domingo, 3 de fevereiro de 2013

A DIMENSÃO DO MAR

 
 
Escreveu Fernando Pessoa:
 
 
D. DINIS
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
O rei D. Dinis governou entre 1279 e 1325. Criou a semente da primeira universidade portuguesa, em Lisboa (1290). Escreveu 72 cantigas de amor e 51 de amigo, como a deliciosa:
 
Levantou-s' a velida, 
levantou-s' alva 
e vai lavar camisas 
eno alto: 
vai-las lavar alva. 
Levantou-s' a louçaa, 
levantou-s' alva 
e vai lavar delgadas 
eno alto
Ora, D. Dinis ficou conhecido como «lavrador», «plantador». No poema de Pessoa bem se vê. Plantador do Império. Ele plantou os pinheiros com que se construíram as naus.
Nós não vamos examinar aqui o heróico fato de que aqueles navios também espalharam o terror pelo mundo. Toda a Europa fez isso. As naus portuguesas dominaram o mundo à força das armas. Há, por exemplo, um texto, na literatura singalesa, que conta a invasão de um mosteiro budista. No Brasil, nossos índios foram dizimados etc.
Não.
Vamos ficar com o poema. Com a visão do Pessoa jovem, poeta máximo.
            « Na noite escreve um seu Cantar de Amigo». Por que «na noite»? Porque o Império ainda ia amanhecer.
            Este verso revela a maestria do poeta, são dez sílabas, numa alternância de átonas e tônicas: na NOIte esCREve um SEU canTAR de aMIgo. (-/=/-/=/-/=/-/=/-/=/). 1-2, 1-2, 1-2, 1-2, 1-2.
            Este ritmo, binário, com alguma imaginação, traduz o ato da máquina, o ato do escrever, do trabalhar, seu ritmo, sua maquinaria, seus pinhais, seus delírios. O verso marca o ritmo do trabalho poético, do trabalho noturno, do trabalho intelectual, silencioso, martelando. E Amigo. Ele escrevia a história, a história do futuro, «o plantador de naus a haver».
            E ele «ouve um silêncio múrmuro consigo», que é « o rumor dos pinhais», o rumor do vento nos pinhais, que sussurram: seremos reis, seremos Detentores-reis das terras de além-mar. O murmúrio do futuro, murmúrio do «trigo da história», murmúrio do cabelo da história, que ondula sem se poder ver.
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
            Pessoa abusa de sua genialidade, no «Plantador do Trigo do Império do Fim do Mundo». Sim, porque o Império se estendeu, de Oriente a Ocidente do Orbe terrestre. Como dele disse Camões:
 
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio do Hemisfério,    
E quando desce o deixa derradeiro;     

            D.Dinis canta, e «esse cantar, jovem e puro, busca o oceano por achar». Aponta o futuro.
            Pessoa era um patriota, e a pátria ingrata só lhe prestou homenagem e lhe fez honra depois de morto. Como a Camões.
            No maior jornal de Lisboa de sua época, o «Diário de Notícias», o seu nome nunca apareceu. Ou melhor, só apareceu na página policial, quando um mágico, seu amigo, fez alguém sumir de verdade. Seus colegas de escritório nem sabiam que ele era poeta! Por isso disse que pertencia a uma geração que herdara a descrença.
«Pertenço a uma geração, diz ele, que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em tôdas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda a impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas da ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros
eram enamorados só da beleza, outras tinham a fé na ciência e nas seus proveitos, e havia outras que, mais cristãos ainda, iam buscar a orientes e ocidentes outras formas religiosas com que entretivessem a consciência, sem elas ôca, de meramente viver. Tudo isso nós perdemos, de tôdas essas consolações nascemos órfãos. Nós perdemos essa, e às outras também. Ficamos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se
sentir viver. Um barco parece ser um objeta cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um pôrto. Nós encontramo-nos
navegando, sem a idéia da pôrto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é precisa. Sem ilusões, vivemos apenas da sanha, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos...» (nota solta, sem data nem assinatura, do magnífico poeta Fernando Antonio Nogueira Pessoa, talvez o maior de todos nós).
 

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