segunda-feira, 2 de março de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL



Hora de missa, não havia pessoa esperando audiência, e João Mangolô, que estava à porta, como de sempre sorriu para mim. Preto, pixaim alto, branco-amarelado; banguela; horrendo.
— Ó Mangolô!
— Senh'us'Cristo, Sinhô!
— Pensei que você era uma cabiúna de queimada...
— Isso é graça de Sinhô...
— ... com um balaio de rama de mocó, por cima! ...
— Ixe!
— Você deve conhecer o mandamento do negro ... Não sabe? "Primeiro: todo negro é cachaceiro..."
— Ôi, ôi!...
— "Segundo: todo negro é vagabundo".
— Virgem!
— "Terceiro: todo negro é feiticeiro..."

Aí, espetado em sua dor-de-dentes, ele passou do riso bobo à carranca de ódio, resmungou, se encolheu para dentro, como um caramujo à cocléia, e ainda bateu com a porta.
— Ó Mangolô: "negro na festa, pau na testa!..." 58

Para entrar na gruta, território exclusivo do sagrado, é preciso ultrapassar os limites do profano. Mas a gruta e suas imagens ainda pertencem ao plano da história, do linear, do sintagmático, do metonímico. É indispensável, antes, conhecer este plano intimamente para, no futuro, alcançar o plano reto de direções preferidas: vertical, paradigmático, metafórico, de imagens maiores. A zombaria produz efeito: o ódio do feiticeiro está a caminho, com todo o seu potencial mágico.

O meu caminho, desce, contornando as moitas de assa-peixe e do unha-de-boi — esplêndido, com flores de imensas pétalas brancas, e folhas hisurtas, refulgindo. No chão, o joá-bravo defende, com excessos de espinhos seus reles amarelos frutos. (...) Entro na capoeira baixa... Saio do capoeirão alto. E acolá, em paliçadas compactas, formando arruamentos, arborecem os bambús. (...) Bem perto que está o bosquete, eu me entorto de curiosidade, mas vai ser a última etapa: apenas na hora de ir-me embora é que passarei para ver os meus bambús. Meus? Nossos... Porque eles são a base de uma sub-estória, ainda incompleta.159

Os bambus são a base de uma sub-estória que, por enquanto, flutua no mundo da intuição. Esta sub-estória é o primeiro passo da caminhada em direção à criação de um sertão imaginado (mundo labiríntico) que transcenderá na fase seguinte as limitações do claramente instituído. Esta sub-estória (pequena narrativa de três páginas: do último parágrafo da p. 236 ao penúltimo parágrafo da p. 240, op. cit.) é uma prova do início da maneira ativa de buscar o plano da Arte, ou seja, de buscar um mundo diferente, paradigmático, a partir do simplesmente intuído.

Mas a narrativa "São Marcos" ainda está ligada aos aspectos visuais da realidade. O mérito do narrador, no momento, é utilizar a audição como forma de seduzir o leitor. O ato de ouvir só será possível com a temporária anulação do ato de ver. A zombaria provocará o castigo e a conseqüente cegueira do narrador. A descrição de uma natureza exuberante continuará até o momento crucial da temporária perda de visão. A descrição pré-anuncia o impacto da conscientização de um mundo escuro, provedor de uma atividade subterrânea, atividade esta ligada ao plano espiritual, beneficiando-se de uma mana imaginária.

Nesta fase de transição narrativa, o narrador se vale dessa mana imaginária, servindo-se da vingança do preto feiticeiro. O narrador, alter ego do Artista moderno, provocou a vingança do personagem, idealizou esta vingança, para resgatar os espíritos do bosque que o atrai. As forças sobrenaturais da mandinga de João Mangolô se apossam do narrador (narrador: sujeito e personagem ao mesmo tempo; ser multifacetado, indefinível, transitando demiurgicamente entre o real, a fantasia e a criação), obrigam-no a incorporar os espíritos da floresta, para posteriormente (narrativas adiante) induzi-lo a dialetizar essas substâncias que se interligam e direcionar a própria criatividade.

O ato de descrever a natureza realmente sustenta o impacto do castigo; a morosidade do tempo também contribui para o realce do futuro acontecimento.

