O IGARAPÉ DO INFERNO, 1
O IGARAPÉ DO INFERNO,
1
– Vou contar. O quê? Você quer que
eu continue? Não, não, meu menino, dos líquidos do corpo, o pus, a gosma, a
saliva, o muco, as palavras ingratas: a linfa a fonte o plasma aquoso,
amarelo-transparente, entende o que digo?, enzimas, digo, ceras, seivas
pegajosas, urina e cerveja, você não sabe o que isso, de ontem, de outra época,
das terras voadoras das palavras verazes, elásticas, humores, borracha, pau de
leite, sim, tudo que esmaga e esguicha, mas o pior é o sangue, o sangue, mas
sim, você me interrompeu com perguntas, e estou pegando o rumo, e você?, e você?
Eu passei a vida toda de palavras de nada
Era assim que falava Maneco Bastos,
Manuel Bastos Filho, para aquele rapaz. Ele tinha o mesmo nome do falecido pai,
Manuel Bastos, dono do Bar Bacurau, na João
Coelho.
A noite
prosseguia.
Estavam na Lapa, no Rio de Janeiro.
Somente poucos fregueses ali, bêbados, cansados. Clima de decadência,
pobreza.
– Pois sim sim, disse ele. Meteu a
unha na fenda do parafuso, forçou, dali saiu um líquido gomoso e muito vermelho
escuro, mas o parafuso não cedeu, nem se moveu, e ele quase não sentia a dor, a
cabeça do parafuso fendida rasgou o dedo, pingando suor em cima, cabeça de falo
e fendida, emperrado impedia a focalização do
binóculo.
Aquilo era luneta de 1845, merda,
por quê?, o quê? agora o olho burro vê, focaliza, e tudo vê, bem nítido e
bonito, mas a imagem da orla da Praia do Cuco, a língua branca, de açúcar, que
avançava até as águas do Igarapé do Inferno.
“Tudo bem?”, perguntou ele assim.
“Aquilo se move?” Agora aquilo se move?, foi o que ele perguntou e disse, ou o
que disseram que ele disse.
Do convés do “Barão do Juruá” ele
observava a orla da Praia do Cuco, a copa das arvores verdes, lindo lindo. Sim,
um susto, um gesto. Que é? Não é? Continuava a se mover, tinha visto, continuava
ainda vendo? Via. Com nitidez, dentro do círculo de luz do fim do foco. Do fim
fundo escuro do foco. Mas nada não disse do que tinha visto e estava vendo.
Nunca disse. Zequinha ficou e ninguém viu quando ele desceu do navio para a
floresta, e em minutos desaparecia ali.
Oh, oh! – disse ele. O
desaparecimento de Zequinha Batelão foi um desastre! Um desastre escandaloso.
Ele era dos homens mais ricos e bonitos do Amazonas, do Alto Juruá, na época.
Sabe? Sabe? Um segredo: Todas as jóias da família ainda estão lá, até hoje
escondidas, num cofre debaixo de uma grande pedra da Praia do Cuco. Inclusive a
tiara de esmeraldas e brilhantes que pertenceu à Rainha Vitória. Mas só eu sei
onde está.
O fim de Zequinha foi lá a coisa
mais misteriosa, perturbou a imaginação do povo amazônico. Hipóteses absurdas,
cabeludas leseiras, injustificadas. Tolices, surpresas de todo tipo do fio fino
do destino. O quê? O destino é isso, seu merda. Nós morremos e é só, morremos um
pouco a cada agonia. O destino é o pré-dito, os ditos, os feitos, a trama
universal. Não, não é acidental. Só quando feito não era o pretendido. Nós
agarramos o destino com as mãos de sangue, com as mãos cegas, com as mãos da
sobrevivência, com as mãos que sangram. O acidental não tem deliberação. Cega
necessidade física. Luta de vida e de morte, contra a causalidade da sorte.
Violência não – causa. Quando vejo minha vida, inteira, uma serie de anos e
danos escrotos, estéreis, inúteis, impunes, sinto os acontecimentos mas sem as
conexões, pois eu não sei ser: ser é esperar, ser é
morrer.
Mas com você me perco. Vamos, vamos
continuar.
Zequinha desapareceu em 1912. Tinha
22 anos. Já vendido o Seringal Manixi a um homem chamado Ferreira, Dr. Antonio
Ferreira, de Manaus.
Zequinha tinha chegado da Europa,
Paris era um luxo, eu estive em Paris, morei em Paris, na Rua Fondary, 30, no
Hotel Fondary. Era perto da Torre. Zequinha liquidou tudo, menos o “Palácio
Manixi”, o "art-nouveau" palácio, como esta minha pessoa diz que aqui falo.
Adiou o regresso, meses e meses, e não tinha pressa, esperava
acontecimentos.
Zequinha era um rapaz estranho. Mas
o descompasso, o contraditório, ah isso era, delicado selvagem culto. Os cabelos
lisos e pretos como a mãe índia, quíchua. Ele era uma mistura de índia com uma
princesa espanhola. Família Cellis. Olhinhos também pretinhos, muito vivinhos e
pretos. Lábios sensuais. Príncipe! Príncipe amazônico, selvagem, sofisticado,
adamado, maneiro. Pois a que beleza se reduz a só. Você é belo? O belo é o que
aparece belo, para mim só. Ser é parecer. Eu fui, na juventude. Eu era um luxo.
Nessa idade? O quê? Quantos anos tenho? Ah, ah, não digo não, no esconso. Tenho
o tenho, no que dá. Você quantos tem? Pois, meu caro, meu caríssimo. Nenhuma,
você está bêbado, você quer agradar porque eu pago. Faz bem. Continue assim. Mas
era assim. Um instinto social, no que de uma propriedade das coisas, um fato em
si, mas de um valor lógico, do desejo, da utilidade, do prazer, da vida, valores
cognitivos. O Belo é apenas uma frase. Um atributo. Mas eu esqueço que você só
tem uns poucos anos. Eu vi, vivi, estou à morte. Estou à morte. Ah, ah, ah. Sim
sim. A mor-te! Ah, ah, – ria-se ele.
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