sábado, 22 de outubro de 2011

Faz frio.





Rogel Samuel (foto do autor)



Faz frio, no Rio.  Muito estranho, quando faz frio, no Rio de Janeiro. Se me perguntam qual o pior problema da cidade, digo: é o calor. Não a violência. Com a violência você acaba acostumando-se. Aprende a andar na corda bamba, a desconfiar. Sabe por onde pode, e não pode andar. Mas fico imaginando se houver falta de luz, durante o verão. No meu mini-escritório, desde cedo ligo o ar-condicionado. O computador passa o dia todo ligado. Sem energia, fecho tudo, vou-me embora. Mudo-me para Poços de Caldas. Para Manaus, não. Manaus é uma das cidades mais quentes do mundo. Mas sinto-me bem, em Manaus. Minha saúde melhora. Tenho grandes amigos, lá. Manaus me lembra Luiz Ruas, o grande poeta. Autor de Aparição do clown. Ruas faleceu há poucos anos. Ninguém falou dele. Nem em Manaus, creio. Quase ninguém o conhece. Quase ninguém o lê. Seu livro permaneceu décadas desconhecido. Você, querido/a leitor/a, felizmente o pode ler no nosso Site. Vale a pena. Salve no seu micro, essa obra prima. Conte pra todo mundo que, no meio da Floresta Amazônica, viveu e escreveu um dos maiores poetas do século.

 O poema começa com uma "descoberta":

foi no tempo do luar pois não existe sol

no velho parque — tempo não maduro —

que encontrei o sempiterno clown.

queria ver-lhe a face. e sua face

era imenso lago azul parado

onde a lua se repetia. lua.

queria ver seu corpo — um chafariz

era seu corpo de barro modelado

aljofrando de estrelas e de pérolas

o céu e o chão banhados em azul.

apenas vi e velho clown beijando

uma boneca. e beijando-a chorava.

e ria ao mesmo tempo que

o destino dos palhaços é fundir

à luz da lua o alegre riso e o triste pranto.



E termina com uma "despedida":



e o velho clown partiu beijando ainda

o  brinquedo que a criança abandonara

no velho palco parque ou tempo sem memória.



         Começa e termina num "velho parque",  onde se encontra um "velho clown". Era no tempo do luar, quando ainda existia luar. A face do clown era uma máscara, ou melhor, era imenso lago azul parado. A lua refletida no lago o próprio lago. Onde a lua se refletia, "se repetia". Desde o início do livro há um palhaço, uma boneca, e uma tragédia, que não se revela facilmente. O livro é enigmático, povoado de labirintos de sentidos. O tema se dispersa em várias armadilhas. Dir-se-ia que o autor, Luiz Ruas, que na vida real era padre, tenta esconder suas emoções amorosas a cada passo, a cada frase. Olha-me, sou enigma, diz, a cada verso, aquele "palhaço", que ama uma boneca sem vida. Há mesmo uma presença sexualizada em cada metáfora, como se a máscara escondesse o desejo e seu objeto. É um dos livros mais profundos que já se escreveu, em língua portuguesa.

Nada mais vou dizer, sobre o livro. Além disso, ali está outra minha leitura, para quem quiser. Faz frio, no Rio. O céu está escuro e triste. E eu me lembro, não sei por que, de L. Ruas, do calor de Manaus, do sol aberto da Amazônia, das suas noite de luar. O poeta Luiz Ruas arrastou seu sofrimento para o túmulo,



sem ver o sol, apenas o luar

e a luz indecisa das estrelas

recriam esta mascara e fonte

do riso e da tristeza que oculta

o  meu rosto e corpo verdadeiros.

e assim caminharei eternamente

peregrino sempre sempre marinheiro

carregando meu fado torturante

- semente feto messe em promissão —

de ser ave sem poder voar

de ser clown isto é ser e não ser.

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