NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
Porque, diante
de um gravatá, selva moldada em jarro jônico, dizer-se apenas drimirim ou amormeuzinho é justo; e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim
que atira para cima cinqüenta metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto
de criar um vocativo absurdo e bradá-lo — Ó colossalidade! — na direção da
altura?
E não é sem
assim que as palavras têm canto e plumagem. (...) E que a gíria pede sempre
roupa nova e escova. E que o meu parceiro Josué Cornetas conseguiu ampliar um
tanto os limites mentais de um sujeito só bi-dimensional, por meio de
ensinar-lhe estes nomes: intimismo, paralaxe, palimpsesto, sinclinal,
palingenesia, prosopose, amnemosínia, subliminal. E que a população do Calango-Frito
não se edifica com os sermões do novel pároco Padre Geraldo ("Ara, todo o
mundo entende...") e clama saudades das lengas arengas do defunto Padre
Jerônimo, "que tinha muito mais latim"... E que a frase "Sub lege libertas!", proferida em
comício de cidade grande, pode abafar um motim potente, iminente. (...) E que o
comando "Abre-te Sésamo etc" fazia com que se escancarasse a porta da
gruta-cofre... E que, como ia contando, escrevi no bambú.172
O escritor
busca a profundidade do ar e das palavras aladas (desconhecidas), ensaia um
vocativo absurdo em direção às alturas, reconhece que as palavras têm canto e
plumagem; reconhece que a gíria pede sempre roupa nova e escova; que as
palavras pouco usadas e desconhecidas, multissignificativas, possuem um poder
maior, possuem o poder de reduplicar o real e elevá-lo à instância do
cosmodrama.
Fundaríamos
assim uma instância psíquica particular a que poderíamos muito bem chamar a
instância do cosmodrama. O ser sonhante trabalharia o mundo, faria exotismo em
casa, assumiria uma tarefa de herói nas batalhas da matéria, entraria na luta
dos negrumes íntimos, tomaria partido na rivalidade das tinturas. Sairia
vencedor no detalhe das imagens, de todo "choque negro".173
Em "São
Marcos", no primeiro segmento da narrativa, ele reduplica o real,
recopia-o, descreve as belezas exteriores desse real, coloca-se como herói e
mártir de uma estória linear, repleta de feiticeiros e magias. Mas, há um
momento (idealizado por ele mesmo) de entrada na luta dos negrumes íntimos, no qual passa a tomar partido na rivalidade das
tinturas. O reflexo exterior da matéria, ou seja, o simples colorido, começa a
perder o encantamento que o seduzia até então. A cegueira providencial é a gota de tintura (temporária, diga-se de
passagem, porque o Criador recuperará o fio sintagmático de sua estória) que o
fará visualizar um certo princípio de densidade e dinamismo, qualidades da
imaginação material dinâmica, as quais serão alcançadas a partir de A hora e vez de Augusto Matraga.
A cegueira
providencial pré-anuncia as imagens dinâmicas da tintura, reveladora das verdades das profundezas. A água e o ar são
matérias frágeis, substâncias fracas e passivas, que necessitam de um elemento
alquímico/criativo que as elevem ao plano das emoções profundas. Assim, este
novo ficcionista busca a profundidade do ar, abre a tomar ar fundo, movendo as costelas todas, sem pedir licença a
ninguém; consequentemente, sua agitação íntima se fortalece ao entrar em
contato com a pancada preta, que o torna cego por um longo
tempo.
O Artista ouve (ou observa?) a escuridão secreta
da gruta, pois está momentaneamente perturbado pelas suas descobertas de criador literário, ou seja, descobriu o poder de um
mundo negro e sem forma, aquilo que os teóricos da literatura chamam de vazio criador.
Para Bachelard, o choque negro
"desperta emoções profundas"174. De ora em diante, ele passará a
comentar seus sonhos, procurará se interiorizar cada vez mais no cerne da
matéria que o inspira.
O Criador
Literário do século XX recebeu o apelo das trevas; ouviu a natureza, até então
apenas visualizada; descobriu que "era possível distinguir o guincho do
paturi do coincho do ariri, e até dissociar as corridas das preás dos pulos das
cotias"175;
conseguiu ouvir o mundo desconhecido
de um sertão também desconhecido.
