FLORBELA ESPANCA
Rogel Samuel
Para Florbela Espanca a dor é, e estranhamente, um
convento. No seu famoso soneto «A minha dor», escreveu ela: « A minha Dor é um
convento»:
A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.
Os sinos têm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias...
Ao gemer, comovidos, o seu mal...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias...
A
minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!
Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...
Florbela era mulher bonita, extraordinária poetisa. Chamava-se
Flor Bela de Alma da Conceição. Seu sucesso é posterior e recente. Otto Maria
Carpeaux não a reconhece, na sua gigantesca História da Literatura Ocidental. A
arte de Florbela é antiquada, seu «Livro das Mágoas», publicado em 1919, é livro
não modernista, numa época em que apareceu a Bauhaus, em Weimar, fundada por W.
Gropius, em que aparece Miró, com seu
«Nu com espelho». Florbela continua cultuando o velho soneto, à moda
parnasiana. Hernâni Cidade referirá "a violenta contradição entre o
conceito de poesia de duas épocas distantes ou próximas". Mas é,
possivelmente, António Ferro que, num artigo do Diário de Noticias, logo em
Janeiro de 1931, chama a atenção para a poesia de Florbela.
O primeiro verso canta:« A minha Dor é um convento
ideal».
Como interpretar esse verso, esse convento? Talvez
pela solidão, o abandono... mas isso é uma deformação do sentido ideal de
convento. As freiras lá não estão senão porque comungam e comungam com Deus,
com Cristo. Um convento doloroso é uma contradição de termos, idéia de que
alguém lá tivesse sido colocado à força, algo como uma prisão solitária, vazia
e sinistra. Principalmente “ideal”. De forma que esse verso, « A minha Dor é um
convento ideal» determina as significações do inteiro soneto. E mais:
« Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.»
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.»
- mantém um segredo, ou melhor, uma «bela»
contradição, pois que, se ali há claustros, sombras, a pedra em convulsões
sombrias, há também «requinte», ou seja, apuro, refinamento, elegância, esmero,
elevação, perfeição, volutas simétricas, arcos belos de pedras convulsionadas,
Florbela transpôs, contagiou o seu secreto claustro com toda a sua sensualidade
feminina, com o seu erotismo amante, esses arcos nada místicos ou de um
misticismo tântrico, amoroso, sexualizado, corporal, poderosamente inscrito nas
paredes, reescrito nas curvas, nas ancas, nas pernas daquela construção ideal e
reservada à sua agonia amorosa, onde « os sinos têm dobres de agonias Ao gemer,
comovidos, o seu mal...», o seu pecado, o seu som de funeral. Há lírios, mas belos, há:
«Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!»
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!»
Florbela contradiz o seu misticismo feminino, a beleza
mística, na solidão final de seus versos:
« Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...»
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...»
- onde se ouvem os sinos tocarem, nesses «em» três
vezes repetidos.
Filha ilegítima, nascida em 8 de dezembro de 1894,
Florbela se mata em 1930. Não foi pobre, teve 3 maridos e 2 divórcios, algo
incomum, na época. Estudou Direito, em Lisboa. Culta. Editou seus próprios
livros: «Livro de mágoas» em 1919, e «Livro de Soror Saudade», em 23. Não era
conservadora, como disse. Mas avançada para seu tempo. E feminista. Era.
Matou-se. Sua morte ela o anunciou em carta. Não conheceu o seu grande sucesso
posterior.
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