A NONA
Rogel Samuel
A Nona é um delírio.
Não exagero, basta assistir “Laranja mecânica”. Não o livro
de Antony Burgess, mas o filme horrorshow de Stanley Kubrick de 1971.
Beethoven entra num universo delirante, do qual só saiu para
a morte. É claro que algumas interpretações transformam-na num ritual pesado,
sério, casmurro. Algumas. Mas o que ali acontece é que a repetição de temas
cavalgantes vão levando a música para uma região espiritual ensandecida, no que
a loucura tem de sublimidade e realização. O compositor, ali, está
completamente louco, louco da arte, louco como devem ser os deuses. Levou a
sonoridade aos extremos de seus limites infindos. É a glória do romantismo.
Sempre que
a ouço como agora me pergunto: “é esta uma sinfonia, ou uma espécie de cantata
sinfônica?” Porque ela parece começar num hermetismo transcendente nunca
antes conseguida, nem nunca depois
superada. Quase dois séculos se passaram, e ela ainda parece insuperável e
moderna.
Fazia anos
que ele quase nada mais compusera. Parecia ter mergulhado no silêncio mortal. A
sua música parecia morta. Cada vez mais solitário, intratável, introvertido em
espécie de vida interior. O mestre calara-se, alguns dizem por treze longos
anos. Ele tinha inclusive caído numa espécie de ostracismo. Naquela época quem
vibrava com a glória era Rossini.
Naquela época, encapsulou-se cada
mais no seu orgulho solipsista. Orgulho que o fez romper com Goethe.
Escreveu ele:
"Os reis e os príncipes bem podem fazer professôres e conselheiros
privados e os podem cumular de títulos e condecorações; mas não podem, nem
poderão jamais fazer os grandes homens, os espíritos que se elevam acima dos
excrementos do mundo. . . e quando dois homens estão juntos, tais como Goethe e
eu, êsses senhores têm que sentir e reconhecer a soberania nossa.
"Ontem encontramos em nosso caminho tôda a família imperial; nós
os avistamos de longe; Goethe desprendeu-se do meu braço para ir postar-se
reverente à margem da estrada. Não tive dúvida alguma em dizer-lhe tudo o que
queria e sentia, e não pude mais acompanhá-lo um passo.
"Enterrei então o meu chapéu na cabeça, abotoei a minha redingote
e, com as mãos cruzadas nas costas, o passo firme dos homens livres,
desapareci, confundindo-me no meio da multidão anônima que estava próxima.
"Príncipes
e cortesãos, em Viena, formaram-me alas. O Arquiduque Rodolfo sempre se
descobriu diante de mim e a própria Imperatriz se antecipava sempre para
cumprimentar-me.
"Com
acabrunhamento assisti à procissão desfilar diante de Goethe; tendo-se mantido
êle ainda por muito tempo à margem da estrada, profunda e respeitosamente
curvado com o chapéu pendente da mão”. (apud Rodolpho Josetti, “Beethoven e
suas nove sinfonias”, Rio de Janeiro, Agir, 1945).
Diz mais
Josetti:
“Goethe jamais esqueceu e nunca lhe
perdoou esta lição de altivez, independência e sobranceria, e quando se referia
a Beethoven não ocultava a sua malquerença a êsse "homem indomável que
considera o mundo tão detestável", acrescentando "que não seriam os
modos de Beethoven que o tornariam mais agradável e simpático para com os
outros" e concluindo benevolente "cumpre porém excusá-lo porque é um
surdo, um surdo de gênio".
Nenhum comentário:
Postar um comentário