No verão
Rogel Samuel
No meio da noite,
acordo. Sufocante calor. O suor escorre. Como se estivesse febril. Tomo
uma ducha. Três horas, madrugada. No silêncio, meu banho na noite abre
um túnel. Dormi cedo. Vim da Cinelândia, onde jantei. No restaurante,
dois velhos bêbados. Cantavam árias. Cheguei em casa. Vi "O clone".
Minha amiga L. ironiza, porque vejo "O clone". Gosto. Ela é intelectual.
Por princípio, intelectual não vê novela de TV. Intelectual tem
princípios. Gosto de "O clone", aquelas paisagens, personagens, dignos
de Jorge Amado. As classes sociais, representadas. Menos favela. Os
velhos bêbados silenciam, pesados de cerveja. Aparece um vendedor de
meia idade. Vende caleidoscópios. Um dos velhos compra. Agora, os velhos
se divertem, metem um olho no tubo. Goles de cerveja alternam com
olhadelas. Atacam de Carlos Gomes: "Quando nascesti tu". Noto que são
músicos. Aposentados. Gritam. O dono do restaurante sai da cozinha,
furioso por cima dos óculos, mas volta. Minha amiga L. tem Ruy Barbosa
na família. Mas não diz pra ninguém. Se envergonha. "Um reacionário",
diz ela. Ela se ri, quando digo que gosto de ler Ruy Barbosa. Com "y".
Ela, intelectual de esquerda, tradutora. Gosto de estar com ela, na mesa
de bar. Conversamos. Certa vez, no Lamas, fomos até 3 horas da
madrugada. Naquela noite chegou o amigo CL, que mora em São João del
Rey. Especializado em Graciliano. Os velhos têm repertório. "Senza
tetto, senza cuna", d' "O guarani". Outros velhos chegam para a mesa de
velhos. Reunião. Juntam-se mesas. Mais cinco velhos. Um, de bengala.
Sentam-se, mas logo se espantam com os colegas bêbados. Nenhum se senta
perto dos ébrios. Um deles, crítico, severo, faz careta desabonadora,
balanços de cabeça. Olha para os lados. