Polanski e a menina: uma dura denúncia da mídia e da máquina do judiciário
Samantha Geimer, estuprada por Roman Polanski, conta em seu livro que seu sofrimento foi ampliado pelo aproveitamento do caso pela mídia e pelo judiciário.
Somos todos fãs de Roman Polanski (O bebê de Rosemary, Chinatown, O pianista),
nos deu muita felicidade com os seus filmes. Como conciliar esta
simpatia com a visão de um quarentão que estuprou uma garota de 13 anos?
Claro, porque todos também se lembram de Polanski por este lado mais
escuro, em particular porque tivemos algumas décadas de noticiário
internacional e nacional, em todas as mídias, sobre o “caso”. Com que
gosto a mídia internacional e o sistema judiciário americano ficaram se
lambuzando, décadas a fio, neste assunto predileto de uma boa parte da
humanidade, que é de saber quem faz o que com os buraquinhos de quem.
Quando se junta fama, então, ninguém resiste. Penetrar na intimidade dos
famosos vende bem.
Quase quarenta anos depois dos fatos, Samantha Geimer, a garotinha, decidiu escrever um livro (nota) não para pegar carona na fama que lhe granjeou o caso, mas para denunciar a imensa indústria da notícia, a perversa articulação da pompa do judiciário com a mídia indignada, num quadro ideal e lucrativo: poder falar de detalhes sexuais com o peito estufado de ética ofendida.
Comentários sobre o livro são numerosos, tenta-se extrair ainda algumas gotas do assunto. Alguns ainda declaram de forma espalhafatosa que ela “perdoa” o estupro, buscando gerar notícia. Mas o que temos aqui é diferente. Samantha se calou durante quarenta anos, tentando se esconder da mórbida curiosidade mundial sobre como foi sentir a penetração anal de um pênis tão famoso. Hoje, casada, com filhos, cinquentona, relata o drama de uma pessoa marcada aos 13 anos para sempre por este fato.
Ao constatar o teatro jurídico em que se transformou o seu processo, por “sexo não-consensual”, já que não houve violência, e frente a um juiz que não hesitava em consultar amigos jornalistas para saber como achavam que a opinião pública receberia uma pena mais pesada ou mais leve que ele impusesse ao réu, Polanski fugiu dos Estados Unidos e se refugiou na França. Com isso, o processo continuou à revelia, com pedidos de extradição, uma detenção para averiguações na Suíça, e a cada pequeno fato jurídico manchetes mundiais indignadas sobre o cineasta famoso, contra ou a favor, mas sempre manchetes.
E, a cada manchete, voltavam os jornalistas a vigiar a casa da Samantha, telefonar centenas de vezes inclusive para o seu emprego, colocando-o em cheque. Nem os filhos escaparam, emboscados em saídas da escola ou da própria casa. Na rua frente à residência, vans estacionadas com vidros pintados, com filmadoras em permanência focadas nas janelas, na porta de entrada. Na ausência de noticias, inventaram-se entrevistas, declarações, tudo para alimentar a novela. Nunca a deixaram ter uma vida familiar e profissional tranquila. Samantha não poupa críticas. Ela era vítima, criança, tinha de ter a sua identidade protegida, ter direito a uma vida que lhe permitisse se reequilibrar, voltar à normalidade, sem tanta perseguição.
Do lado do judiciário, o comportamento não foi melhor. Na noite do estupro, Samantha contou para um ex-namorado, a irmã ouviu a conversa, contou para os pais, que chamaram um advogado, que chamou a polícia, originando-se uma denúncia formal, o que levaria a garota, que queria esquecer o assunto, a ser obrigada a repetir para dezenas de autoridades judiciais os detalhes do caso, se ele a forçou, como foi o diálogo, o que bebeu e assim por diante. E naturalmente as penetrações anais com instrumentos para coleta de material, para verificar a existência de esperma. E não tardaria, naturalmente, o vazamento à imprensa do que tinham sido deposições cobertas pelo sigilo judicial. Verdade que o juiz encarregado do caso, e que fez a sua fama nas costas dela e de Polanski, terminou completamente desqualificado. Hoje falecido, sobrou-lhe a fama e imagem de falso moralismo e de péssimo juiz.
