quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Antonio Carlos Villaça

Quando eu chegar ao Céu...


Antonio Carlos Villaça


Quando eu chegar ao Céu, de manhã, de tarde ou de noite, não sei ainda, pedirei para ir à biblioteca de Deus, onde curiosamente bisbilhotarei — com respeito — algumas obras. Quero reler a Invenção de Orfeu, de nosso Jorge de Lima, sofredor, telúrico e místico, homem bom, cirenaico, assim lhe chamou Rachel de Queiróz, quando ele morreu, novembro, 15, do ano de 1953.

E pedirei, sim, para conversar com Manu, Manuel Bandeira, que se chamava Neném. Matarei saudades do dentuço Manuel, que foi o melhor ser humano que conheci, neste mundo. E gostaria de conhecer Chiquita do Rio Negro, que recusou casar se com Ataulfo Nápoles de Paiva, conviva do baile da ilha Fiscal. Escrevi sobre Chiquita. Li a sua biografia, escrita por Garrigou-Lagrange.

Meu Deus, convocaria Jaime Ovalle, o tio Nhonhô, que morreu com a idade de Jorge de Lima. Ali, na biblioteca do Céu, conheceria o estupendo Ovalle, o do Azulão, o bêbedo místico, o amigo de Manuel, íntimo de Londres e de Nova York.

Por fim, suplicaria para falar com João Guimarães Rosa, poliglota, com quem tão poucas vezes falei. E evocaria a posse do seu sucessor, na Casa de Machado. Esqueci-me completamente dessa posse, ai de mim.

E fui. Lá estava eu, 1968. Um ano depois da morte de Rosa. Mário Palmério falou sobre ele, como seu herdeiro. E gostei tanto do discurso, equilibrado, lúcido, original. Se me lembro. Foi procurar cartas íntimas de Rosa para grande amigo, médico e fazendeiro em Minas, Moreira Barbosa. Cartas de outrora. Deliciosas, fraternais, confiantes, de pura entrega. Reveladoras do ser complexíssimo, fechado, carente, que gostava de disfarçar, despistar, ir e vir, comensal do mistério. Saudarei a uns e outros na largueza dadivosa do Céu, turbilhão de amor, como dizia o insaciável Léon Bloy.


Texto extraído do livro “Os saltimbancos da Porciúncula”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1996, pág. 73.

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