domingo, 15 de março de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL



A imaginação que dá vida à causa formal, ao contrário, se exterioriza a partir das imagens que se mostram, em outras palavras, mediante um discurso objetivo, metonímico, significador, intelectualmente falando, dos aspectos palpáveis da natureza, mesmo os aspectos internos.

No primeiro capítulo de A terra e os devaneios do repouso, Bachelard cita Hans Carossa: "O homem é a única criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior de outra"186. Com base nesta citação, passa a desenvolver suas idéias sobre os devaneios da intimidade material. Assim ressalta que, orientado por esta vontade, a visão do homem torna-se aguçada, penetrante, detectando a passagem para a descoberta do que se oculta nas coisas. Para ele, esta vontade não propicia ver realmente; apenas permite formar estranhos devaneios tensos.

Guimarães Rosa, a partir de A hora e vez de Augusto Matraga, procurou olhar o sertão de sua infância com os olhos da recordação, ressaltando os aspectos ocultos do lugar, resgatando o além do vivenciado, com a ajuda dos devaneios poéticos, aliados à ficção.

Evidentemente, nesta primeira fase ficcional, não se aprofunda nos devaneios da intimidade material, porque se encontra submetido aos dogmas das experiências comunitárias, norteadoras de seu aprendizado sertanejo. Mesmo assim, começou, servindo-se de uma linguagem primitiva, a remexer uma camada singela da terra sertaneja, revelando-a, detectando pequenos detalhes, que geralmente passam despercebidos a um olhar casual. Nesse estágio, faz um burrinho velho entrar triunfalmente no mundo da reprodução ficcional. É o início da re-descoberta e do envolvimento sentimental com um espaço visto muitas vezes no passado, voltando à cena por intermédio de fragmentos da memória, das lembranças do que foi bem visto, e que será posteriormente bem sonhado.

Contando a estória do burrinho, revela o poder encantatório das palavras, desfiando os nomes pelos quais são conhecidas as diversas raças de bois no sertão. Reproduz, assim, a criatividade do homem sertanejo, a sua riqueza vocabular, ultrapassando os limites da língua socialmente imposta. Este início (Sagarana) é realmente um detectar superficial do sertão, mas posteriormente ele obriga o leitor a repensar o princípio do ato de ver, pelo prisma da perspectiva dialética, o que levará à visão em profundidade das fases seguintes.

O desejo de uma futura transposição da crosta do sertão inicia-se a partir de A hora e vez de Augusto Matraga. Daí em diante, o Artista passa a revolver a terra sertaneja (incluindo Grande Sertão: Veredas), posteriormente penetra-a de maneira mais íntima, sob o predomínio do elemento ar, nas narrativas da coletânea Primeiras estórias, para apresentar na última fase um espaço ilimitado, submetido a um discurso insólito e emaranhado.

A partir da narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, dialetiza o sertão, transforma-o em objeto, coloca-se em seu interior, por meio do devaneio possessivo. Em Grande Sertão: Veredas, apodera-se de sua matéria ficcional, ainda dialetizando-a, mas também engrandecendo-a e, na fase final, transforma e recria a própria criação, sob os incitamentos da imaginação material dinâmica, sem limites visíveis.


A hora e vez de Augusto Matraga exemplifica o primeiro momento de passagem para o segundo cogito, notadamente dialético: o pequeno sertão da infância começa seu processo de grandeza para o âmbito da universalidade. Nessa fase, o Artista miniaturiza o sertão, para penetrar nele, questioná-lo, transformá-lo. O fato de miniaturizá-lo não o diminui. Bachelard, citando Max Jacob, ressalta: "O minúsculo é enorme, basta ir em imaginação habitá-lo"187.

