NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
Hora de missa,
não havia pessoa esperando audiência, e João Mangolô, que estava à porta, como
de sempre sorriu para mim. Preto, pixaim alto, branco-amarelado; banguela;
horrendo.
— Ó Mangolô!
—
Senh'us'Cristo, Sinhô!
— Pensei que
você era uma cabiúna de queimada...
— Isso é graça
de Sinhô...
— ... com um
balaio de rama de mocó, por cima! ...
— Ixe!
— Você deve
conhecer o mandamento do negro ... Não sabe? "Primeiro: todo negro é
cachaceiro..."
— Ôi, ôi!...
—
"Segundo: todo negro é vagabundo".
— Virgem!
—
"Terceiro: todo negro é feiticeiro..."
Aí, espetado em
sua dor-de-dentes, ele passou do riso bobo à carranca de ódio, resmungou, se
encolheu para dentro, como um caramujo à cocléia, e ainda bateu com a porta.
— Ó Mangolô:
"negro na festa, pau na testa!..." 58
Para
entrar na gruta, território exclusivo do sagrado, é preciso ultrapassar os
limites do profano. Mas a gruta e suas imagens ainda pertencem ao plano da
história, do linear, do sintagmático, do metonímico. É indispensável, antes,
conhecer este plano intimamente para, no futuro, alcançar o plano reto de
direções preferidas: vertical, paradigmático, metafórico, de imagens maiores. A
zombaria produz efeito: o ódio do feiticeiro está a caminho, com todo o seu
potencial mágico.
O meu caminho,
desce, contornando as moitas de assa-peixe e do unha-de-boi — esplêndido, com
flores de imensas pétalas brancas, e folhas hisurtas, refulgindo. No chão, o
joá-bravo defende, com excessos de espinhos seus reles amarelos frutos. (...)
Entro na capoeira baixa... Saio do capoeirão alto. E acolá, em paliçadas
compactas, formando arruamentos, arborecem os bambús. (...) Bem perto que está
o bosquete, eu me entorto de curiosidade, mas vai ser a última etapa: apenas na
hora de ir-me embora é que passarei para ver os meus bambús. Meus? Nossos...
Porque eles são a base de uma sub-estória, ainda incompleta.159
Os bambus são a
base de uma sub-estória que, por enquanto, flutua
no mundo da intuição. Esta sub-estória é o primeiro passo da caminhada em
direção à criação de um sertão imaginado (mundo labiríntico) que transcenderá
na fase seguinte as limitações do claramente instituído. Esta sub-estória
(pequena narrativa de três páginas: do último parágrafo da p. 236 ao penúltimo
parágrafo da p. 240, op. cit.) é uma prova do início da maneira ativa de buscar
o plano da Arte, ou seja, de buscar um mundo diferente, paradigmático, a partir
do simplesmente intuído.
Mas a narrativa
"São Marcos" ainda está ligada aos aspectos visuais da realidade. O
mérito do narrador, no momento, é utilizar a audição como forma de seduzir o leitor. O ato de ouvir só será
possível com a temporária anulação do ato de ver. A zombaria provocará o
castigo e a conseqüente cegueira do
narrador. A descrição de uma natureza exuberante continuará até o momento
crucial da temporária perda de visão. A descrição pré-anuncia o impacto da
conscientização de um mundo escuro,
provedor de uma atividade subterrânea,
atividade esta ligada ao plano espiritual, beneficiando-se de uma mana imaginária.
Nesta fase de
transição narrativa, o narrador se vale dessa mana imaginária, servindo-se da vingança do preto feiticeiro. O
narrador, alter ego do Artista moderno, provocou a vingança do personagem,
idealizou esta vingança, para resgatar os espíritos do bosque que o atrai. As
forças sobrenaturais da mandinga de João Mangolô se apossam do narrador
(narrador: sujeito e personagem ao mesmo tempo; ser multifacetado, indefinível,
transitando demiurgicamente entre o real, a fantasia e a criação), obrigam-no a
incorporar os espíritos da floresta,
para posteriormente (narrativas adiante) induzi-lo a dialetizar essas
substâncias que se interligam e direcionar a própria criatividade.
O ato de
descrever a natureza realmente sustenta o impacto do castigo; a morosidade do tempo também contribui para o realce do
futuro acontecimento.
