Carlos Heitor Cony confirma a popularidade de
Humberto de Campos:
"Eu considero o melhor cronista brasileiro o Humberto de Campos, que hoje está completamente esquecido; porque ficou faltando na obra do Campos um romance, uma obra não subordinada ao tempo. Quando o Humberto de Campos morreu, em 1934, eu era
criança, e o comércio do Rio de Janeiro fechou as portas. Era luto nacional que ninguém decretou. Isso porque todo mundo lia Humberto de Campos. Ele morreu cedo, com 48 anos, numa operação. Foi uma comoção. Ninguém chegou à popularidade de
Humberto de Campos. A melhor crônica dele chama-se “Um amigo de infância”. É a mais bonita da literatura brasileira".
( Roberta Scheibe - Entrevista concedida por Carlos Heitor Cony à autora em 2003, na Universidade de Passo Fundo, para a monografia intitulada “Crônica: o diálogo entre Literatura e Jornalismo”).
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No dia seguinte ao da mudança para a nossa pequena casa
dos Campos, em Parnaíba, em 1896, toda ela cheirando ainda a cal, a tinta e a
barro fresco, ofereceu-me a Natureza, ali, um amigo. Entrava eu no banheiro
tosco, próximo ao poço, quando os meus olhos descobriram no chão, no interstício
das pedras grosseiras que o calçavam, uma castanha de caju que acabava de
rebentar, inchada, no desejo vegetal de ser árvore. Dobrado sobre si mesmo, o
caule parecia mais um verme, um caramujo a carregar a sua casca, do que uma
planta em eclosão. A castanha guardava, ainda, as duas primeiras folhas unidas e
avermelhadas, as quais eram como duas jóias flexíveis que tentassem fugir do seu
cofre.
- Mamãe, olhe o que eu achei! - gritei, contente, sustendo na
concha das mãos curtas e ásperas o mostrengo que ainda sonhava com o sol e com a
vida.
- Planta, meu filho... Vai plantar... Planta no fundo do
quintal, longe da cerca...
Precipito-me, feliz, com a minha castanha viva. A trinta
ou quarenta metros da casa, estaco. Faço com as mãos uma pequena cova, enterro
aí o projeto de árvore, cerco-o de pedaços de tijolo e telha. Rego-o. Protejo-o
contra a fome dos pintos e a irreverência das galinhas. Todas as manhãs, ao
lavar o rosto, é sobre ele que tomba a água dessa ablução alegre. Acompanho com
afeto a multiplicação das suas folhas tenras. Vejo-as mudar de cor, na evolução
natural da clorofila. E cada uma, estirada e limpa, é como uma língua verde e
móbil, a agradecer-me o cuidado que lhe dispenso, o carinho que lhe voto, a água
gostosa que lhe dou.
O meu cajueiro sobe, desenvolve-se, prospera. Eu cresço,
mas ele cresce mais rapidamente do que eu. Passado um ano, estamos do mesmo
tamanho. Perfilamo-nos um junto do outro, para ver qual é mais alto. É uma
árvore adolescente, elegante, graciosa. Quando eu completo doze anos, ele já me
sustenta nos seus primeiros galhos. Mais uns meses e vou subindo, experimentando
a sua resistência. Ele se balança comigo como um gigante jovem que embalasse nos
braços o seu irmãos de leite. Até que, um dia, seguro da sua rijeza hercúlea,
não o deixo mais. Promovo-o a mastro do meu navio e, todas as tardes, lhe subo
ao galho mais empinado, onde, com o braço esquerdo cingindo o caule forte, de
pé, solto, alto e sonoro, o canto melancólico da "Chegança", que é, por esse
tempo, a festa popular mais famosa de Parnaíba:
Assobe, assobe, gajeiro,
Mão direita aberta sobre os olhos, como quem devassa o
horizonte equóreo, mas devassando, na verdade, apenas os quintas vizinhos, as
vacas do curral de Dona Páscoa e os jumentos do sr. Antônio Santeiro, eu próprio
respondo, com minha voz gritada, que a ventania arrasta para longe, rasgando-a,
como uma camisa de som, nas palmas dos coqueiros e nas estacas das cercas
velhas, enfeitadas de melão-são-caetano:
Alvíssaras meu capitão,
A memória fresca, e límpida, reproduz, uma a uma,
fielmente, todas as passagens épicas, todas as canções melancólicas e singelas
da velha lenda marítima com que o majestoso mulato Benedito Guariba, uma vez por
ano, à frente dos seus caboclos improvisados em marujos portugueses, alvoroça as
ruas arenosas de Parnaíba. O vento forte, vindo das bandas da Amarração, dá-me a
impressão de brisa do oceano largo. O meu camisão branco, de menino da roça,
paneja, estalando, como uma bandeira solta. O cajueiro novo, oscilando comigo,
dá-me a sensação de um mastro erguido rolando diante de mim, na curva do
horizonte, onde o céu e o mar se beijam e misturam, as terras claras de Espanha,
e areias de Portugal.
