HUMBERTO
DE CAMPOS - MEMÓRIAS INACABADAS
Obra póstuma
FREGUESES DA CASA
QUANDO leio as Memórias de Goethe, e vejo, lá, a galeria de
grandes figuras a cuja sombra se formou o seu espírito, e examino a estatura
dos homens de maior vulto que me coube contemplar, à distância, do balcão ou do
tanque da Casa Trasmontana, é que avalio os recursos de que dispus para sair da
mediocridade a que me votara o Destino. Houvesse eu encontrado a sombra, que
fosse, de João Lisboa ou de Sotero, que se desdobraram em trabalhos e glória
dentro da sua própria terra, e teria, talvez, recebido o eflúvio que delas
emanava. Por isso mesmo, as pequenas entidades assumiam aos meus olhos
proporções exageradas, e eu admirava cidadãos de Liliput como se eles
procedessem de Brobdingnag.
Considerada um dos primeiros estabelecimentos da praça no seu
gênero, e o primeiro pela sua seriedade, demonstrada na excelência e autenticidade
dos produtos que fornecia, a Casa Trasmontana contava entre os seus fregueses
algumas das figuras notáveis, ou simplesmente curiosas, que o Maranhão ainda
possuía. Achavam-se entre elas, por exemplo, o poeta Joaquim de Sousândrade,
o jornalista Alberto Pinheiro, e o Dr. Brandão,
engenheiro sexagenário que arquitetava, então, as mais famosas mentiras da
cidade.
Sousândrade era, sem dúvida, entre eles, o mais considerável pela
projeção do nome e pela originalidade do aspecto. Ao vê-lo, pela primeira vez,
atravessar a rua, vindo da Biblioteca, eu começava a armar no rosto de menino
um sorriso de espanto e de mofa, quando vi “seu” Zé encaminhar-se para a porta
e recebê-lo entre mesuras respeitosas e de pouco emprego na casa, antes mesmo
que ele tivesse pisado a orla da calçada.
1 Na
edição-base, o nome do poeta está escrito Joaquim de Souzandrade e, mais
adiante, Souzandrade. Anotamos Joaquim de Sousândrade e Sousândrade,
em atenção à grafia e prosódia prevalecentes, e à vista do registro Joaquim
de Souzàndrade e Souzàndrade, que vem na primeira edição deste
livro. (Rio de Janeiro: José Olympio, 1935, p. 16). (Nota do Editor).
Era um velho
alto, carão moreno e rigorosamente escanhoado, colarinho entalando o pescoço,
cabeleira grisalha caindo, fofa, para os ombros, cobrindo a orelha, e, sobre
essa cabeleira, que dava a impressão de achar-se empoada, uma cartola,
cuidadosamente posta e mantida em rigoroso equilíbrio. Calça de casimira
escura, e de lista, descia-lhe até aos joelhos uma sobrecasaca abotoada e
trespassante. No rosto largo, um sorriso polido, mas deixando à mostra uns
grandes dentes cuidados. E, pendente de um fio negro, um monóculo, que levava
de instante a instante, em gestos pausados, à órbita esquerda. Tipo de poeta ou
de político norte-americano da primeira parte do século XIX.
– Sabe quem é esse? – sussurrou, a meu lado, Osório Lima.
Eu tinha visto, já, aquele sujeito não sei em que estampa de uma História
do Brasil. Seria difícil, todavia, identificar essa estampa, depois de
transformada em carne, osso, colarinho, cabeleira, sobrecasaca e chapéu de
pêlo.
– Este é o grande Sousândrade... Dr. Joaquim de Sousândrade – tornou
Osório, compreendendo a ignorância revelada pelo meu silêncio.