No livro, em nenhum momento a autora perdoa o fato Polanski ter se aproveitado, e deixa isto bem claro em várias passagens. Foi estupro, ponto. Como escreve, “o perdão foi para a minha paz de espírito; tinha pouco a ver com ele” (p.228). Mas o eixo central que ela deixa claro em toda extensão do livro é que o aproveitamento do caso pela mídia e pelo judiciário gerou sofrimento para ela sem comum medida com o que tinha sofrido com o estupro. E mostra e afirma igualmente que o sofrimento, exílio, prisões e perseguições que Polanski sofreu também foram sem comum medida com o que ele fez. Samantha escreve com raiva sobre famosos comentaristas de TV, em programas de grande audiência, apelando para que o público se solidarize com a “pobre menina”. Mais lucro e pontos de audiência em nome da ética.
A máquina é infernal. Os advogados de defesa do Polanski foram naturalmente levados a destruir a imagem de menina abusada por um adulto, jogando aos quatro ventos uma relação sexual que tinha tido com o namorado, como prova de que não era inocente. E construíram uma imagem da mãe, como piranha que ofereceu a filha para ganhar espaço na indústria do cinema em Hollywood. Os advogados de acusação buscaram naturalmente fazer o semelhante com Polanski. A opinião pública se dividiu entre os que se solidarizaram com Polanski contra a garotinha perversa e a mãe piranha, ou os que navegaram na defesa da pobre menina inocente e da mãe enganada.
O interessante mesmo, é que ninguém deu a mínima para a preservação da intimidade e da vida da vítima, nem para uma justiça discreta e eficiente que punisse o que foi um crime. O casamento da grande mídia comercial com um sistema judiciário perverso, no caso, moeu a vida de duas pessoas que mereciam melhor. Nada melhor que a palavra da própria Samantha: “A razão de ser da justiça não é o entretenimento ou enriquecimento de funcionários públicos, comentaristas e corporações da mídia. Eu não acredito que a punição e o espetáculo possam substituir a justiça.”(P.242)
Nota
Samantha Geimer – The Girl: a life in the shadow of Roman Polanski – Atria Books, New York, 201; lançado no Brasil como A Menina – uma vida à sombra de Roman Polanski
Quase quarenta anos depois dos fatos, Samantha Geimer, a garotinha, decidiu escrever um livro (nota) não para pegar carona na fama que lhe granjeou o caso, mas para denunciar a imensa indústria da notícia, a perversa articulação da pompa do judiciário com a mídia indignada, num quadro ideal e lucrativo: poder falar de detalhes sexuais com o peito estufado de ética ofendida.
Comentários sobre o livro são numerosos, tenta-se extrair ainda algumas gotas do assunto. Alguns ainda declaram de forma espalhafatosa que ela “perdoa” o estupro, buscando gerar notícia. Mas o que temos aqui é diferente. Samantha se calou durante quarenta anos, tentando se esconder da mórbida curiosidade mundial sobre como foi sentir a penetração anal de um pênis tão famoso. Hoje, casada, com filhos, cinquentona, relata o drama de uma pessoa marcada aos 13 anos para sempre por este fato.
Ao constatar o teatro jurídico em que se transformou o seu processo, por “sexo não-consensual”, já que não houve violência, e frente a um juiz que não hesitava em consultar amigos jornalistas para saber como achavam que a opinião pública receberia uma pena mais pesada ou mais leve que ele impusesse ao réu, Polanski fugiu dos Estados Unidos e se refugiou na França. Com isso, o processo continuou à revelia, com pedidos de extradição, uma detenção para averiguações na Suíça, e a cada pequeno fato jurídico manchetes mundiais indignadas sobre o cineasta famoso, contra ou a favor, mas sempre manchetes.