Jamais tivera
eu notícia de tanto silvo e chilro, e o mato cochichava, cheio de palavras
polacas e de mil bichinhos tocando viola no oco do pau.176
Mas, sobretudo,
sentiu a ameaça do por vir, ou seja, percebeu que as futuras narrativas teriam
de adotar este plano desconhecido de pura treva, e os personagens teriam
(também eles) de assumir uma postura de desconhecimento do final narrativo,
tomando as rédeas da própria materialização, sem a onisciência do narrador.
Entretanto, por
ora, graças aos elementos mágicos lineares, recupera-se diegeticamente;
Mas, estremeço,
praguejo, me horrorizo. O alhúm. O odor maciço, doce-ardido, do pau-d'alho!
Reconheço o tronco. Deve haver uma aroeira nova, aqui ao lado. Está. Acerto com
as folhas: esmagadas nos dedos, cheiram a manga. É ela, a aroeira. Sei desta
aberta fria: tem sido o ponto extremo das minhas tentativas de penetração; além
daqui, nunca me aventurei nos passeios de mato a dentro.177
recusa o insólito vislumbrado
através da intuição;
Então, e por
caminhos tantas vezes trilhados, o instinto soube guiar-me apenas na direção do
pior — para os fundões da mata, cheia de paludes de águas tapadas e de alçapões
do barro comedor de pesos?!...178
reza
a oração brava de São Marcos; enfrenta o ódio do Mangolô, surrando-o;
recupera-se ao nível das coisas instituídas, recobrando a vista e deixando-se
subjugar pela visão colorida de um mundo colorido e linear; intenso, exterior e
mítico.
Na baixada,
mato e campo eram concolores. No alto da colina, onde a luz andava à roda,
debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um boi branco, de cauda branca. E,
ao longe, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se três qualidades de azul.179
No final da
narrativa, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se três qualidades de azul,
que iriam adquirir qualidades inusitadas, de acordo com as futuras fases
criativas do Artista transmutativo.
(...) Uma
teoria do conhecimento do real que se desinteressa dos valores oníricos se priva
de alguns interesses que impelem ao conhecimento.180
Bachelard
refere-se ao método da filosofia contemporânea, que rejeita a ciência da
matéria. Critica a adoção de um único método em detrimento dos outros; fala da
importância de se estar aberto a outros tipos de experiência; lamenta que
espíritos lúcidos neguem "os múltiplos vislumbres formados em zonas
psíquicas mais tenebrosas"181; enfim, demonstra a validade de se ocupar com
os valores oníricos, pouco dialetizados pelos filósofos atuais.
Os teóricos da
literatura compreendem a importância das outras ciências, para o desvelamento
do texto literário. Eduardo Portela, no seu livro Teoria Literária182, observa
que a teoria da literatura, apesar de se posicionar como disciplina autônoma,
necessita do apoio de disciplinas como a sociologia, antropologia, história,
psicologia e outras. A colaboração evidentemente é indispensável, mas somente o
texto indicará os métodos a serem utilizados.
Os textos de
Guimarães Rosa por exemplo impulsionam a uma abordagem filosófica. Ele foi
leitor de grandes filósofos, e isto se evidencia em sua obra. Em sua ENTREVISTA a Günter Lorenz fala de seu
convívio com a filosofia e de sua admiração por Unamuno; enfim, não descarta a
possibilidade de se posicionar como filósofo do sertão183.
Ao atingir a
segunda fase de sua trajetória literária, Guimarães Rosa penetra na intimidade
de sua matéria ficcional. Por isto, o retorno de Nhô Augusto ao arraial do
Murici é um poema de amor ao sertão. Ele, submetido ao seu papel de ficcionista,
observa as minúcias da caminhada, por intermédio da perspectiva dialetizada já
quase maravilhada, com os olhos do coração. Recorda pequeninas belezas de sua terra natal (florezinhas,
abelhas trabalhadoras, miúdas árvores, minúsculas formigas); apresenta ao
leitor a sua intimidade com o sertão; realça seus próprios sonhos de infância.
Bachelard é um
conhecedor de palavras sonhadas:
Assinalamos que
todo conhecimento da intimidade das coisas é imediatamente um poema. Como
indica claramente Francis Ponge, ao trabalhar oniricamente no interior das
coisas nos dirigimos à raiz sonhadora das palavras.184
O objetivo de
Bachelard, ao desenvolver suas considerações filosóficas sobre a água e os
sonhos, foi "tentar mostrar, por trás das imagens que se mostram, as
imagens que se ocultam", ou seja, "ir à própria raiz da força
imaginante"185.
Para o filósofo, a raiz da força imaginante só se exterioriza por intermédio da
imaginação que dá vida à causa material, das imagens que se ocultam.
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