domingo, 1 de março de 2015

Rui Barbosa - ORAÇÃO AOS MOÇOS


ORAÇÃO AOS MOÇOS

Rui Barbosa




Senhores:

Não quis Deus que os meus cinqüenta anos de consagração ao direito viessem receber no templo do seu ensino em São Paulo o selo de uma grande bênção, associando-se hoje com a vossa admissão ao nosso sacerdócio, na solenidade imponente dos votos em que o ides esposar.
Em verdade vos digo, jovens amigos meus, que o coincidir desta existência declinante com essas carreiras nascentes agora, o seu coincidir num ponto de interseção tão magnificamente celebrado, era mais do que eu merecia; e, negando-me a divina bondade um momento de tamanha ventura, não me negou senão o a que eu não devia ter tido a inconsciência de aspirar.
Mas, recusando-me o privilégio de um dia tão grande, ainda me consentiu o encanto de vos falar, de conversar convosco, presente entre vós em espírito; o que é, também, estar presente em verdade.
Assim que não me ides ouvir de longe, como a quem se sente arredado por centenas de quilômetros, mas ao pé, de em meio a vós, como a quem está debaixo do mesmo teto, e à beira do mesmo lar, em colóquio de irmãos, ou junto dos mesmos altares, sob os mesmos campanários, elevando ao Criador as mesmas orações, e professando o mesmo credo.
Direis que isto de me achar assistindo, assim, entre os de quem me vejo separado por distância tão vasta, seria dar-se, ou supor que se está dando, no meio de nós, um verdadeiro milagre?
Será. Milagre do maior dos taumaturgos. Milagre de quem respira entre milagres. Milagre de um santo, que cada qual tem no sacrário do seu peito. Milagre do coração, que os sabe chover sobre a criatura humana, como o firmamento chove nos campos mais áridos e tristes a orvalhada das noites, que se esvai, com os sonhos de antemanhã, ao cair das primeiras frechas de oiro do disco solar.
Embora o realismo dos adágios teime no contrário, tolerem-me o arrojo de afrontar uma vez a sabedoria dos provérbios. Eu me abalanço a lhes dizer e redizer de não. Não é certo, como corre mundo, ou, pelo menos, muitas e muitíssimas vezes, não é verdade, como se espalha fama, que "longe da vista, longe do coração".
O gênio dos anexins, aí, vai longe de andar certo. Esse prolóquio tem mais malícia que ciência, mais epigrama que justiça, mais engenho que filosofia. Vezes sem conto, quando se está mais fora da vista dos olhos, então (e por isso mesmo) é que mais à vista do coração estamos; não só bem à. sua vista, senão bem dentro nele.
Não, filhos meus (deixai-me experimentar, uma vez que seja, convosco, este suavíssimo nome); não: o coração não é tão frívolo, tão exterior, tão carnal, quanto se cuida. Há, nele, mais que um assombro fisiológico: um prodígio moral. E o órgão da fé, o órgão da esperança, o órgão do ideal. Vê, por isso, com os olhos d'alma, o que não vêem os do corpo. Vê ao longe, vê em ausência, vê no invisível, e até no infinito vê. Onde pára o cérebro de ver, outorgou-lhe o Senhor que ainda veja; e não se sabe até onde. Até onde chegam as vibrações do sentimento, até onde se perdem os surtos da poesia, até onde se somem os vôos da crença: até Deus mesmo, inviso como os panoramas íntimos do coração, mas presente ao céu e à terra, a todos nós presentes, enquanto nos palpite, incorrupto, no seio, o músculo da vida e da nobreza e da bondade humana.
Quando ele já não estende o raio visual pelo horizonte do invisível, quando sua visão tem por limite a do nervo ótico, é que o coração, já esclerótico, ou degenerescente, e saturado nos resíduos de uma vida gasta no mal, apenas oscila mecanicamente no interior do arcaboiço, como pêndula de relógio abandonado, que agita, com as derradeiras pancadas, os vermes e a poeira da caixa. Dêle se retirou a centelha divina. Até ontem lhe banhava ela de luz todo esse espaço, que nos distancia do incomensurável desconhecido, e lançava entre este e nós uma ponte de astros. Agora, apagados esses luzeiros, que o inundavam de radiosa claridade, lá se foram, com o extinto cintilar das estrelas, as entreabertas do dia eterno, deixando-nos, tão-somente, entre o longínquo mistério daquele termo e o aniquilamento da nossa miséria desamparada, as trevas de outro éter, como esse que se diz encher de escuridão o vago mistério do espaço.
Entre vós, porém, moços, que me estais escutando, ainda brilha em toda a sua rutilância o clarão da lâmpada sagrada, ainda arde em toda a sua energia o centro de calor, a que se aquece a essência d'alma. Vosso coração, pois, ainda estará incontaminado; e Deus assim o preserve.