Depois da explicação, fiquei como estava antes dela. Eu jamais, na
minha vida, ouvira, ou lera, aquele nome. Os poetas não tinham me interessado
nunca. Em matéria de poesia, eu conhecia apenas os versos que minha mãe me
fizera decorar em Miritiba, os de meu pai, os Oito Anos, de Casemiro de Abreu,
com que minha mãe me fazia chorar, cantando-os em surdina, abraçada comigo,
deitados na rede, quando eu contava precisamente a idade que o lírico
celebrava; as quadras populares de Juvenal Galeno, e as rimas patrióticas de
Dona Chiquinha Montenegro, professora municipal de Parnaíba. Poeta que não
fosse cantado ao violão não ficava em minha lembrança. Eu tinha notícias de
Gonçalves Dias pela estátua e pelas cousas que dele me contara Jovina Martins
Ribeiro, senhora de Caxias, que o conhecera rapazola, na cidade em que ambos
haviam nascido, e, mais vagamente, pelo “nosso céu tem mais estrelas”. Poesia
para mim era o Bem Sei que Tu Me Desprezas, Bem Sei que Tu Me Abandonas, e o
Perdão, Emília, para um Desgraçado. Daquele Sousândrade eu não tinha a menor
ideia de ter ouvido cantar qualquer modinha.
Ele era, entretanto, uma individualidade curiosa, a última
relíquia do velho Maranhão glorioso, e o remanescente vivo das altas figuras patrimoniais
da velha Atenas agonizante. Surgindo quando a grande geração se extinguia,
abandonou a pátria, e foi, no estrangeiro, afinar o espírito pelo rugido eólio
dos ventos novos. Fixou residência nos Estados Unidos; fez-se, aí, republicano;
e, fundando jornais de espírito brasileiro, repetiu, embora apagadamente, a
missão evangélica de Hipólito José da Costa, o Paulo de Tarso da Independência,
que pregava em Corinto o que devia ser ouvido em Jerusalém. Inteligência
investigadora e rebelde, imaginou, então, um poema de proporções vastas,
interessantes a todo o continente, do qual publicou um volume com os primeiros
nove cantos, e que se tornou famoso pela bizarria desconcertante da forma e das
ideias. Camilo Castelo Branco, que o considerava o “mais estremado, mais
fantasista e erudito poeta do Brasil” no seu tempo, achava que o seu poema
“pesa e enfara pela demasia dos adubos”. Sílvio Romero apontava-o como o único
poeta brasileiro que havia “tomado o faro do século”. Regressara, porém, para o
Maranhão, e lá vivia, por esse tempo, isolado em uma velha quinta à margem do
rio Anil. Cercada de grandes muros, essa propriedade tornara-se a gaiola enorme
de um velho pássaro que não cantava mais. Lá dentro, à sombra das grandes
árvores que rodeavam a casa e se debruçavam sobre o rio, o autor d’O Guesa e
das Harpas selvagens lia Homero e Virgílio, no original. De tempos a
tempos, vendia alguns metros de muro da chácara aos construtores, que
aproveitavam o material, de primeira ordem, em novas edificações urbanas. E
isso dava oportunidade ao velho poeta, que vivia dessas pequenas transações,
para uma fase de fina ironia:
– Como vai o senhor, senhor Doutor? Está passando bem? – perguntavam-lhe.
E ele, a voz macia, o sorriso inteligente:
– Comendo pedras, meu senhor; comendo pedras...
Sousândrade entrava na mercearia, inclinava a cabeça, sorridente,
num cumprimento a cada um, e, mesmo de pé, fazia a sua pequenina encomenda
delicada: uma lata de espargos, um pouco de queijo, sardinhas de Nantes, e
tâmaras ou ameixas. Sortimento para oito ou dez mil réis, que um empregado
levava à quinta, e que ele, semanas depois, vinha pagar, com as cédulas miúdas
e os níqueis rigorosamente contados. A sua freguesia não dava lucro. Mas enchia
de orgulho a casa.
Alberto Pinheiro era celebridade de outro gênero. redator-chefe do
Diário do Maranhão, folha cuja matéria principal era constituída pelos
atos do Governo e pelos anúncios das companhias de navegação, tornara-se famoso
na imprensa do Estado pelas tolices que escrevia. Era um velhote pequeno e
ágil, de cabeleira alvoroçada e grisalha, no alto da qual acomodava, como um
pequeno pássaro num grande ninho, um chapéu-coco, de extremidades estreitas e
reviradas. Usava invariavelmente um velho fraque presumivelmente preto,
antiquíssimo, que lhe deixava a metade do colete a descoberto, e cujas abas
curtas se empinavam atrás, compondo a mais grotesca das caricaturas. Mastigava
permanentemente um pedaço de charuto, que viajava da direita para a esquerda e
da esquerda para a direita, sob o bigode sarrento. Devia ser excelente pagador.
