dessa imagem veio das próprias relações de trabalho estabelecidas nos seringais. Ao criar o contrato de trabalho, o patrão seringalista submetia o freguês seringueiro a um regulamento que estabelecia mais vantagens ao patrão do que ao freguês. Além das perdas que o seringueiro tinha com a cobrança de um débito que se iniciava pelo preço de sua passagem ao seringal e acrescia-se com o preço das ferramentas de trabalho, também era obrigado a se submeter a uma ração alimentar que meramente o mantinha vivo para o trabalho. No romance A selva, a percepção do narrador põe-se frontalmente em oposição ao seringalista, esclarecendo a condição de servidão do seringueiro, vítima da má fé e da extorsão:

"Aquele era sempre o ‘talão grande’ onde se juntavam as despesas da viagem e mais empréstimos, que prendiam por muitos anos ao seringal, em trabalho de pagamento, o sertanejo ingênuo.

Alberto viu-se com o seu na mão – setecentos e vinte mil réis parcelados por seis ou oito linhas – e depois, sobre o balcão, meia dúzias de coisas que lhe pareceram não valer um pataco. Atribuiu a engano a soma alarmante, mas o rabo do olho, atirado à nota do vizinho, descobriu nela uma quantia igual, repetida em quantos papéis se estendiam para Binda". (9)

Em Terra de ninguém, romance de Francisco Galvão, o narrador também demonstra aversão pela personagem do coronel seringalista. Identificando-se com os seringueiros, esse narrador critica o enriquecimento do seringalista, os privilégios que aufere às expensas do trabalho dos seringueiros. No contexto do romance, a possibilidade de saldo para os seringueiros é taxativamente negada:

"A vida corria monótona para os quinhentos homens que amealhavam a fortuna do dono do seringal. Todos lutavam com o mesmo esforço, como polias impulsionando a mesma máquina. As estradas contribuíam, com o suor humano, para que ele possuísse na firma J. G. de Araújo, grandes reservas monetárias.
[...]
Mil braços se estorciam ajudando a engorda pacífica e mansa desse homem, na selva bárbara, onde a esperança de libertação desaparecia ao tempo em que aumentava o débito da conta corrente pela desapreciação do preço das gomas.
O que se atrevesse a falar em saldo, no desejo natural da volta ao nordeste, arriscava-se a desaparecer, para sempre, à curva de uma estrada, morto à tocaia mandada fazer pelo Antônio". (10)

NOTAS

8) De acordo com Carlos Reis e Ana C.M. Lopes, a “focalização pode ser definida como a representação da informação diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de uma personagem da história, quer o do narrador heterodiegético, conseqüentemente, a focalização além de condicionar a quantidade de informação veiculada (eventos, personagens, espaços etc) atinge a sua qualidade, por traduzir uma certa posição afetiva, ideológica, moral e ética em relação a essa informação [...]” (Dicionário de teoria da narrativa, p. 246).
9) José Maria FERREIRA DE CASTRO, A selva, p. 101.
10) Francisco GALVÃO, Terra de ninguém, p. 89.

Lucilene Gomes Lima - "FICÇÕES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS". Estudo comparativo dos romances “A selva” (FERREIRA DE CASTRO), “Beiradão” (ÁLVARO MAIA) e “O amante das amazonas” (ROGEL SAMUEL), Editora da Universidade do Amazonas, 2009. 240p. ISBN 978-85-7401-458-6. Solicitações: lucileneglima@bol.com.br


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