Herberto Helder (1930-2015) Morreu o poeta que publicou 'A Morte Sem Mestre' (em atualização). O poeta Herberto Helder morreu esta segunda-feira, aos 84 anos, na sua casa em Cascais. Herberto Helder era considerado o maior poeta português da segunda metade do século XX. A cerimónia fúnebre realiza-se amanhã e é reservada à família, informou a Porto Editora. "Nome cimeiro da literatura portuguesa contemporânea, poeta maior que ficará entre a meia dúzia de nomes incontornáveis da poesia portuguesa do século XX", lê-se num comunicado da editora. Considerado um dos maiores poetas portugueses, Herberto Helder, que morreu segunda-feira aos 84 anos, deu a sua última entrevista em 1968 e recusou o Prémio Pessoa na década de noventa, rejeitando quase sempre o mediatismo literário. Morreu Herberto Helder Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira nasceu a 23 de Novembro de 1930 no Funchal, mas desde há muito que residia em Cascais. A 'Morte sem Mestre' foi o último livro do poeta, publicado pela Porto Editora em junho de 2014. O Presidente da República lembrou esta terça-feira o poeta Herberto Helder como "nome cimeiro da cultura portuguesa", sublinhando a forma como a sua escrita marcou a literatura portuguesa das últimas décadas. "Dotado de rara imaginação e sensibilidade, a sua obra sobressai pela originalidade, a coerência e o rasgo de génio com que se afirmou desde o primeiro livro e que sempre lhe foi reconhecido pelos seus leitores", lê-se uma mensagem do chefe de Estado, Aníbal Cavaco Silva, enviada aos familiares do poeta. O secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier afirmou, numa "nota pública de pesar", que Herberto Hélder "deu novas línguas à língua portuguesa". "Herberto Helder é uma referência maior para a cultura portuguesa e para o seu lugar no mundo, e o seu contributo para a construção do Portugal contemporâneo um bem que a todos deu e do qual todos recebemos parte, enquanto Portugueses e falantes do Português", lê-se no mesmo documento. A presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, transmitiu as suas condolências pelo falecimento do poeta Herberto Helder, que classificou de "mestre sem morte" que escrevia "palavras de libertação". "Herberto Helder é o mestre sem morte, para nos suportarmos 'em trocadilho' nas suas palavras. Palavras de libertação, palavras aladas, como que a querer "redimir" uma existência que acusava o excesso de peso do mundo numa lucidez pessoana que afinal a todos nos resgatava", lê-se na nota divulgada por Assunção Esteves. O escritor Manuel Alegre lamentou esta terça-feira a morte de Herberto Helder, de 84 anos, sublinhando que "era um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos". O presidente da Associação Portuguesa de Escritores (APE), José Manuel Mendes, afirmou que Herberto Helder, falecido na segunda-feira, foi o criador "da obra mais fulgurante em Portugal desde a edição do primeiro livro". O crítico Pedro Mexia considerou que o lugar do poeta Herberto Helder na literatura portuguesa equivalerá ao de Fernando Pessoa na primeira metade do século XX. Herberto Helder acreditava no "poder da palavra", sem desconfianças, e esse é um dos seus legados mais fortes na literatura portuguesa, referiu Pedro Mexia. O secretário-geral socialista, António Costa, e o PS manifestaram "profundo pesar" pela morte do poeta Herberto Helder, considerando trata-se de uma "imensa perda" para a cultura portuguesa. Já Francisco José Viegas, comentador da CMTV, afirmou em direto que Herberto Helder foi "provavelmente o poeta mais poderoso, no sentido em que é o que mais influenciou toda a poesia portuguesa do seu tempo". Obras de Herberto Helder Poesia – Poesia: O Amor em Visita (1958) – A Colher na Boca (1961) – Poemacto (1961) – Retrato em Movimento (1967) – O Bebedor Nocturno (1968) – Vocação Animal (1971) – Cobra (1977) – O Corpo o Luxo a Obra (1978) – Photomaton & Vox (1979) – Flash (1980) – A Cabeça entre as Mãos (1982) – As Magias (1987) – Última Ciência (1988) – Do Mundo, (1994) – Poesia Toda (1º vol. de 1953 a 1966; 2º vol. de 1963 a 1971) (1973) – Poesia Toda (1ª ed. em 1981) – A Faca Não Corta o Fogo - Súmula & Inédita (2008) – Ofício Cantante (2009) – Servidões (2013) – A Morte Sem Mestre (2014) Ficção – Os Passos em Volta (1963) – Apresentação do Rosto (1968) – A Faca Não Corta o Fogo (2008)
Herberto Helder (1930-2015)
AOS AMIGOS
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
— Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.
de Lugar (Escolha de Vasco David’)
alguém salgado porventura
te
toca
entre as omoplatas,
alguém algures sopra quente nos ouvidos,
e te apressa, enquanto corres
algumas braças acima
do chão fluido, leva-te a luz e subleva,
tão aturdidos dedos e sopros,
até ao recôndito,
alguma vez te tocaram nas têmporas e nos testículos, alto,
baixo,
com mais mão de sangue e abrasadura,
e te cruzaram nesse furor,
e criaram, com bafo
ardido, ásperos sais nos dedos, e te levaram,
a luz corrente lavrando o mundo,
cerrado e duro e doloroso, acaso
sabias
a que domínios e plenitudes idiomáticas
de íngremes ritmos, que buraco negro,
na labareda radioactiva,
bic cristal preta onde atrás raia às vezes
um pouco de urânio escrito
de A Faca não Corta o Fogo (Escolha de Vasco David’)
BICICLETA
Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais —
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.
O sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
Entre as rimas e o suor, aparece e des
aparece uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce
sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.
De pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa agora pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.
O bico do poeta corre os pontos cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.
Se a noite cai agora sobre a rosa passada,
e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
o poeta dá à pata como os outros animais.
Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.
de Cinco Canções Lunares (Escolha de Hugo Pinto Santos)
que eu aprenda tudo desde a morte,
mas não me chamem por um nome nem pelo uso das coisas,
colher, roupa, caneta,
roupa intensa com a respiração dentro dela,
e a tua mão sangra na minha,
brilha inteira se um pouco da minha mão sangra e brilha,
no toque entre os olhos,
na boca,
na rescrita de cada coisa já escrita nas entrelinhas das coisas,
fiat cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que regula a terra,
o canto comum-de-dois,
o inexaurível,
o quanto se trabalha para que a noite apareça,
e à noite se vê a luz que desaparece na mesa,
chama-me pelo teu nome, troca-me,
toca-me
na boca sem idioma,
já te não chamaste nunca,
já estás pronta,
já és toda
de A Faca não Corta o Fogo (Escolha de Hugo Pinto Santos)
li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega
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