NATUREZA
MORTA
Rogel
Samuel
De Walmir Ayala um poema, intitulado
«Estação», que sempre relembro, quando vou à cozinha.
Ayala, poeta excelente, não sei por que
esquecido.
Na
geladeira as frutas
escurecem
de mortas
O quadro ele começa. A geladeira das frutas. Mortas. Geladas. Frutas.
Personalizadas. Com o matiz erótico que caracteriza a poesia dele. Frutas
mortas, natureza morta, alma morta,
amor morto. Na mesa da geleira, deste Himalaya morto, neste Instituto
Médico Legal da autópsia do pomar.
as
peras são secretas
usinas
de água doce,
-
dentro das peras o que está senão sua secreção, a suculenta feminidade, sua
pose de ovário e úvula, a complexidade singela, aquela sua capacidade de
oferta, de entrega, de lamúria, as águas mortas, internas, os entraves pântanos
doces das almas das mais líquidas partes da natureza do amor, das estivais
qualidades da natureza das carícias do corpo úmido, dos corpos entregues a si
mesmos, que é quando são partes do mais tátil amor que se dá às mãos que deles
fazem seus prazeres e mergulhos, nos gozos internos e usos, no segredo do maior
e cavernoso introduzir hipodérmico da sua capacidade de sentir e de pulsar. Que
é? A água doce do amor, a usina do impulso amoroso. São os líquidos doces,
langorosos, das umidades humanas.
um
mamão decepado
mostra
a íntima carne
O mamão, macho, o masculino mamão,
castrado porém, digo, amputado, calado, prostrado, exibindo entranhas
estranhas, carne devastada, intimidade
devassada.
O
mamão, porte de guilhotinado em bastilhas vasilhas das sobremesas - mamão
revolução do estraçalhado. Mamão carne vegetal gengiva mole e aberta.
e
as goiabas oloram
seu
verão serenado.
O cheiro das goiabas, o perfume do verão
no inverno do refrigerador, em antífrase feliz as perfumadas açucaradas e
brandas goiabas. O verão olorizado de sereníssimo repouso. Oferecidas ao seu
saboroso cheiro do pomar tropical.
Mas
são mortas e lentas
neste
ofertório as frutas.
Oh, está morto, tudo está congeladamente
morto, com frieza mortal da morte lenta, da morte eterna, mumificada, gelada,
branca, da porta aberta esta geleira tumular, este himalaia ofertório poético.
Um
vapor congelado
contorna
seu mistério.
Envoltas
no nevoeiro, envoltas no seu mistério frio, branco, hospitalizado, as
obscurecidas frutas medicalizadas, no branco arrepio da poesia misteriosa, do
mistério da poesia...
E
elas posam no ardor
do
branco cemitério
de
seu grave pomar.
Fotógrafo,
o poeta Ayala abre, no seu cemitério doméstico e culinário, a escrita de seu
receituário de forno e fogão, na gravitação
polar de sua tematização estival (e não outonal). No seu bosque
enclausurado.
E a
geladeira inventa
surdo
primaverar.
Em outro poema, no AQUÁRIO ACESO, os
peixes dormem, no suspensório de seus sonhos:
Os
peixes submersos dormem
Nadando
um sonho enorme
- o
aquário é breve e claro,
com
selvas silenciosas
que
o todo-poderoso
nutre
de grão e larva.
A poesia-aquário tem seu conteúdo em
peixes que nadam sem acordar, sem perturbar, entre árvores silenciosas e águas
selvagens, eternizados pela luminosidade da escrita do todo-poderoso deus que o
escreve e nutre de grão e larva, Ayala pesca na profundidade de si mesmo um
labirinto de significação e submersão de tentáculos poéticos onde se move como
um polvo.
No
entanto os peixes dormem.
Qualquer
tremor das águas
e
nadam aclarados
sonhando-se
acordados
sonhando-se
acordados.
E
o leitor se enreda, se embriaga, sonha. Sonha dentro deste aquário verbal.
Treme nessas águas de cristal líquido, o leitor sonha que lê, o poeta sonha-se
lido, aclarado, viagem e volta ao íntimo gozo de seu interminável passeio.
No seu POMAR ABERTO, erótico, encontra entre as
árvores do bosque o objeto de seu amor, o impossível de sua gestualidade
desejante, o desconhecido toque de musa, o paraíso pomar de pomos de ouro e
luar e perfume do ar, as suculentas frutas, a poesia de Ayala reflete sempre o
domínio do delírio paradisíaco perdido, o coro de laranjais em adágio.
Teu
doloroso cheiro de laranjas
inventa
este pomar que me embriaga
No prazer doloroso pomar em que se perde ele cria um
labirinto embriagante cheio de sucos de invenção poética. As vespas de fogo
rasgam a luz da venenosa atmosfera de seu ferrão, o luar do amor abre no peito a rosa amarga do gemido gozo e o
desenho do rosto grego, da estátua em pedra que não está mais para estátua
eterna e solitária, mas para frutas do verão da geladeira, mortas. Um paraíso
tropical em pomos de ouro a transportar, a ler.
há
vespas inflamadas e um luar
enclausura
em teu peito a rosa amarga
deste
gemido em que és como o desenho
de
um rosto antigo, de um sorriso em pedra
(eterno
e solitário).
Estranho gemido do amoroso langor do gozo que enfim
o sorriso corta como a lâmina de faca, como os fios da noite.
Este
sorriso que de repente no silêncio medra
e
corta os fios da noite em que viajo
para
os sempres de mim, tão decididos:
então
nos laranjais escuto o adágio,
e o
coração que ocultas é sonoro
como
a ilha do amor em que me perco
e
onde me salvo, e para sempre choro.
Sim, o amor na sua poesia é Ilha, lá onde se salva o
que se perde, e onde se perde o que se salva, e onde pela contínua solidão como
sempre chora.
Porque o amor é natureza morta.
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