sábado, 23 de fevereiro de 2013

O TEU SILÊNCIO É SUBSTÂNCIA ACESA,


O TEU SILÊNCIO É SUBSTÂNCIA ACESA,

OU VENI CREATOR SPIRITUS

 

Rogel Samuel

 

 

Brindou-me um bom amigo com o livro de Edison Moreira, «Tempo de poesia» (Garnier, 1999), cujo primeiro soneto assim se fez:

 

Estás presente. Vieste com certeza

das origens do tempo ou da paisagem.

Tens nos cabelos roxos a beleza

de teu país de reis sem vassalagem.

o teu silêncio é a substância acesa

das coisas indizíveis, a mensagem

de um território oculto na tristeza,

ânsia de morte que se fez linguagem.

Mensageira de símbolos perdidos,

acendes o mistério. Outros sentidos

descobres sob o véu do esquecimento.

Deusa fecunda de estrelado manto

Aurora, céu noturno, fundo espanto

nesse infinito redescobrimento.

 

É um soneto sobre aquela Arte Poética, digo, sobre a Aurora, publicado em seu primeiro livro, «Cais da eternidade» (aparecido em 51, poemas de 1945-51). Não se pode dizer que os poemas se inscrevam no rigoroso estilo da geração de 45: Abgard Renault, Emilio Moura, Afonso Ávila, Darci Damasceno, Alfonsus de Guimaraens Filho, Cabral, Bueno de Rivera, Ledo Ivo etc, cuja estética, clássica, camoniana, exigia nitidez, construtivismo, equilíbrio, forma, disciplina, rigor, universalismo neoparnasiano, artesanal, regras e disciplinas pautadas na ordem e no equilíbrio. Edison Moreira, porém, apresenta um caminho próprio, ainda que, no soneto acima, lembre aquela geração.   

                                              

*    *    *

 

O primeiro verso soa: «Estás presente».

O que significa focar em algo que ali está, na presença do tempo?  «Estás presente» significa «estar» e «ser», ser no tempo, e no lugar estar e em determinado tempo: o tempo presente. «Estás presente» profere do ser-aí, nos limites do espaço atual da física presença, tempo que é o presente tempo. «Estás presente» presentifica o ser, lança-o no jogo do real da realidade, faz no meio do que se disse quando «Faça-se a luz, e a luz foi feita», lá não se tem o tempo presente, mas só anterior «faça-se» e o posterior «foi feita». Em «Estás presente» não é assim, coloca-se a Aurora pois na minha frente espelhar, e lá se sente, e ali se vê, por pouco se toca e cheira na materialidade do «Estás presente», no espaço de uma cronometria daquilo que se joga adiante. O poema mede a concentração do tempo presente, da hora, ou daquele instante do que lá está, fotografado,  capturado, na passagem rápida. Pois, quando se diz «Estás presente», algo se sente por todos os lados. O olho está lá dentro dela, da Aurora. Ou seja, da Arte Poética, conforme vai-se ver.

 

*    *    *

 

Assim o poema começa pelo princípio,ou seja, pela Aurora. Não só o poema, mas as páginas do livro, a sua leitura, a obra poética.

No princípio, afirma para sua arte: «Estás presente», não como quem convoca o «apareça», e «venha», não em invocação, convite, chamado da luz do espírito criador, como num:

 

Veni creator spiritus

mentes tuorum visita

imple superna gratia

quae Tu creasti pectora

 

Não. Mas com um «já estás aqui presente», o que abre a cena da escrita. Em suma, a poesia já está pronta, não necessita ser convocada.

 

*   *   *

 

O seguinte: « Vieste com certeza / das origens do tempo ou da paisagem», coloca novo problema, e extremo, de significação poética. Primeiro, porque há aquela ambigüidade, própria do jogo da língua portuguesa, da expressão «com certeza», que significa «provavelmente», «talvez» - uma certeza cheia de dúvida. Segundo porque, filosófica, esteticamente o tempo e o espaço (a paisagem) não tem princípio, nem origem: Se a Aurora veio do tempo sem princípio e do espaço sem limites, veio ela do Infinito, ou seja, não se trata da mera aurora, alvorada, madrugada, mas do Princípio Ideal de todas as coisas, do aurorar da vida da sempiterna existência (se se pudesse assim dizer), em aurifulgência daquele:

 

Veni creator spiritus

mentes tuorum visita

imple superna gratia

quae Tu creasti pectora

 

da liturgia do espírito santo, onde o supremo rumor da criação de tudo.

 

*    *    *

 

Depois diz:

 

Tens nos cabelos roxos a beleza

de teu país de reis sem vassalagem.

o teu silêncio é a substância acesa

das coisas indizíveis, a mensagem

de um território oculto na tristeza,

ânsia de morte que se fez linguagem.

 

O roxo, cor da magia ritualística, o púrpura significa poder, ambição, tensão, negócios, mas também era a simbologia do infante D. Henrique, e aí representava mortificação e tristeza, para aquele que preferiu seguir os mais fortes em Alfarrobeira contra o seu irmão mais velho, depois de contribuir igualmente para a morte do seu irmão mais novo. Um cavaleiro roxo significava fornecer-nos uma triste medida da inércia de todas as idéias estabelecidas: parece mais fácil fazer e aceitar a existência da intenção de coincidências que apontam para o milagre, do que em desígnios que apontam para o sentido da solução lógica que o contraria. O roxo significa mortificação, o simbolismo das cores litúrgicas se concilia muito bem na sua distribuição no texto como o roxo do provisório, do perdido, dos símbolos perdidos, do mistério da morte, ou mistério mortal, do véu do esquecimento, do vazio do redescobrimento, do noturno, do manto dessa deusa de fecundante estrelado manto que é a manhã, do espanto da manhã. Essa Aurora é a Inspiração, ela é o espírito criador de tudo, a capacidade, a fecundidade que faz falar a poesia, que faz redescobrir a poesia debaixo do que está esquecido, a saber, a nossa própria linguagem, fundo espanto de misteriosos símbolos cheios de «outros sentidos». Este soneto é a completa Arte Poética de Edison Moreira, o grande poeta mineiro. Assim:

 

Mensageira de símbolos perdidos,

acendes o mistério. Outros sentidos

descobres sob o véu do esquecimento.

Deusa fecunda de estrelado manto

Aurora, céu noturno, fundo espanto

nesse infinito redescobrimento.

 

Edison Moreira nasceu em Minas, em 1919, e faleceu em 1989. Sua obra ainda está para ser estudada. Poeta erudito, sofisticado, famoso por sua estética medievalista.

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