sábado, 7 de março de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

Porque, diante de um gravatá, selva moldada em jarro jônico, dizer-se apenas drimirim ou amormeuzinho é justo; e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima cinqüenta metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo — Ó colossalidade! — na direção da altura?

E não é sem assim que as palavras têm canto e plumagem. (...) E que a gíria pede sempre roupa nova e escova. E que o meu parceiro Josué Cornetas conseguiu ampliar um tanto os limites mentais de um sujeito só bi-dimensional, por meio de ensinar-lhe estes nomes: intimismo, paralaxe, palimpsesto, sinclinal, palingenesia, prosopose, amnemosínia, subliminal. E que a população do Calango-Frito não se edifica com os sermões do novel pároco Padre Geraldo ("Ara, todo o mundo entende...") e clama saudades das lengas arengas do defunto Padre Jerônimo, "que tinha muito mais latim"... E que a frase "Sub lege libertas!", proferida em comício de cidade grande, pode abafar um motim potente, iminente. (...) E que o comando "Abre-te Sésamo etc" fazia com que se escancarasse a porta da gruta-cofre... E que, como ia contando, escrevi no bambú.172

O escritor busca a profundidade do ar e das palavras aladas (desconhecidas), ensaia um vocativo absurdo em direção às alturas, reconhece que as palavras têm canto e plumagem; reconhece que a gíria pede sempre roupa nova e escova; que as palavras pouco usadas e desconhecidas, multissignificativas, possuem um poder maior, possuem o poder de reduplicar o real e elevá-lo à instância do cosmodrama.

Fundaríamos assim uma instância psíquica particular a que poderíamos muito bem chamar a instância do cosmodrama. O ser sonhante trabalharia o mundo, faria exotismo em casa, assumiria uma tarefa de herói nas batalhas da matéria, entraria na luta dos negrumes íntimos, tomaria partido na rivalidade das tinturas. Sairia vencedor no detalhe das imagens, de todo "choque negro".173

Em "São Marcos", no primeiro segmento da narrativa, ele reduplica o real, recopia-o, descreve as belezas exteriores desse real, coloca-se como herói e mártir de uma estória linear, repleta de feiticeiros e magias. Mas, há um momento (idealizado por ele mesmo) de entrada na luta dos negrumes íntimos, no qual passa a tomar partido na rivalidade das tinturas. O reflexo exterior da matéria, ou seja, o simples colorido, começa a perder o encantamento que o seduzia até então. A cegueira providencial é a gota de tintura (temporária, diga-se de passagem, porque o Criador recuperará o fio sintagmático de sua estória) que o fará visualizar um certo princípio de densidade e dinamismo, qualidades da imaginação material dinâmica, as quais serão alcançadas a partir de A hora e vez de Augusto Matraga.

A cegueira providencial pré-anuncia as imagens dinâmicas da tintura, reveladora das verdades das profundezas. A água e o ar são matérias frágeis, substâncias fracas e passivas, que necessitam de um elemento alquímico/criativo que as elevem ao plano das emoções profundas. Assim, este novo ficcionista busca a profundidade do ar, abre a tomar ar fundo, movendo as costelas todas, sem pedir licença a ninguém; consequentemente, sua agitação íntima se fortalece ao entrar em contato com a pancada preta, que o torna cego por um longo tempo.

O Artista ouve (ou observa?) a escuridão secreta da gruta, pois está momentaneamente perturbado pelas suas descobertas de criador literário, ou seja, descobriu o poder de um mundo negro e sem forma, aquilo que os teóricos da literatura chamam de vazio criador. Para Bachelard, o choque negro "desperta emoções profundas"174. De ora em diante, ele passará a comentar seus sonhos, procurará se interiorizar cada vez mais no cerne da matéria que o inspira.

O Criador Literário do século XX recebeu o apelo das trevas; ouviu a natureza, até então apenas visualizada; descobriu que "era possível distinguir o guincho do paturi do coincho do ariri, e até dissociar as corridas das preás dos pulos das cotias"175; conseguiu ouvir o mundo desconhecido de um sertão também desconhecido.

Jamais tivera eu notícia de tanto silvo e chilro, e o mato cochichava, cheio de palavras polacas e de mil bichinhos tocando viola no oco do pau.176

Mas, sobretudo, sentiu a ameaça do por vir, ou seja, percebeu que as futuras narrativas teriam de adotar este plano desconhecido de pura treva, e os personagens teriam (também eles) de assumir uma postura de desconhecimento do final narrativo, tomando as rédeas da própria materialização, sem a onisciência do narrador.

