NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
A imaginação
que dá vida à causa formal, ao contrário, se exterioriza a partir das imagens
que se mostram, em outras palavras, mediante um discurso objetivo, metonímico,
significador, intelectualmente falando, dos aspectos palpáveis da natureza, mesmo os aspectos internos.
No primeiro
capítulo de A terra e os devaneios do repouso,
Bachelard cita Hans Carossa: "O homem é a única criatura da terra que tem
vontade de olhar para o interior de outra"186. Com base nesta citação, passa a
desenvolver suas idéias sobre os devaneios da intimidade material. Assim
ressalta que, orientado por esta vontade, a visão do homem torna-se aguçada,
penetrante, detectando a passagem para a descoberta do que se oculta nas
coisas. Para ele, esta vontade não propicia ver realmente; apenas permite
formar estranhos devaneios tensos.
Guimarães Rosa,
a partir de A hora e vez de Augusto Matraga,
procurou olhar o sertão de sua infância com os olhos da recordação, ressaltando
os aspectos ocultos do lugar, resgatando o além
do vivenciado, com a ajuda dos devaneios poéticos, aliados à ficção.
Evidentemente,
nesta primeira fase ficcional, não se aprofunda nos devaneios da intimidade
material, porque se encontra submetido aos dogmas das experiências
comunitárias, norteadoras de seu aprendizado sertanejo. Mesmo assim, começou,
servindo-se de uma linguagem primitiva, a remexer
uma camada singela da terra sertaneja, revelando-a, detectando pequenos
detalhes, que geralmente passam despercebidos a um olhar casual. Nesse estágio,
faz um burrinho velho entrar triunfalmente no mundo da reprodução ficcional. É o início da re-descoberta e do envolvimento
sentimental com um espaço visto muitas vezes no passado, voltando à cena por
intermédio de fragmentos da memória, das lembranças do que foi bem visto, e que será posteriormente bem sonhado.
Contando a
estória do burrinho, revela o poder encantatório das palavras, desfiando os
nomes pelos quais são conhecidas as diversas raças de bois no sertão. Reproduz,
assim, a criatividade do homem sertanejo, a sua riqueza vocabular,
ultrapassando os limites da língua socialmente imposta. Este início (Sagarana) é realmente um
detectar superficial do sertão, mas posteriormente ele obriga o leitor a repensar
o princípio do ato de ver, pelo
prisma da perspectiva dialética, o que levará à visão em profundidade das fases seguintes.
O desejo de uma
futura transposição da crosta do sertão
inicia-se a partir de A hora
e vez de Augusto Matraga. Daí em diante, o Artista passa a revolver a terra sertaneja (incluindo Grande Sertão: Veredas),
posteriormente penetra-a de maneira mais íntima, sob o predomínio do elemento
ar, nas narrativas da coletânea Primeiras estórias,
para apresentar na última fase um espaço ilimitado, submetido a um discurso
insólito e emaranhado.
A partir da
narrativa A hora e vez de Augusto Matraga,
dialetiza o sertão, transforma-o em objeto, coloca-se em seu interior, por meio
do devaneio possessivo. Em Grande
Sertão: Veredas, apodera-se de sua matéria ficcional, ainda
dialetizando-a, mas também engrandecendo-a e, na fase final, transforma e
recria a própria criação, sob os incitamentos da imaginação material dinâmica,
sem limites visíveis.
A hora e vez de Augusto Matraga
exemplifica o primeiro momento de passagem para o segundo cogito, notadamente
dialético: o pequeno sertão da infância começa seu processo de grandeza para o
âmbito da universalidade. Nessa fase, o Artista miniaturiza o sertão, para
penetrar nele, questioná-lo, transformá-lo. O fato de miniaturizá-lo não o
diminui. Bachelard, citando Max Jacob, ressalta: "O minúsculo é enorme,
basta ir em imaginação habitá-lo"187.