Corre o tempo.
A lagoa está
toda florida e nevada de penugens usadas que os patos põem fora. E lá está o
joão-grande, contemplativo, no modo em que eu aqui estou, sob a minha
corticeira de flores de crista-de-galo e coral. Só que eu acendo outro cigarro,
por causa dos mil mosquitos, que são corjas de demônios mirins.
Do mais do
povinho miúdo, por enquanto, apenas o eterno cortejo de saúvas, que vão sob as
folhas secas, levando bandeiras de pedacinhos de folhas verdes, e já resolveram
todos os problemas do trânsito. (...) Como será o deus das formigas? Suponho-o
terrível. Terrível como os que o louvam... E isso é também com o louva-a-deus
(...). E assim também o tempo foi indo — nada de novo no rabo da lagoa, e aqui
em terra firme muito menos — e chegou um momento sonolento, em que me encostei
para dormir. Fiquei meio deitado de lado. Passou ainda uma borboleta de páginas
ilustradas, oscilando no vôo puladinho e entrecortado das borboletas; mas se
sumiu, logo, na orla das turumãs e os sem-sol dos galhos. Mas a brisa arageava,
movendo mesmo aqui em baixo as carapinhas dos capins e as mãos de sombra. E o
mulungu rei derribava flores suas na relva, como se atiram fichas ao feltro
numa mesa de jogo.
Paz.160
O Artista
Ficcional (Ficção-Arte) do século XX prepara o impacto de uma nova descoberta
narrativa: seu narrador ouvirá os
rumores da natureza ao invés de descrevê-la. O bosquete fechado (a gruta, o
útero, o espaço primitivo) resguarda os sons profundos que nascem da imaginação
transmutadora. Agora, o narrador ouvirá e alcançará aquilo que os olhos não
visualizam, uma vez que o ouvido só alcança o rumor do silêncio, se o sensitivo
estiver envolto em profunda escuridão. O narrador está prestes a receber as
mensagens do silêncio:
E, pois, foi aí
que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas
batendo de grau em grau — um ponto, um grão, um besouro, um anú, um urubú, um
golpe de noite... E escureceu tudo.
Nem houve a
qualquer coisa que de regra se conserva sob as pálpebras, quando uma pessoa
fecha os olhos: poento alumbramento róseo, de dia; tênue tecido alaranjado,
passando em fundo preto, de noite, à luz. Mesmo no escuro de um fogo que se
apaga, remanescem seus vestígios, uma vaga via-láctea a escorrer; mas, no meu
caso, nada havia. Era a treva, pesando e comprimindo, absoluta.161
A coisa se deu de repente e o narrador
consegue significar este momento com rara sensibilidade: a cegueira
brilhantemente simbolizada por uma pancada
preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau. No primeiro momento,
impacto inicial, apenas um ponto preto; no segundo instante, um pequeno grão preto, um pouco
maior que um ponto; no terceiro, um besouro
preto, maior que um grão; um anú preto,
maior que um besouro; um urubú; e,
por último, um golpe de noite.
O narrador
busca dar forma aos seus devaneios de intimidade sobre o sertão. "São
Marcos" é um somatório das perspectivas
que sustentam os devaneios do repouso (a anulada,
característica do discurso-reportagem; a dialética,
Como será o deus das formigas?; e a maravilhada, figuras coloridas), já em vias de ultrapassar os próprios limites e
alcançar os devaneios da vontade, devaneios
infinitos de uma riqueza infinita. Agora, prestes a penetrar no mundo
fechado, na treva absoluta, precisa
readquirir o domínio do que o envolve, para que possa sentir e reproduzir as
próprias sensações.
Era a treva,
pesando e comprimindo, absoluta. Como se eu tivesse preso no compacto de uma
montanha, ou se muralha de fuligem prolongasse o meu corpo. Pior do que uma
câmara-escura Ainda pior do que o último salão de uma gruta, com os archotes
mortos. (...) Devo ter perdido mais de um minuto, estuporado. Soergui-me.