Entretanto, por ora, graças aos elementos mágicos lineares, recupera-se diegeticamente;

Mas, estremeço, praguejo, me horrorizo. O alhúm. O odor maciço, doce-ardido, do pau-d'alho! Reconheço o tronco. Deve haver uma aroeira nova, aqui ao lado. Está. Acerto com as folhas: esmagadas nos dedos, cheiram a manga. É ela, a aroeira. Sei desta aberta fria: tem sido o ponto extremo das minhas tentativas de penetração; além daqui, nunca me aventurei nos passeios de mato a dentro.177

recusa o insólito vislumbrado através da intuição;

Então, e por caminhos tantas vezes trilhados, o instinto soube guiar-me apenas na direção do pior — para os fundões da mata, cheia de paludes de águas tapadas e de alçapões do barro comedor de pesos?!...178

reza a oração brava de São Marcos; enfrenta o ódio do Mangolô, surrando-o; recupera-se ao nível das coisas instituídas, recobrando a vista e deixando-se subjugar pela visão colorida de um mundo colorido e linear; intenso, exterior e mítico.

Na baixada, mato e campo eram concolores. No alto da colina, onde a luz andava à roda, debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um boi branco, de cauda branca. E, ao longe, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se três qualidades de azul.179

No final da narrativa, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se três qualidades de azul, que iriam adquirir qualidades inusitadas, de acordo com as futuras fases criativas do Artista transmutativo.


II.10.2 - Uma perspectiva dialética

(...) Uma teoria do conhecimento do real que se desinteressa dos valores oníricos se priva de alguns interesses que impelem ao conhecimento.180

Bachelard refere-se ao método da filosofia contemporânea, que rejeita a ciência da matéria. Critica a adoção de um único método em detrimento dos outros; fala da importância de se estar aberto a outros tipos de experiência; lamenta que espíritos lúcidos neguem "os múltiplos vislumbres formados em zonas psíquicas mais tenebrosas"181; enfim, demonstra a validade de se ocupar com os valores oníricos, pouco dialetizados pelos filósofos atuais.

Os teóricos da literatura compreendem a importância das outras ciências, para o desvelamento do texto literário. Eduardo Portela, no seu livro Teoria Literária182, observa que a teoria da literatura, apesar de se posicionar como disciplina autônoma, necessita do apoio de disciplinas como a sociologia, antropologia, história, psicologia e outras. A colaboração evidentemente é indispensável, mas somente o texto indicará os métodos a serem utilizados.

Os textos de Guimarães Rosa por exemplo impulsionam a uma abordagem filosófica. Ele foi leitor de grandes filósofos, e isto se evidencia em sua obra. Em sua ENTREVISTA a Günter Lorenz fala de seu convívio com a filosofia e de sua admiração por Unamuno; enfim, não descarta a possibilidade de se posicionar como filósofo do sertão183.

Ao atingir a segunda fase de sua trajetória literária, Guimarães Rosa penetra na intimidade de sua matéria ficcional. Por isto, o retorno de Nhô Augusto ao arraial do Murici é um poema de amor ao sertão. Ele, submetido ao seu papel de ficcionista, observa as minúcias da caminhada, por intermédio da perspectiva dialetizada já quase maravilhada, com os olhos do coração. Recorda pequeninas belezas de sua terra natal (florezinhas, abelhas trabalhadoras, miúdas árvores, minúsculas formigas); apresenta ao leitor a sua intimidade com o sertão; realça seus próprios sonhos de infância.
Bachelard é um conhecedor de palavras sonhadas:

Assinalamos que todo conhecimento da intimidade das coisas é imediatamente um poema. Como indica claramente Francis Ponge, ao trabalhar oniricamente no interior das coisas nos dirigimos à raiz sonhadora das palavras.184


O objetivo de Bachelard, ao desenvolver suas considerações filosóficas sobre a água e os sonhos, foi "tentar mostrar, por trás das imagens que se mostram, as imagens que se ocultam", ou seja, "ir à própria raiz da força imaginante"185. Para o filósofo, a raiz da força imaginante só se exterioriza por intermédio da imaginação que dá vida à causa material, das imagens que se ocultam.

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