REFLEXÃO SOBRE UM
SONETO DE SHAKESPEARE
Rogel Samuel
Afirmou Hegel: "A
necessidade não é cega senão na medida em que não é compreendida".
Por isso não somos
livres do amor.
O reinado da
necessidade se resume num aprisionamento, limitação, a ausência. Um consumo
«inútil».
Consumir o inútil é a
grande e gloriosa invenção do amor. Invenção e conseqüência.
O ser que esteja
condenado a consumir apenas a necessidade de sobrevivência está excluída dos
bens do amor, daquela necessidade que gera felicidade e crescimento, mas dor e
lamentação.
O amante não tem
liberdade.
Isso me ocorre sobre o
consumo da arte e do amor.
Mas o amor é o consumo
da beleza.
«O homem faz da beleza
aquilo que ama, e da verdade aquilo em que crê», disse Novalis.
*
* *
Há um soneto de
Shakespeare que canta:
«Shall I compare thee to a summer's day?
Thou art more lovely and more temperate:
Rough winds do shake the darling buds of
May,
And summer's lease hath all too short a
date:
Sometime too hot the eye of heaven shines,
And often is his gold complexion dimm'd:
And every fair from fair sometime declines,
By chance, or nature's changing course
untrimm'd;
But thy eternal summer shall not fade,
Nor lose possession of that fair thou
ow'st,
Nor shall death brag thou wander'st in his
shade,
When in eternal lines to time thou grow'st;
So long as men can breathe, or eyes can
see,
So long lives this, and this gives life to
thee.»
*
* *
Podemos traduzir muito
livremente assim:
«A um dia de verão eu
te comparo?
Tua face é mais bela,
é mais suave
Que os ventos ácidos
sobre os botões de maio
E o tempo estival tão
pouco dura.
Às vezes o olho do céu
brilha muito quente
E às vezes seu teto de
ouro perde a luz.
E tudo o que é belo
enfim declina
Devido ao acaso ou às
mudanças de natura.
Mas teu verão é eterno
e não desmaia,
Nem perde a possessão
de tua beleza,
Nem deve a morte
ensombrar-te:
Pois nestes versos
eternos o tempo dura
Enquanto houver um
homem que respira
Enquanto viver tais
versos em dar-te a vida.»
*
* *
A arte do amor expande no espaço da liberdade e do
eterno.
Mas o eterno aqui
é a espera de nada, ou seja: a arte do amor não visa a nada, porque ela é em si
sua própria finalidade.
A arte, diz o
soneto, vai eternizar o amor.
A liberdade do
amor é a espera de nada no sentido de que vige no espaço lúdico, isto é, gratuito,
não visa a nada além dele mesmo e da sua conquista e satisfação.
Mas a arte faz a
mimese do distanciamento estético do amor, intensificando a percepção e mantendo-o eterno com suas promessas de
felicidade.
No soneto, o amor
mata a morte, vence o tempo. Soberevive.
Cria o amor uma
tensão para provocar a liberdade feliz. Ao liberar a tensão, libera a
liberdade.
Felicidade
extrema, a do amor.
Mas se fosse o
objeto amoroso prometer que no fim o bem triunfaria sobre o mal, tal promessa
seria refutada pela verdade: é o mal quem sempre triunfa, é a solidão, a morte
e sua treva.
Apenas existem
ilhas do bem em que podemos refugiar-nos durante algum tempo.
O amor faz do fim
de toda a tensão o seu leito, só conseguido após a tensão máxima e
revolucionária, de uma crise — o seu clímax e a Liberdade, o supremo, e a
vitória da reconstrução da subjetividade.
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