Para que houvesse essa passagem, fez seu narrador romper com a perspectiva anulada das narrativas iniciais de Sagarana, que ressaltava apenas os aspectos exteriores do sertão e tolhia "toda a curiosidade voltada para o interior das coisas"188. Depois da cisão, passa a desenvolver pensamentos questionadores e a satisfazer sua profunda curiosidade em relação às minúcias ocultas de um lugar até então, socialmente, pouco admirado. O Artista sonha, a partir desta mudança, o sertão regional de sua infância, procurando descobrir o processo que o transformará num espaço diferente, visto ainda pelo ângulo da perspectiva dialética associada à perspectiva maravilhada (Grande Sertão: Veredas) e, posteriormente, recria um novo espaço, captado pelo ângulo da perspectiva de intensidade substancial infinita189, espaço este encontrado em todas as narrativas sonhadas a partir de Primeiras estórias, livro cujo título impõe a pensar e repensar a questão.

Retomando o que foi dito até aqui, em sua primeira fase (Sagarana), o Artista se encanta com a descoberta do sertão, realçando ficcionalmente apenas imagens superficiais. Isto acontece, porque se encontra submetido aos sonhos profundos, "onde germinam virtudes de origem"190; encontra-se no "centro da noite", sob a inspiração apenas do relaxamento dos olhos. Sonha o sertão da infância, vai ao centro de suas próprias recordações em movimentos circulares, retirando de lá sua própria segurança psíquica, para enfrentar os inesperados da modernidade. As narrativas de Sagarana, com a exceção de A hora e vez de Augusto Matraga, são o momento da busca do sertão minúsculo, em seu sentido geográfico. Este é ainda um espaço estreito e limitado, porque foi concebido sob as ordens do discurso linear, ligado aos sonhos fechados e circulares do sono profundo. Assim, reafirmando o que foi dito, A hora e vez de Augusto Matraga é o momento do sertão miniaturizado, diferente da idéia de minúsculo como espaço estreito.

Liberto dos mundos longínquos, das experiências telescópicas, devolvido pela noite íntima e concentrada a uma existência primitiva, o homem em seu sono profundo reencontra o espaço carnal formador. Tem os mesmos sonhos de seus órgãos: seu corpo vive na simplicidade dos germes espaciais reparadores, com vontade de restaurar as formas fundamentais.191

O Artista da primeira fase reencontra seu espaço carnal formador graças à intevenção das lembranças profundas (sonhos profundos); cada personagem e cada coisa representando uma partícula de seu eu sertanejo. Assim, traz à luz "raízes, vermes, bichinhos"192, pássaros, sementinhas, mariposas, sapos, destacando o plano das imagens formais e sentimentais, confortavelmente instalado em seus sonhos seguros e repousantes.

Mas há um momento de aguda reflexão: que sertão é este que agora povoa seus sonhos com seres imaginários? É realmente o pequeno lugar da infância? "Os fenômenos do infinitamente pequeno assumem um aspecto cósmico"193. A hora e vez de Augusto Matraga é o marco dessa fase dialética, em que o sertão miniaturizado alcança uma grandeza diferente. Rompendo com a perspectiva anulada, marca principal das narrativas de Sagarana, repensa o princípio do ato de ver, desenvolvendo questionamentos e reflexões; aberto à curiosidade de entender e alcançar o interior da matéria. Dialetizando o seu próprio ato de ver e criar o mundo sertanejo, passa também a remexer a terra, ainda fofa, do sertão.

Por meio da perspectiva dialética, transpõe os limites visíveis de sua matéria ficcional, miniaturizando-a, olhando os tesouros de sua intimidade, apoderando-se daquele espaço, amparado pelo poder da imaginação questionadora. Consequentemente, faz o personagem Augusto sonhar com um "deus valentão", astucioso, "que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindo tudo"194, porque será a partir de então que o seu narrador terá condições de mudar os rumos da narrativa, sob a imposição de seu próprio ato de criar.


A narrativa se modifica também graças ao elemento fogo, como marca de mudança irreversível, e à "dialética do externo e interno"195 de que fala Bachelard e assim visualiza-se o narrador se contagiando pelas minúcias do sertão, mas que na verdade são os devaneios íntimos do Criador, os fragmentos de suas lembranças, buscando recuperar os pequenos detalhes de um lugar do passado, detalhes irrecuperáveis ao nível substancial.

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