Metei a mão no seio, e aí o sentireis com a sua segunda vista. Desta, sobretudo, é que ele nutre sua vida agitada e criadora. Pois não sabemos que, com os antepassados, vive ele da memória, do luto e da saudade? E tudo é viver no pretérito. Não sentimos como, com os nossos conviventes, se alimenta ele na comunhão dos sentimentos e índoles, das idéias e aspirações? E tudo é viver num mundo, em que estamos sempre fora deste, pelo amor, pela abnegação, pelo sacrifício, pela caridade. Não nos será claro que, com os nossos descendentes e sobreviventes, com os nossos sucessores e pósteros, vive ele de fé, esperança e sonho? Ora, tudo é viver, previvendo, é existir, preexistindo, é ver, prevendo. E, assim, está o coração, cada ano, cada dia, cada hora, sempre alimentado em contemplar o que não vê, por ter em dote dos céus a preexcelência de ver, ouvir e palpar o que os olhos não divisam, os ouvidos não escutam, e o tato não sente.
Para o coração, pois, não há passado, nem futuro, nem ausência. Ausência, pretérito e porvir, tudo lhe é atualidade, tudo presença. Mas presença animada e vivente, palpitante e criadora, neste regaço interior, onde os mortos renascem, prenascem os vindoiros, e os distanciados se ajuntam, ao influxo de um talismã, pelo qual, nesse mágico microcosmo de maravilhas, encerrado na breve arca de um peito humano, cabe, em evocações de cada instante, a humanidade toda e a mesma eternidade.
A maior de quantas distâncias logre a imaginação conceber, é a da morte; e nem esta separa entre si os que a terrível apartadora de homens arrebatou aos braços uns dos outros. Quantas vezes não entrevemos, nesse fundo obscuro e remotíssimo, uma imagem cara? quantas vezes não a vemos assomar nos longes da saudade, sorridente, ou melancólica, alvoroçada, ou inquieta, severa, ou carinhosa,. trazendo-nos o bálsamo, ou o conselho, a promessa, ou o desengano, a recompensa, ou o castigo, o aviso da fatalidade, ou os presságios de bom agoiro? Quantas nos não vem conversar, afável e tranqüila, ou pressurosa e sobressaltada, com o afago nas mãos, a doçura na boca, a meiguice no semblante, o pensamento na fonte, límpida, ou carregada, e lhe saímos do contato, ora seguros e robustecidos, ora transidos de cuidado e pesadume, ora cheios de novas inspirações, e cismando, para a vida, novos rumos? Quantas outras, não somos nós os que vamos chamar esses leais companheiros de além-mundo, e com eles renovar a prática interrompida, ou instar com eles por um alvitre, em vão buscado, urna palavra, um movimento do rosto, um gesto, urna réstia de luz, um traço do que por lá se sabe, e aqui se ignora?
Se não há, pois, abismo entre duas épocas, nem mesmo a voragem final desta à outra vida, que não transponha a mútua atração de duas almas, não pode haver, na mesquinha superfície do globo terrestre, espaços, que não vença, com os instantâneos de presteza das vibrações luminosas, esse fluido incomparável, por onde se realiza, na esfera das comunicações morais, a maravilha da fotografia à distância no mundo positivo da indústria moderna.
Tampouco medeia do Rio a São Paulo! Por que não conseguiremos enxergar de um a outro cabo, em linha tão curta? Tentemos. Vejamos. Estendamos as mãos, entre os dois pontos que a limitam. Deste àquele já se estabeleceu a corrente. Rápida, como o pensamento, corre a emanação magnética desta extremidade à oposta. Já num aperto se confundiram as mãos, que se procuravam. Já, num amplexo de todos, nos abraçamos uns aos outros. Em São Paulo estamos. Conversemos, amigos, de presença a presença.
Entrelaçando a colação do vosso grau com a comemoração jubilar da minha, e dando-me a honra de vos ser eu paraninfo, urdis, desta maneira, no ingresso à carreira que adotastes, um como vínculo sagrado entre a vossa existência intelectual, que se enceta, e a do vosso padrinho em letras, que se acerca do seu termo. Do ocaso de uma surde o arrebol da outra.
Mercê, porém, de circunstâncias inopinadas, com o encerro do meu meio século de trabalho na jurisprudência se ajusta o remate dos meus cinqüenta anos de serviços à nação. Já o jurista começava a olhar com os primeiros toques de saudade para o instrumento, que, há dez lustros, lhe vibra entre os dedos, lidando pelo direito, quando a consciência lhe mandou que despisse as modestas armas da sua luta, provadamente inútil, pela grandeza da pátria e suas liberdades, no parlamento.
Essa remoção da metade total de um século de vida laboriosa para o desentulho do tempo não podia consumar sem abalo sensível numa existência repentinamente decepada. Mas a comoção foi salutar; porque o espírito encontrou logo seu equilíbrio na convicção de que, afinal, me chegava eu a conhecer a mim mesmo, reconhecendo a escassez de minhas reservas de energia, para acomodar o ambiente da época às minhas idéias de reconciliação da política nacional com o regimen republicano.