Tonteei. Apalpei o chão. Passei os dedos pelos olhos; repuxei a pele — para
cima, para baixo, nas comissuras — e nada! Então, pensei em um eclipse
totalitário, em cataclismos, no fim do mundo.162
Neste trecho,
observa-se uma nítida mudança de discurso. Surge a descoberta de novas
possibilidades de narrativa. As figuras
coloridas da narrativa linear darão lugar aos devaneios infinitos de quem
ouve e sente ao invés de olhar. Porque, mesmo no escuro e sozinho, o narrador
continuou ouvindo "a debulha de trilos dos pássaros: o patativo, cantando
clássico na borda da mata; mais longe, as pombas cinzentas, guaiando
soluços"163.
O narrador não vê, mas sente, ouve e nomeia a cor da pomba (pomba cinzenta); as
imagens dinâmicas não reproduzem a coloração vibrante das imagens do repouso.
Se não há mais possibilidade de mostrar a beleza exterior do patativo, faz-se
necessário apreender a característica clássica
de seu canto; o canto do patativo lembra, portanto, as peças musicais da
estética clássica. Os devaneios do Artista Literário do século XX que se
encontra no escuro (no plano do vazio criador) ressaltam o poder
misterioso e contínuo dos fluidos anímicos, os quais se apoderam do Criador ao
reconhecer a Poesia (essência), que vigora no espaço da matéria amorfa, ainda
não-nomeada. É lícito, portanto, que o narrador, ao se ver sem visão, pense em
fim do mundo. Realmente, é o fim do mundo ordenado e o começo de um novo mundo,
sem fronteiras estabelecidas.
E, aqui ao
lado, um araçari, que não musica: ensaia e reensaia discursos irônicos, que vai
taquigrafando com esmero, de ponta de bico na casca da árvore, o pica-pau
chanchã. E esse eu estava adivinhando: rubro-verde, vertical, topetudo,
grimpando pelo tronco da imbaúba, escorando-se na ponta do rabo também.
Taquigrafa, sim, mas, para tempo não perder, vai comendo outrossim as
formiguinhas tarús, que saem dos entrenós da imbaúba, aturdidas pelo rataplã.164
Os adivinhos
são aqueles a que se atribuem faculdades divinatórias: o demiurgo começa a
materializar-se, começa a negar criativamente as anteriores narrativas,
afirmando a agitação íntima que de
ora em diante passará a dominá-lo.
O princípio
dialetizante, que o fez indagar como seria o deus das formigas, mostra-lhe o
caminho para o formigueiro (repouso
ativado, pensamentos que fervilham), o caminho que o levará a contradizer o
mundo das aparências, para penetrar no mundo da pura essência. Um novo mundo,
original, primitivo, singular, está em estado de formação. As discórdias
íntimas do Artista moderno (nesta
narrativa já em fase de transição para a pós-modernidade) impõem novas formas
de apreensão do narrado. O Artista está contra seus princípios de vida e exige punição para seu ato pecaminoso: ele
precisou zombar do mito, para que o mito o cegasse e, com isto, libertar-se das
ideologias instituídas.
A imaginação
aborda uma ontologia da luta em que o
ser se formula em um contra-ser,
totalizando o algoz e a vítima, um algoz que não tem tempo de saciar-se em seu
sadismo, uma vítima a quem não se deixa comprazer-se em seu masoquismo. O
repouso é negado para sempre. A própria matéria não tem direito a isso.
Afirma-se a agitação íntima. O ser que segue tais imagens conhece então um
estado dinâmico que é inseparável da embriaguez: é agitação pura. É formigueiro puro.165
A imaginação criadora
(aquela que sabe reconhecer os valores da solidão) aborda o ser em luta consigo
mesmo. A face demiúrgica do ficcionista de estórias do sertão se rebela contra
as imposições substanciais que o acrisolam em conceitos pré-estabelecidos. A ontologia da luta denuncia esta guerra
íntima, na qual o Artista Literário do século XX é algoz e vítima ao mesmo
tempo. O personagem João Mangolô foi induzido pelo próprio narrador (alter ego)
a aplicar-lhe o feitiço que o tornaria cego. O narrador planejou (linearmente)
cada detalhe da vingança do feiticeiro; apenas, não estava ainda preparado para dominar as conseqüências dramáticas da escuridão (plano da pura intuição), e
viu-se obrigado a deixar-se levar pela desorientação
discursiva, característica central dos narradores modernos (W. Benjamim).
http://teseneuzamachado.blogspot.com.br/
http://teseneuzamachado.blogspot.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário