NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
Apropriando-se
de duas faces contraditórias (a face do algoz e a face da vítima) e
colocando-as na figura do narrador, o porta-voz de valores sertanejos está em
vias de abandonar para sempre seus conceitos anteriores de narrador experiente,
preso às regras e diretrizes substanciais. Aderindo aos devaneios da ação, com
direções desejadas, mas não pré-estabelecidas, abandonará também o sossego dos
pensamentos repousantes e se envolverá com o dinamismo da criação literária. O
ser em luta consigo mesmo é o ser que alcança o plano do silêncio dinamizado.
Agora, falar do
araçari, que não musica, apenas
ensaia discursos irônicos, tornou-se uma luta
discursiva. Descrever é fácil;
criar, a partir do escuro, não é fácil. É preciso adivinhar o porvir, o rumo do futuro, já que a desorientação discursiva não conhece o
sentido linear de narrativa. Agora, o discurso poético será bem vindo, as
onomatopéias também, sem falar da inclusão de versos conhecidos e já
conceituados. Assim, as formiguinhas tarús se tornam presas fáceis do pica-pau
chanchã, graças ao rataplã barulhento
da própria ave que bica a casca da árvore.
O feitiço de Mangolô provoca a cegueira do narrador
e o leva à intuição do ato de criar.
Então, eu
compreendi que a tragédia era negócio meu particular, e que, no meio de tantos
olhos, só os meus tinham cegado; e, pois, só para mim as coisas estavam pretas.166
Eis o
privilégio do Artista Literário dinâmico: entre tantos olhos que nada vislumbram,
só os dele passarão por um processo de rara iluminação. As coisas pretas
refletirão o infinito. Os paradoxos existem, para que se possa refletir sobre
eles.
Mas, quem diz
que não seja coisa passageira, e que daqui a instante eu não irei tornar a
enxergar? Louvado seja Deus, mais a minha boa Santa Luzia, que cuida dos olhos
da gente!... "Santa Luzia passou por aqui, com seu cavalinho comendo
capim!..." Santa Luzia passou por... Não, não passa coisa nenhuma. Estou
mesmo é envolvido e acuado pela má treva, por um escurão de transmundo, e sem
atinar com o que fazer.167
A imaginação material ativa, neste segundo
segmento da narrativa, procura as experiências estéticas, os devaneios
duradouros, a força profunda dos sonhos bem sonhados. Neste novo e poderoso processo
(processo de criação), a imaginação vem em primeiro lugar, só depois a forma
literária se manifestará, material e dinâmica, revelando as profundas intuições
do Artista. Antes, a forma real da natureza aparecia em primeiro lugar,
propiciando a imaginação e transformando-a posteriormente em forma literária,
simplesmente material, não-ativa.
Este novo
processo criativo não se peja em apropriar-se de expressões já conceituadas, de
versos já conhecidos, de onomatopéias, porque todas estes dados paraliterários
fazem parte do imaginário coletivo, e se a imaginação provinda do plano
mágico-substancial vem em primeiro lugar, é natural que todas as contribuições
sejam válidas no contexto da narração. Portanto, Santa Luzia não passou coisa nenhuma, e o Artista Literário, em
estado de repouso ativado, desmitificou o Mágico.
Mas, calma...
calma... Um minuto só, por esforço. Esperar um pouco, sem nervoso, que para
tudo há solução. E, com duas engatinhadas, busco maneira de encostar-me à
árvore: cobrir bem a retaguarda, primeira coisa a organizar.168
É preciso calma
para pelo menos tentar reorganizar o caos
que se instalou no contexto narrativo. Mas, o segredo da autêntica criação é
exatamente o caos narrativo, que impõe reflexões. O caos dos pensamentos em
ebulição impõe a reordenação sim, mas uma nova reordenação, diferente da
ordenação do cotidiano.
Tiro o relógio.
Só o tique-taque, claro. Experimento um cigarro — não presta, não tem gosto,
porque não posso ver a fumaça. Espera, há alguma coisa... Passos? Não. Vozes?
Nem. Alguma coisa é; sinto. Mas, longe, longe... O coração está-me batendo
forte. Chamado de ameaça, vaga na forma, mas séria: perigo premente. Capto-o.
Sinto-o direto, pessoal. Vem do mato? Vem do sul. Todo o sul é o perigo.
Abraço-me com a suinã. O coração ribomba. Quero correr.
Não adianta.
Longe, no sul. Que será? "Quem será?"... É meu amigo, o poeta. Os
bambús. Os reis, os velhos reis assírio-caldaicos, belos barbaças como reis de
baralho, que gostavam de vazar os olhos de milhares de vencidos cativos? São
meros mansos fantasmas, agora; são meus. Mas, então, qual será a realidade,
perigosa, no sul? Não, não é perigosa. É amiga. Outro chamado. Uma ordem.