Pelo menos, havia ordem de “seu” Zé para dizermos que não havia mais nenhuma
das mercadorias que ele desejasse comprar. As que se achavam na amostra já
estavam vendidas.
As vitórias jornalísticas de Alberto Pinheiro ficaram
inesquecíveis no Estado. Certa vez, uma carroça esmagou, com uma das rodas, o
pé de um pretinho que brincava em frente ao mercado. Alberto Pinheiro deu a
notícia. Epôs o título: Pé de Moleque. Um dia, na pressa de encerrar o
expediente da folha, noticiou ele o falecimento de um comerciante que se achava
gravemente enfermo. O homem ainda estava com a alma neste mundo, e a família,
no dia seguinte, foi pedir uma retificação, contestando o óbito. O jornalista
corrigiu o engano, desdizendo-se a si mesmo. Dois dias depois, porém, o doente
morre mesmo. E Alberto Pinheiro fez-lhe o necrológio, que principiava assim:
“Até que, afinal, morreu o nosso distinto amigo, etc.” A coleção do jornal
sério em que ele escreveu é, hoje, o melhor patrimônio humorístico da imprensa
do Maranhão.
O Dr. Brandão era um freguês que não comprava nada. Assim, porém,
que ele chegava, e sentava-se fora do balcão sobre algum barril de vinho ou
sobre alguma caixa vazia, os empregados acorriam de todos os cantos do
estabelecimento para escutar-lhe as narrativas imaginosas. O seu tipo era, já,
uma anedota. Alto, uma barbicha à D. Quixote, a originalidade da sua
indumentária consistia em um fraque de brim pardo, calça da mesma fazenda, e
chapéu de palha de carnaúba. E, como complemento, um cachimbo que só lhe saía
da boca no momento patético da narração. Diplomado por uma das escolas
superiores da Bélgica, dizia-se amigo íntimo do rei Leopoldo, que o tratava como
irmão. Uma vez, achando-se em Paris, lembrou-se que, no dia seguinte, era o
aniversário do seu real companheiro de turma e de pândega.
– Nesse tempo – dizia – não eram conhecidos os trens diários, e o
que me poderia servir já havia partido. Tomei uma deliberação: aluguei um
cavalo e parti, a toda carreira. De repente, começou a chover. A velocidade da
corrida era, porém, tamanha, que a chuva apanhava apenas a anca do cavalo... De
repente, o animal começou a cansar. Na carreira em que ainda ia, estirei a mão
e apanhei um cipó que estava pendurado de uma árvore à margem do caminho. E chicoteei
com ele o cavalo com tanta vontade que, no dia seguinte, pela manhã, eu pulava
da sela em Bruxelas, na porta mesmo do palácio real. Como todos me sabiam
íntimo da família, fui entrando, e ao ver o Leopoldo, atirei para cima de uma
mesa o chapéu e o cipó e lançamo-nos nos braços um do outro. E está vamos ainda
abraçados, quando ouvimos um grito desesperado, partido da saleta próxima.
Corremos para lá, e que vimos? A Rainha, o terror estampado no rosto, correndo
de um lado para outro, tendo uma cobra verde enrolada no braço!...
E o Dr. Brandão concluía:
– Eu tinha viajado léguas e léguas, a chicotear o cavalo com uma
cobra viva, que havia agarrado pela cabeça, pendente de uma árvore, e que eu
supunha fosse um cipó!...
O narrador, êmulo do Barão de Munchhausen, trazia sempre, para
contar, dez ou quinze histórias como essa, que aprendia nos livros ou imaginava
na ocasião. Esgotado, porém, o repertório, ia ao interior da casa. E como a
passagem era por perto de um balcão interior em que ficavam as garrafas e os
cálices de bebidas fortes, não regressava sem, no caminho, limpar a boca e a
barbicha na manga do paletó...