sábado, 16 de fevereiro de 2013

A NONA

A NONA

 
Rogel Samuel
 
 
A Nona é um delírio.
Não exagero, basta assistir “Laranja mecânica”. Não o livro de Antony Burgess, mas o filme horrorshow de Stanley Kubrick de 1971. 
Beethoven entra num universo delirante, do qual só saiu para a morte. É claro que algumas interpretações transformam-na num ritual pesado, sério, casmurro. Algumas. Mas o que ali acontece é que a repetição de temas cavalgantes vão levando a música para uma região espiritual ensandecida, no que a loucura tem de sublimidade e realização. O compositor, ali, está completamente louco, louco da arte, louco como devem ser os deuses. Levou a sonoridade aos extremos de seus limites infindos. É a glória do romantismo.
            Sempre que a ouço como agora me pergunto: “é esta uma sinfonia, ou uma espécie de cantata sinfônica?” Porque ela parece começar num hermetismo transcendente nunca antes  conseguida, nem nunca depois superada. Quase dois séculos se passaram, e ela ainda parece insuperável e moderna.
            Fazia anos que ele quase nada mais compusera. Parecia ter mergulhado no silêncio mortal. A sua música parecia morta. Cada vez mais solitário, intratável, introvertido em espécie de vida interior. O mestre calara-se, alguns dizem por treze longos anos. Ele tinha inclusive caído numa espécie de ostracismo. Naquela época quem vibrava com a glória era Rossini.
            Naquela época, encapsulou-se cada mais no seu orgulho solipsista. Orgulho que o fez romper com Goethe.
Escreveu ele:
"Os reis e os príncipes bem podem fazer professôres e conselheiros privados e os podem cumular de títulos e condecorações; mas não podem, nem poderão jamais fazer os grandes homens, os espíritos que se elevam acima dos excrementos do mundo. . . e quando dois homens estão juntos, tais como Goethe e eu, êsses senhores têm que sentir e reconhecer a soberania nossa.
"Ontem encontramos em nosso caminho tôda a família imperial; nós os avistamos de longe; Goethe desprendeu-se do meu braço para ir postar-se reverente à margem da estrada. Não tive dúvida alguma em dizer-lhe tudo o que queria e sentia, e não pude mais acompanhá-lo um passo.
"Enterrei então o meu chapéu na cabeça, abotoei a minha redingote e, com as mãos cruzadas nas costas, o passo firme dos homens livres, desapareci, confundindo-me no meio da multidão anônima que estava próxima.
"Príncipes e cortesãos, em Viena, formaram-me alas. O Arquiduque Rodolfo sempre se descobriu diante de mim e a própria Imperatriz se antecipava sempre para cumprimentar-me.
"Com acabrunhamento assisti à procissão desfilar diante de Goethe; tendo-se mantido êle ainda por muito tempo à margem da estrada, profunda e respeitosamente curvado com o chapéu pendente da mão”. (apud Rodolpho Josetti, “Beethoven e suas nove sinfonias”, Rio de Janeiro, Agir, 1945).
Diz mais Josetti:
“Goethe jamais esqueceu e nunca lhe perdoou esta lição de altivez, independência e sobranceria, e quando se referia a Beethoven não ocultava a sua malquerença a êsse "homem indomável que considera o mundo tão detestável", acrescentando "que não seriam os modos de Beethoven que o tornariam mais agradável e simpático para com os outros" e concluindo benevolente "cumpre porém excusá-lo porque é um surdo, um surdo de gênio".
 

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