O TEU SILÊNCIO É
SUBSTÂNCIA ACESA,
OU VENI CREATOR
SPIRITUS
Rogel Samuel
Brindou-me um bom
amigo com o livro de Edison Moreira, «Tempo de poesia» (Garnier, 1999), cujo
primeiro soneto assim se fez:
Estás presente. Vieste
com certeza
das origens do tempo
ou da paisagem.
Tens nos cabelos roxos
a beleza
de teu país de reis
sem vassalagem.
o teu silêncio é a
substância acesa
das coisas indizíveis,
a mensagem
de um território
oculto na tristeza,
ânsia de morte que se
fez linguagem.
Mensageira de símbolos
perdidos,
acendes o mistério.
Outros sentidos
descobres sob o véu do
esquecimento.
Deusa fecunda de
estrelado manto
Aurora, céu noturno,
fundo espanto
nesse infinito
redescobrimento.
É um soneto sobre
aquela Arte Poética, digo, sobre a Aurora, publicado em seu primeiro livro,
«Cais da eternidade» (aparecido em 51, poemas de 1945-51). Não se pode dizer
que os poemas se inscrevam no rigoroso estilo da geração de 45: Abgard Renault,
Emilio Moura, Afonso Ávila, Darci Damasceno, Alfonsus de Guimaraens Filho,
Cabral, Bueno de Rivera, Ledo Ivo etc, cuja estética, clássica, camoniana,
exigia nitidez, construtivismo, equilíbrio, forma, disciplina, rigor,
universalismo neoparnasiano, artesanal, regras e disciplinas pautadas na ordem
e no equilíbrio. Edison Moreira, porém, apresenta um caminho próprio, ainda
que, no soneto acima, lembre aquela geração.
*
* *
O primeiro verso soa:
«Estás presente».
O que significa focar
em algo que ali está, na presença do tempo?
«Estás presente» significa «estar» e «ser», ser no tempo, e no lugar
estar e em determinado tempo: o tempo presente. «Estás presente» profere do
ser-aí, nos limites do espaço atual da física presença, tempo que é o presente
tempo. «Estás presente» presentifica o ser, lança-o no jogo do real da
realidade, faz no meio do que se disse quando «Faça-se a luz, e a luz foi
feita», lá não se tem o tempo presente, mas só anterior «faça-se» e o posterior
«foi feita». Em «Estás presente» não é assim, coloca-se a Aurora pois na minha
frente espelhar, e lá se sente, e ali se vê, por pouco se toca e cheira na
materialidade do «Estás presente», no espaço de uma cronometria daquilo que se
joga adiante. O poema mede a concentração do tempo presente, da hora, ou
daquele instante do que lá está, fotografado,
capturado, na passagem rápida. Pois, quando se diz «Estás presente»,
algo se sente por todos os lados. O olho está lá dentro dela, da Aurora. Ou
seja, da Arte Poética, conforme vai-se ver.
*
* *
Assim o poema começa
pelo princípio,ou seja, pela Aurora. Não só o poema, mas as páginas do livro, a
sua leitura, a obra poética.
No princípio, afirma
para sua arte: «Estás presente», não como quem convoca o «apareça», e «venha»,
não em invocação, convite, chamado da luz do espírito criador, como num:
Veni creator spiritus
mentes tuorum visita
imple superna gratia
quae Tu creasti
pectora
Não. Mas com um «já
estás aqui presente», o que abre a cena da escrita. Em suma, a poesia já está
pronta, não necessita ser convocada.
*
* *
O seguinte: « Vieste com
certeza / das origens do tempo ou da paisagem», coloca novo problema, e
extremo, de significação poética. Primeiro, porque há aquela ambigüidade,
própria do jogo da língua portuguesa, da expressão «com certeza», que significa
«provavelmente», «talvez» - uma certeza cheia de dúvida. Segundo porque,
filosófica, esteticamente o tempo e o espaço (a paisagem) não tem princípio,
nem origem: Se a Aurora veio do tempo sem princípio e do espaço sem limites,
veio ela do Infinito, ou seja, não se trata da mera aurora, alvorada,
madrugada, mas do Princípio Ideal de todas as coisas, do aurorar da vida da
sempiterna existência (se se pudesse assim dizer), em aurifulgência daquele:
Veni creator spiritus
mentes tuorum visita
imple superna gratia
quae Tu creasti
pectora
da liturgia do
espírito santo, onde o supremo rumor da criação de tudo.
*
* *
Depois diz:
Tens nos cabelos roxos
a beleza
de teu país de reis
sem vassalagem.
o teu silêncio é a
substância acesa
das coisas indizíveis,
a mensagem
de um território
oculto na tristeza,
ânsia de morte que se
fez linguagem.
O roxo, cor da magia
ritualística, o púrpura significa poder, ambição, tensão, negócios, mas também
era a simbologia do infante D. Henrique, e aí representava mortificação e
tristeza, para aquele que preferiu seguir os mais fortes em Alfarrobeira contra
o seu irmão mais velho, depois de contribuir igualmente para a morte do seu
irmão mais novo. Um cavaleiro roxo significava fornecer-nos uma triste medida
da inércia de todas as idéias estabelecidas: parece mais fácil fazer e aceitar
a existência da intenção de coincidências que apontam para o milagre, do que em
desígnios que apontam para o sentido da solução lógica que o contraria. O roxo
significa mortificação, o simbolismo das cores litúrgicas se concilia muito bem
na sua distribuição no texto como o roxo do provisório, do perdido, dos
símbolos perdidos, do mistério da morte, ou mistério mortal, do véu do
esquecimento, do vazio do redescobrimento, do noturno, do manto dessa deusa de
fecundante estrelado manto que é a manhã, do espanto da manhã. Essa Aurora é a
Inspiração, ela é o espírito criador de tudo, a capacidade, a fecundidade que
faz falar a poesia, que faz redescobrir a poesia debaixo do que está esquecido,
a saber, a nossa própria linguagem, fundo espanto de misteriosos símbolos
cheios de «outros sentidos». Este soneto é a completa Arte Poética de Edison
Moreira, o grande poeta mineiro. Assim:
Mensageira de símbolos
perdidos,
acendes o mistério.
Outros sentidos
descobres sob o véu do
esquecimento.
Deusa fecunda de
estrelado manto
Aurora, céu noturno,
fundo espanto
nesse infinito
redescobrimento.
Edison Moreira nasceu
em Minas, em 1919, e faleceu em 1989. Sua obra ainda está para ser estudada.
Poeta erudito, sofisticado, famoso por sua estética medievalista.