E, a cada manchete, voltavam os jornalistas a vigiar a casa da Samantha, telefonar centenas de vezes inclusive para o seu emprego, colocando-o em cheque. Nem os filhos escaparam, emboscados em saídas da escola ou da própria casa. Na rua frente à residência, vans estacionadas com vidros pintados, com filmadoras em permanência focadas nas janelas, na porta de entrada. Na ausência de noticias, inventaram-se entrevistas, declarações, tudo para alimentar a novela. Nunca a deixaram ter uma vida familiar e profissional tranquila. Samantha não poupa críticas. Ela era vítima, criança, tinha de ter a sua identidade protegida, ter direito a uma vida que lhe permitisse se reequilibrar, voltar à normalidade, sem tanta perseguição.
Do lado do judiciário, o comportamento não foi melhor. Na noite do estupro, Samantha contou para um ex-namorado, a irmã ouviu a conversa, contou para os pais, que chamaram um advogado, que chamou a polícia, originando-se uma denúncia formal, o que levaria a garota, que queria esquecer o assunto, a ser obrigada a repetir para dezenas de autoridades judiciais os detalhes do caso, se ele a forçou, como foi o diálogo, o que bebeu e assim por diante. E naturalmente as penetrações anais com instrumentos para coleta de material, para verificar a existência de esperma. E não tardaria, naturalmente, o vazamento à imprensa do que tinham sido deposições cobertas pelo sigilo judicial. Verdade que o juiz encarregado do caso, e que fez a sua fama nas costas dela e de Polanski, terminou completamente desqualificado. Hoje falecido, sobrou-lhe a fama e imagem de falso moralismo e de péssimo juiz.
No livro, em nenhum momento a autora perdoa o fato Polanski ter se aproveitado, e deixa isto bem claro em várias passagens. Foi estupro, ponto. Como escreve, “o perdão foi para a minha paz de espírito; tinha pouco a ver com ele” (p.228). Mas o eixo central que ela deixa claro em toda extensão do livro é que o aproveitamento do caso pela mídia e pelo judiciário gerou sofrimento para ela sem comum medida com o que tinha sofrido com o estupro. E mostra e afirma igualmente que o sofrimento, exílio, prisões e perseguições que Polanski sofreu também foram sem comum medida com o que ele fez. Samantha escreve com raiva sobre famosos comentaristas de TV, em programas de grande audiência, apelando para que o público se solidarize com a “pobre menina”. Mais lucro e pontos de audiência em nome da ética.
A máquina é infernal. Os advogados de defesa do Polanski foram naturalmente levados a destruir a imagem de menina abusada por um adulto, jogando aos quatro ventos uma relação sexual que tinha tido com o namorado, como prova de que não era inocente. E construíram uma imagem da mãe, como piranha que ofereceu a filha para ganhar espaço na indústria do cinema em Hollywood. Os advogados de acusação buscaram naturalmente fazer o semelhante com Polanski. A opinião pública se dividiu entre os que se solidarizaram com Polanski contra a garotinha perversa e a mãe piranha, ou os que navegaram na defesa da pobre menina inocente e da mãe enganada.
O interessante mesmo, é que ninguém deu a mínima para a preservação da intimidade e da vida da vítima, nem para uma justiça discreta e eficiente que punisse o que foi um crime. O casamento da grande mídia comercial com um sistema judiciário perverso, no caso, moeu a vida de duas pessoas que mereciam melhor. Nada melhor que a palavra da própria Samantha: “A razão de ser da justiça não é o entretenimento ou enriquecimento de funcionários públicos, comentaristas e corporações da mídia. Eu não acredito que a punição e o espetáculo possam substituir a justiça.”(P.242)
Nota
Samantha Geimer – The Girl: a life in the shadow of Roman Polanski – Atria Books, New York, 201; lançado no Brasil como A Menina – uma vida à sombra de Roman Polanski
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