quarta-feira, 9 de outubro de 2013

CRÔNICA DE M. DE ASSIS

4 de maio
 
Bons dias!
 
...Desculpem, se lhes não tiro o chapéu; estou muito constipado. Vejam; mal posso respirar. Passo as noites de boca aberta. Creio até, que estou abatido e magro. Não? Estou; olhem como fungo. E não é de autoridade, note-se; ex auctoritate qua fungor, não, senhor; fungo sem a menor sombra de poder, fungo à toa...
 
Entretanto, se alguma vez precisei de estar de perfeita saúde, é agora, por várias razões. Citarei duas:
 
A primeira é a abertura das Câmaras. Realmente, deve ser solene. O discurso da princesa, o anúncio da lei de abolição, as outras reformas, se as há, tudo excita curiosidade geral, e naturalmente pede uma saúde de ferro. O meu plano era simples; metia-me na casaca, e ia para o Senado arranjar um lugar, donde visse a cerimônia, deputações, recepção, discurso. Infelizmente, não posso; o médico não quer, diz-me que, por esses tempos úmidos, é arriscado sair de casa; fico.
 
A segunda razão da saúde que eu desejava ter agora, prende com a primeira. Já o leitor adivinhou o que é. Não se pode conversar nada, assim mais encobertamente, que ele não perceba logo e não descubra. É isso mesmo; é a política do Ceará. Era outro plano meu; entrava pelo Senado, e ia ter com o senador cearense Castro Carreira, e dizia-lhe mais ou menos isto:
 
— Saberá V. Exa. que eu não entendo patavina dos partidos do Ceará...
 
— Com efeito...
 
— Eles são dois, mas quatro; ou, mais acertadamente, são quatro, mas dois.
 
— Dois em quatro.
 
— Quatro em dois.
 
— Dois, quatro.
 
— Quatro, dois.
 
— Quatro.
 
— Dois.
 
— Dois.
 
— Quatro.
 
— Justamente.
 
— Não é?
 
— Claríssimo.
 
Dadas estas explicações, pediria eu ao Sr. Dr. Castro Carreira que me desse algumas notícias mais individuais dos grupos Aquirás e Ibiapaba... S. Exa., com fastio:
 
— Notícias individuais? Homem, eu não sei política individualista; eu só vejo os princípios.
 
— Bem, os princípios. Sabe que o grupo Aquirás, com um troço liberal, tomaram conta da mesa; mas o grupo Ibiapaba acudiu com outro troço liberal, e puseram água na fervura. Quais são os princípios?
 
— Os primeiros de todos devem ser os da boa educação, sem os quais não há boa política. Dai-me boa educação, e eu vos darei boa política, diria o Barão Louis. São os primeiros de todos os princípios.
 
— Os segundos...
 
— Os segundos são os comuns — ou que o devem ser, a todos os partidários, quaisquer que sejam as denominações particulares; refiro-me ao bem da província. É o terreno em que todos se podem conciliar.
 
— De acordo; mas o que é que os separa?
 
— Os princípios.
 
— Que princípios?
 
— Não há outros; os princípios.
 
— Mas Aquirás é um título, não é um princípio; Ibiapaba também é um título.
 
— Há entre o céu e a terra mais acumulações do que sonha a vossa vã filosofia...
 
— Pode ser, mas isto ainda não me explica a razão desta mistura ou troca de grupos, parecendo melhor que se fundissem de uma vez, com os antigos adversários. Não lhe parece?
 
— O que me parece, é que a princesa vem chegando.
 
Corríamos à janela; víamos que não; continuávamos o diálogo, a entrevista, à maneira americana, para trazer os meus leitores informados das coisas e pessoas. O meu interlocutor, vendo que não era a princesa, olhava para mim, esperando. Pouco ou nenhum interesse no olhar; mas é ditado velho, que quem vê cara não vê corações. Certo fastio crescente. Princípio de desconfiança de que eu sou mandado pelo diabo. Gesto vago de cruzes...
 
— Há os Rodrigues, os Paulas, os Aquirases, os Ibiapas; há os...
 
— Agora creio que é a princesa. Estas trombetas... É ela mesma; adeus, sou da deputação... Apareça aqui pelo Senado... No Senado, não há dúvidas...
 
Mas eu pegava-lhe na mão, e não vinha embora sem alguns esclarecimentos. Tudo perdido, por causa de uma coriza! Coriza dos diabos, agora ou nunca, chegaríamos a entender aqueles grupos; e perde-se esta ocasião única, por tua causa, infame catarro, monco pérfido!... Tuah! Vou meter-me na cama.
 
Boas noites.
 

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