Era presunção, era temeridade, era inconsciência insistir na insana pretensão da minha fraqueza. Só um predestinado poderia arrostar empresa tamanha. Desde 1892 me empenhava eu em lutar com esses mares e ventos. Não os venci. Venceram-me eles a mim. Era natural. Deus nos dá sempre mais do que merecemos. Já me não era pouco a graça (pela qual erguia as mãos ao céu) de abrir os olhos à realidade evidente da minha impotência, e poder recolher as velas, navegante desenganado, antes que o naufrágio me arrancasse das mãos a bandeira sagrada.
Tenho o consolo de haver dado a meu país tudo o que me estava ao alcance: a desambição, a pureza, a sinceridade, os excessos de atividade incansável, com que, desde os bancos acadêmicos, o servi, e o tenho servido até hoje.
Por isso me sal da longa odisséia sem créditos de Ulisses. Mas, se o não soube imitar nas artes medrançosas de político fértil em meios e manhas, em compensação tudo envidei por inculcar ao povo os costumes da liberdade e à república as leis do bom governo, que prosperam os Estados, moralizam as sociedades, e honram as nações.
Preguei, demonstrei, honrei a verdade eleitoral, a verdade constitucional, a verdade republicana. Pobres clientes estas, entre nós, sem armas, nem oiro, nem consideração, mal achavam, em uma nacionalidade esmorecida e indiferente, nos títulos rotos do seu direito, com que habilitar o mísero advogado a sustentar-lhes com alma, com dignidade, com sobrançaria, as desprezadas reivindicações. As três verdades não podiam alcançar melhor sentença no tribunal da corrupção política do que o Deus vivo no de Pilatos.
Quem por uma causa destas combateu, abraçado com ela, em vinte e dito anos da sua Via Dolorosa, não se pode ter habituado a maldizer, senão a perdoar, nem a descrer, senão a esperar. Descrer da cegueira humana, sim; mas da Providência, fatal nas suas soluções, bem que (ao parecer) tarda nos seus passos, isso nunca.
Assim que a bênção do paraninfo não traz fel. Não lhe encontrareis no fundo nem rancor, nem azedume, nem despeito. Os maus só lhe inspiram tristeza e piedade. Só o mal é o que o inflama em ódio. Porque o ódio ao mal é amor do bem, e a ira contra o mal, entusiasmo divino. Vede Jesus despejando os vendilhões do tempo, ou Jesus provando a esponja amarga no Gólgota. Não são o mesmo Cristo, esse ensangüentado Jesus do Calvário e aqueloutro, o Jesus iroso, o Jesus armado, o Jesus do látego inexorável? Não serão um só Jesus, o que morre pelos bons, e o que açoita os maus?
O padre Manuel Bernardes pregava, numa das suas Silvas:
"Bem pode haver ira, sem haver pecado:
Irascimini, et nolite peccare. E às vezes poderá haver pecado, se não houver ira: porquanto a paciência, e silêncio, fomenta a negligência dos maus, e tenta a perseverança dos bons. Qui cum causa non irascitur, peccat (diz um padre) patientia enim irrationabilis vitia seminat, negligentiam nutrit, et non solum malos, sed etiam bonos invitat ad malum. Nem o irar-se nestes termos é contra a mansidão: porque esta virtude compreende dous atos: um é reprimir a ira, quando é desordenada: outro excitá-la, quando convém. A ira se compara ao cão, que ao ladrão ladra, ao senhor festeja, ao hóspede nem festeja, nem ladra: e sempre faz o seu ofício. E assim quem se agasta nas ocasiões, e contra as pessoas, que convém agastar-se, bem pode, com tudo isso, ser verdadeiramente manso. Qui igitur (disse o Filósofo) ad quae oportet, et quibus oportet, irascitur, laudatur, esse que is mansuetus potest".
Nem toda ira, pois, é maldade; porque a ira, se, as mais das vezes, rebenta agressiva e daninha, muitas outras, oportuna e necessária, constitui o específico da cura. Ora deriva da tentação infernal, ora de inspiração religiosa. Comumente se acende em sentimentos desumanos e paixões cruéis; mas não raro flameja do amor santo e da verdadeira caridade. Quando um braveja contra o bem, que não entende, ou que o contraria, é ódio iroso, ou ira odienta. Quando verbera o escândalo, a brutalidade, ou o orgulho, não é agrestia rude, mas exaltação virtuosa; não é soberba, que explode, mas indignação que ilumina; não é raiva desaçaimada, mas correção fraterna. Então, não somente não peca o que se irar, mas pecará, não se irando. Cólera será; mas cólera da mansuetude, cólera da justiça, cólera que reflete a de Deus, face também celeste do amor, da misericórdia e da santidade.

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