Corre o tempo.

A lagoa está toda florida e nevada de penugens usadas que os patos põem fora. E lá está o joão-grande, contemplativo, no modo em que eu aqui estou, sob a minha corticeira de flores de crista-de-galo e coral. Só que eu acendo outro cigarro, por causa dos mil mosquitos, que são corjas de demônios mirins.

Do mais do povinho miúdo, por enquanto, apenas o eterno cortejo de saúvas, que vão sob as folhas secas, levando bandeiras de pedacinhos de folhas verdes, e já resolveram todos os problemas do trânsito. (...) Como será o deus das formigas? Suponho-o terrível. Terrível como os que o louvam... E isso é também com o louva-a-deus (...). E assim também o tempo foi indo — nada de novo no rabo da lagoa, e aqui em terra firme muito menos — e chegou um momento sonolento, em que me encostei para dormir. Fiquei meio deitado de lado. Passou ainda uma borboleta de páginas ilustradas, oscilando no vôo puladinho e entrecortado das borboletas; mas se sumiu, logo, na orla das turumãs e os sem-sol dos galhos. Mas a brisa arageava, movendo mesmo aqui em baixo as carapinhas dos capins e as mãos de sombra. E o mulungu rei derribava flores suas na relva, como se atiram fichas ao feltro numa mesa de jogo.
Paz.160

O Artista Ficcional (Ficção-Arte) do século XX prepara o impacto de uma nova descoberta narrativa: seu narrador ouvirá os rumores da natureza ao invés de descrevê-la. O bosquete fechado (a gruta, o útero, o espaço primitivo) resguarda os sons profundos que nascem da imaginação transmutadora. Agora, o narrador ouvirá e alcançará aquilo que os olhos não visualizam, uma vez que o ouvido só alcança o rumor do silêncio, se o sensitivo estiver envolto em profunda escuridão. O narrador está prestes a receber as mensagens do silêncio:

E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau — um ponto, um grão, um besouro, um anú, um urubú, um golpe de noite... E escureceu tudo.

Nem houve a qualquer coisa que de regra se conserva sob as pálpebras, quando uma pessoa fecha os olhos: poento alumbramento róseo, de dia; tênue tecido alaranjado, passando em fundo preto, de noite, à luz. Mesmo no escuro de um fogo que se apaga, remanescem seus vestígios, uma vaga via-láctea a escorrer; mas, no meu caso, nada havia. Era a treva, pesando e comprimindo, absoluta.161

A coisa se deu de repente e o narrador consegue significar este momento com rara sensibilidade: a cegueira brilhantemente simbolizada por uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau. No primeiro momento, impacto inicial, apenas um ponto preto; no segundo instante, um pequeno grão preto, um pouco maior que um ponto; no terceiro, um besouro preto, maior que um grão; um anú preto, maior que um besouro; um urubú; e, por último, um golpe de noite.

O narrador busca dar forma aos seus devaneios de intimidade sobre o sertão. "São Marcos" é um somatório das perspectivas que sustentam os devaneios do repouso (a anulada, característica do discurso-reportagem; a dialética, Como será o deus das formigas?; e a maravilhada, figuras coloridas), já em vias de ultrapassar os próprios limites e alcançar os devaneios da vontade, devaneios infinitos de uma riqueza infinita. Agora, prestes a penetrar no mundo fechado, na treva absoluta, precisa readquirir o domínio do que o envolve, para que possa sentir e reproduzir as próprias sensações.