Pouco a pouco, a noite vem descendo. Um véu de cinza
envolve docemente os coqueiros dos quintais próximos. Os bezerros de Dona Páscoa
berram com mais tristeza. As vacas, apartadas deles, respondem com mais saudade.
Os jumentos do sr. Antônio Santeiro zurram as cinco vogais e o estribilho
"ípsilon", marcando sonoramente as seis horas. Os do sr. Antonio do Monte, ao
longe, conferem e confirmam o zurro, o focinho para o alto, olhando o milho de
ouro das primeiras estrelas. E eu, gajeiro de uma nau ancorada na terra, desço
tristemente do folhudo mastro do meu cajueiro, sonhando com o oceano alto,
invejando a vida tormentosa dos marinheiros perdidos, que não tinham, pelo
menos, a obrigação de estudar, à luz de um lampião de querosene, a lição do dia
seguinte...
Aos treze anos da minha idade, e três da sua,
separamo-nos, o meu cajueiro e eu. Embarco para o Maranhão, e ele fica. Na hora,
porém, de deixar a casa, vou levar-lhe o meu adeus. Abraçando-me ao seu tronco,
aperto-o de encontro ao meu peito. A resina transparente e cheirosa corre-lhe do
caule ferido. Na ponta dos ramos mais altos abotoam os primeiros cachos de
flores miúdas e arroxeadas como pequeninas unhas de crianças com frio.
- Adeus, meu cajueiro! Até à volta!Ele não diz nada, e eu me vou embora.
Da esquina da rua, olho ainda, por cima da cerca, a sua
folha mais alta, pequenino lenço verde agitado em despedida. E estou em S. Luís,
homem-menino, lutando pela vida, erijando o corpo no trabalho bruto e
fortalecendo a alma no sofrimento, quando recebo uma comprida lata de folha
acompanhando uma carta de minha mãe: "Receberás com esta uma pequena lata de
doce de caju, em calda. São os primeiros cajus do teu cajueiro. São deliciosos,
e ele te manda lembranças..."
Há, se bem me lembro, uns versos de Kipling, em que o
Oceano, o Vento e a Floresta palestram e blasfemam. E o mais desgraçado dos três
é a Floresta, porque, enquanto as ondas e as rajadas percorrem terras e costas,
ela, agrilhoada ao solo com as raízes das árvores, braceja, grita, esgrime com
os galhos furiosos, e não pode fugir, nem viajar... Recebendo a carta de minha
mãe, choro, sozinho. Choro, pela delicadeza da sua idéia. E choro, sobretudo,
com inveja do meu cajueiro. Por que não tivera eu, também, raízes como ele, para
me não afastar nunca, jamais, da terra em que eu, ignorando que o era, havia
sido feliz?
Volto, porém. O meu cajueiro estende, agora, os braços,
na ânsia cristã de dar sombra a tudo. A resina corre-lhe do tronco, mas ele se
embala, contente, à música dos mesmos ventos amigos. Os seus galhos mais baixos
formam cadeiras que oferece às crianças. Tem flores para os insetos faiscantes e
frutos de ouro pálido para as pipiras cinzentas. É um cajueiro moço, e robusto.
Está em toda a força e em toda a glória ingênua da sua existência vegetal.
Um ano mais, e parto novamente. Outra despedida; outro
adeus mais surdo, e mais triste:
-Adeus, meu cajueiro!
O mundo toma-me nos seus braços titânicos, arrepiados de
espinhos. Diverte-se comigo como a filha do rei de Brobdingnag com a fragilidade
do capitão Guliver. O monstro maltrata-me, fere-me, tortura-me. E eu, quase
morto, regresso a Parnaíba, volto a ver minha casa, e a rever o meu amigo.
- Meu cajueiro, aqui estou!
Mas ele não me conhece mais. Eu estou homem; ele está
velho. A enfermidade cava-me o rosto, altera-me a fisionomia, modifica-me o tom
da voz. Ele está imenso e escuro. Os seus galhos abraçam coqueiros, afogam
laranjeiras que noivam, ou ultrapassam a cerca e vão dar sombra, na rua, às
cabras cansadas, aos mendigos sem pouso, às galinhas sem dono... Quero
abraçá-lo, e já não posso. Em torno ao seu tronco fizeram um cercado estreito.
No cercado imundo, mergulhado na lama, ressona um porco... Ao perfume suave da
flor, ao cheiro agreste do fruto, sucederam, em baixo, a vasa e a podridão!
- Adeus, meu cajueiro! |
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