Enérgica e aliada, profunda, aconselhando resistência:
— Güenta o relance, Izé!169
As imagens
literárias, agora, saem do mistério
da matéria. O Artista abandona temporariamente (observar que, nesta narrativa,
ele ainda não assume a total desorientação
verbal tão nítida em Grande Sertão:
Veredas e nas narrativas seguintes, apesar do aparente fio narrativo que as
estruturam) a descrição de belezas já instituídas e passa a agir ativamente sobre a matéria; ele está no
momento sob o encantamento da própria energia, e esta não se preocupa com o
linear.
No início da
narrativa, ele estava propenso a descrever a beleza exterior das formas da
floresta e o encantamento exterior das superstições; agora, graças à cegueira e
àquela sub-estória intuída, a estória do bambuzal e do poeta desconhecido,
Foi quase logo
que eu cheguei ao Calango-Frito, foi logo que eu me cheguei aos bambús. Os
grandes colmos jaldes, envernizados, lisíssimos, pediam autógrafo; e alguém já
gravara, a canivete ou ponta de faca, letras enormes, enchendo um entrenó:
"Teus olho
tão singular
Dessas
trancinhas tão preta
Qero morer eim
teus braço
Ai fermosa
Marieta".
E eu, que vinha
vivendo o visto mas vivando estrelas, e tinha um lápis na algibeira, escrevi
também, logo abaixo:
Sargon
Assarhaddon
Assurbanipal
Teglattphalasar,
Salmanassar
Nabonid,
Nabopalassar, Nabucodonosor
Belsazar
Sanekherib
E era para mim
um poema esse rol de reis leoninos, agora despojados da vontade sanhuda e só
representados na poesia. Não pelos cilindros de ouro e pedras, posto sobre as
reais comas eriçadas, nem pelas alargadas barbas, entremeadas de fios de ouro.
Só, só por causa dos nomes.170
o novo ficcionista se propõe a
mostrar seus próprios esforços para detectar as belezas escondidas na plenitude
da forma.
Submetido aos
acontecimentos insólitos, ele indaga o que está por vir, já que perdeu,
momentaneamente, o controle do narrado. Os sentidos aguçados o alertam quanto
ao Desconhecido. O Sul, aqui,
representa o mundo da intuição, espaço de criação, da mesma forma que o Norte, em A
hora e vez de Augusto Matraga. Os reis assírio-caldaicos,
historicamente ferozes, não passam de reis de baralho, porque agora estão
submetidos ao poder da criação literária. Enfim, a realidade da criação não é
perigosa, pois, após o medo inicial de seu narrador, vem-lhe a certeza de que é
ele, o Artista, o senhor de tal mundo; os reis assírio-caldaicos são
propriedade dele.
A ordem,
enérgica e aliada, profunda, aconselhando resistência: ‘— Güenta o relance,
Izé!’, sai do infinito de sua própria vontade de criação: ‘— Güenta o relance, João Guimarães Rosa’.
Na ontologia de luta, em que o experiente narrador do sertão põe-se em
guarda contra o narrador moderno, a vitória será incontestavelmente do Artista
do século XX e seu narrador. Não há como fugir de sua própria realidade
estético-histórica.
'Güenta o
relance, Izé!
Respiro.
Dilato-me. E grito:
— E agüento
mesmo!...
Eco não houve,
porque a minha clareira tem boa acústica. Mas o tom combativo da minha voz
derramou em mim nova coragem. E, imediatamente, abri a tomar ar fundo, movendo
as costelas todas, sem pedir licença a ninguém. Vamos ver!171
O narrador
abriu a tomar ar fundo, porque não é
possível, ficcionalmente e poeticamente, permanecer para sempre ligado à
matéria terra, tão estável. Para que haja uma literatura deformante e criadora
(atenção: a palavra deformante, aqui,
não poderá ser vista como expressão pejorativa) ligada ao elemento terra (a
terra real do sertão), o Artista, para escrever, necessitará ter visto muito, precisará somar
imaginação, fragmentos do real, lembranças e sentimentos. O bem ver é diferente do bem sonhar. O bem ver foi o objetivo central da estética realista; o bem sonhar é fenômeno da estética
modernista e exige trabalho criativo, busca penetrar na essência do elemento.
Mesmo assim, o Artista moderno poderá
ultrapassar a crosta da terra e penetrá-la criativamente, mas não ficará
restrito a este ato criativo eternamente, pois o Ar é o elemento que o seduz, é
o elemento da linguagem da criação. Assim, nesta narrativa, o ficcionista do
século XX busca a profundidade do ar, a profundidade das palavras aladas.
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