Era a treva, pesando e comprimindo, absoluta. Como se eu tivesse preso no compacto de uma montanha, ou se muralha de fuligem prolongasse o meu corpo. Pior do que uma câmara-escura Ainda pior do que o último salão de uma gruta, com os archotes mortos. (...) Devo ter perdido mais de um minuto, estuporado. Soergui-me. Tonteei. Apalpei o chão. Passei os dedos pelos olhos; repuxei a pele — para cima, para baixo, nas comissuras — e nada! Então, pensei em um eclipse totalitário, em cataclismos, no fim do mundo.162

Neste trecho, observa-se uma nítida mudança de discurso. Surge a descoberta de novas possibilidades de narrativa. As figuras coloridas da narrativa linear darão lugar aos devaneios infinitos de quem ouve e sente ao invés de olhar. Porque, mesmo no escuro e sozinho, o narrador continuou ouvindo "a debulha de trilos dos pássaros: o patativo, cantando clássico na borda da mata; mais longe, as pombas cinzentas, guaiando soluços"163. O narrador não vê, mas sente, ouve e nomeia a cor da pomba (pomba cinzenta); as imagens dinâmicas não reproduzem a coloração vibrante das imagens do repouso. Se não há mais possibilidade de mostrar a beleza exterior do patativo, faz-se necessário apreender a característica clássica de seu canto; o canto do patativo lembra, portanto, as peças musicais da estética clássica. Os devaneios do Artista Literário do século XX que se encontra no escuro (no plano do vazio criador) ressaltam o poder misterioso e contínuo dos fluidos anímicos, os quais se apoderam do Criador ao reconhecer a Poesia (essência), que vigora no espaço da matéria amorfa, ainda não-nomeada. É lícito, portanto, que o narrador, ao se ver sem visão, pense em fim do mundo. Realmente, é o fim do mundo ordenado e o começo de um novo mundo, sem fronteiras estabelecidas.

E, aqui ao lado, um araçari, que não musica: ensaia e reensaia discursos irônicos, que vai taquigrafando com esmero, de ponta de bico na casca da árvore, o pica-pau chanchã. E esse eu estava adivinhando: rubro-verde, vertical, topetudo, grimpando pelo tronco da imbaúba, escorando-se na ponta do rabo também. Taquigrafa, sim, mas, para tempo não perder, vai comendo outrossim as formiguinhas tarús, que saem dos entrenós da imbaúba, aturdidas pelo rataplã.164

Os adivinhos são aqueles a que se atribuem faculdades divinatórias: o demiurgo começa a materializar-se, começa a negar criativamente as anteriores narrativas, afirmando a agitação íntima que de ora em diante passará a dominá-lo.

O princípio dialetizante, que o fez indagar como seria o deus das formigas, mostra-lhe o caminho para o formigueiro (repouso ativado, pensamentos que fervilham), o caminho que o levará a contradizer o mundo das aparências, para penetrar no mundo da pura essência. Um novo mundo, original, primitivo, singular, está em estado de formação. As discórdias íntimas do Artista moderno (nesta narrativa já em fase de transição para a pós-modernidade) impõem novas formas de apreensão do narrado. O Artista está contra seus princípios de vida e exige punição para seu ato pecaminoso: ele precisou zombar do mito, para que o mito o cegasse e, com isto, libertar-se das ideologias instituídas.

A imaginação aborda uma ontologia da luta em que o ser se formula em um contra-ser, totalizando o algoz e a vítima, um algoz que não tem tempo de saciar-se em seu sadismo, uma vítima a quem não se deixa comprazer-se em seu masoquismo. O repouso é negado para sempre. A própria matéria não tem direito a isso. Afirma-se a agitação íntima. O ser que segue tais imagens conhece então um estado dinâmico que é inseparável da embriaguez: é agitação pura. É formigueiro puro.165


A imaginação criadora (aquela que sabe reconhecer os valores da solidão) aborda o ser em luta consigo mesmo. A face demiúrgica do ficcionista de estórias do sertão se rebela contra as imposições substanciais que o acrisolam em conceitos pré-estabelecidos. A ontologia da luta denuncia esta guerra íntima, na qual o Artista Literário do século XX é algoz e vítima ao mesmo tempo. O personagem João Mangolô foi induzido pelo próprio narrador (alter ego) a aplicar-lhe o feitiço que o tornaria cego. O narrador planejou (linearmente) cada detalhe da vingança do feiticeiro; apenas, não estava ainda preparado para dominar as conseqüências dramáticas da escuridão (plano da pura intuição), e viu-se obrigado a deixar-se levar pela desorientação discursiva, característica central dos narradores modernos (W. Benjamim).

http://teseneuzamachado.blogspot.com.br/

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