Para que
houvesse essa passagem, fez seu narrador romper com a perspectiva anulada das narrativas iniciais de Sagarana,
que ressaltava apenas os aspectos exteriores do sertão e tolhia "toda a
curiosidade voltada para o interior das coisas"188. Depois da cisão, passa a
desenvolver pensamentos questionadores e a satisfazer sua profunda curiosidade
em relação às minúcias ocultas de um lugar até então, socialmente, pouco
admirado. O Artista sonha, a partir
desta mudança, o sertão regional de sua infância, procurando descobrir o
processo que o transformará num espaço diferente, visto ainda pelo ângulo da perspectiva dialética associada à perspectiva maravilhada (Grande Sertão: Veredas) e,
posteriormente, recria um novo espaço, captado pelo ângulo da perspectiva de intensidade substancial
infinita189,
espaço este encontrado em todas as narrativas sonhadas a partir de Primeiras
estórias, livro cujo título impõe a pensar e repensar a questão.
Retomando o que
foi dito até aqui, em sua primeira fase (Sagarana),
o Artista se encanta com a descoberta do sertão, realçando ficcionalmente
apenas imagens superficiais. Isto acontece, porque se encontra submetido aos
sonhos profundos, "onde germinam virtudes de origem"190;
encontra-se no "centro da noite", sob a inspiração apenas do
relaxamento dos olhos. Sonha o sertão da infância, vai ao centro de suas
próprias recordações em movimentos circulares, retirando de lá sua própria
segurança psíquica, para enfrentar os inesperados
da modernidade. As narrativas de Sagarana,
com a exceção de A hora e vez de Augusto Matraga,
são o momento da busca do sertão minúsculo, em seu sentido geográfico. Este é
ainda um espaço estreito e limitado, porque foi concebido sob as ordens do
discurso linear, ligado aos sonhos fechados e circulares do sono profundo. Assim, reafirmando o que
foi dito, A hora e vez de Augusto
Matraga é o momento do sertão miniaturizado, diferente da idéia
de minúsculo como espaço estreito.
Liberto dos
mundos longínquos, das experiências telescópicas, devolvido pela noite íntima e
concentrada a uma existência primitiva, o homem em seu sono profundo reencontra
o espaço carnal formador. Tem os mesmos sonhos de seus órgãos: seu corpo vive
na simplicidade dos germes espaciais reparadores, com vontade de restaurar as
formas fundamentais.191
O Artista da
primeira fase reencontra seu espaço
carnal formador graças à intevenção das lembranças profundas (sonhos
profundos); cada personagem e cada coisa representando uma partícula de seu eu
sertanejo. Assim, traz à luz "raízes, vermes, bichinhos"192, pássaros,
sementinhas, mariposas, sapos, destacando o plano das imagens formais e sentimentais, confortavelmente instalado em seus
sonhos seguros e repousantes.
Mas há um
momento de aguda reflexão: que sertão é este que agora povoa seus sonhos com
seres imaginários? É realmente o pequeno lugar da infância? "Os fenômenos
do infinitamente pequeno assumem um aspecto cósmico"193. A hora e vez de Augusto Matraga
é o marco dessa fase dialética, em
que o sertão miniaturizado alcança uma grandeza diferente. Rompendo com a
perspectiva anulada, marca principal das narrativas de Sagarana,
repensa o princípio do ato de ver,
desenvolvendo questionamentos e reflexões; aberto à curiosidade de entender e
alcançar o interior da matéria.
Dialetizando o seu próprio ato de ver
e criar o mundo sertanejo, passa
também a remexer a terra, ainda fofa,
do sertão.
Por meio da perspectiva
dialética, transpõe os limites visíveis de sua matéria ficcional,
miniaturizando-a, olhando os tesouros de sua intimidade, apoderando-se daquele
espaço, amparado pelo poder da imaginação questionadora. Consequentemente, faz
o personagem Augusto sonhar com um "deus valentão", astucioso,
"que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindo tudo"194, porque
será a partir de então que o seu narrador terá condições de mudar os rumos da
narrativa, sob a imposição de seu próprio ato de criar.
A narrativa se modifica
também graças ao elemento fogo, como marca de mudança irreversível, e à
"dialética do externo e interno"195 de que fala Bachelard e assim visualiza-se o
narrador se contagiando pelas minúcias do sertão, mas que na verdade são os
devaneios íntimos do Criador, os fragmentos de suas lembranças, buscando
recuperar os pequenos detalhes de um lugar do passado, detalhes irrecuperáveis
ao nível substancial.
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