Escreveu Fernando Pessoa:
D. DINIS
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
É a voz da terra ansiando pelo mar.
O rei D. Dinis governou entre 1279
e 1325. Criou a semente da primeira universidade portuguesa, em Lisboa (1290).
Escreveu 72 cantigas de amor e 51 de
amigo, como a deliciosa:
Levantou-s' a velida,
levantou-s' alva
e vai lavar camisas
eno alto:
vai-las lavar alva.
Levantou-s' a louçaa,
levantou-s' alva
e vai lavar delgadas
eno alto
Ora, D.
Dinis ficou conhecido como «lavrador», «plantador». No poema de Pessoa bem se
vê. Plantador do Império. Ele plantou os pinheiros com que se construíram as
naus.
Nós não
vamos examinar aqui o heróico fato de que aqueles navios também espalharam o
terror pelo mundo. Toda a Europa fez isso. As naus portuguesas dominaram o
mundo à força das armas. Há, por exemplo, um texto, na literatura singalesa,
que conta a invasão de um mosteiro budista. No Brasil, nossos índios foram
dizimados etc.
Não.
Vamos
ficar com o poema. Com a visão do Pessoa jovem, poeta máximo.
« Na noite
escreve um seu Cantar de Amigo». Por que «na noite»? Porque o Império ainda ia
amanhecer.
Este verso
revela a maestria do poeta, são dez sílabas, numa alternância de átonas e
tônicas: na NOIte esCREve um SEU canTAR de aMIgo. (-/=/-/=/-/=/-/=/-/=/). 1-2,
1-2, 1-2, 1-2, 1-2.
Este ritmo,
binário, com alguma imaginação, traduz o ato da máquina, o ato do escrever, do
trabalhar, seu ritmo, sua maquinaria, seus pinhais, seus delírios. O verso
marca o ritmo do trabalho poético, do trabalho noturno, do trabalho
intelectual, silencioso, martelando. E Amigo. Ele escrevia a história, a
história do futuro, «o plantador de naus a haver».
E ele «ouve
um silêncio múrmuro consigo», que é « o rumor dos pinhais», o rumor do vento
nos pinhais, que sussurram: seremos reis, seremos Detentores-reis das terras de
além-mar. O murmúrio do futuro, murmúrio do «trigo da história», murmúrio do
cabelo da história, que ondula sem se poder ver.
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
É a voz da terra ansiando pelo mar.
Pessoa
abusa de sua genialidade, no «Plantador do Trigo do Império do Fim do Mundo».
Sim, porque o Império se estendeu, de Oriente a Ocidente do Orbe terrestre.
Como dele disse Camões:
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando desce o deixa derradeiro;
D.Dinis
canta, e «esse cantar, jovem e puro, busca o oceano por achar». Aponta o
futuro.
Pessoa era
um patriota, e a pátria ingrata só lhe prestou homenagem e lhe fez honra depois
de morto. Como a Camões.
No maior
jornal de Lisboa de sua época, o «Diário de Notícias», o seu nome nunca
apareceu. Ou melhor, só apareceu na página policial, quando um mágico, seu
amigo, fez alguém sumir de verdade. Seus colegas de escritório nem sabiam que
ele era poeta! Por isso disse que pertencia a uma geração que herdara a
descrença.
«Pertenço a uma geração, diz ele,
que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em tôdas as
outras fés. Os nossos pais tinham ainda a impulso credor, que transferiam do
cristianismo para outras formas da ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade
social, outros
eram enamorados só da beleza, outras tinham a fé na ciência
e nas seus proveitos, e havia outras que, mais cristãos ainda, iam buscar a
orientes e ocidentes outras formas religiosas com que entretivessem a
consciência, sem elas ôca, de meramente viver. Tudo isso nós perdemos, de tôdas
essas consolações nascemos órfãos. Nós perdemos essa, e às outras também.
Ficamos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se
sentir viver. Um barco parece ser um objeta cujo fim é
navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um pôrto. Nós
encontramo-nos
navegando, sem a idéia da pôrto a que nos deveríamos
acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos
argonautas: navegar é preciso, viver não é precisa. Sem ilusões, vivemos apenas
da sanha, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios,
diminuímo-nos...» (nota solta, sem data nem assinatura, do magnífico poeta
Fernando Antonio Nogueira Pessoa, talvez o maior de todos nós).
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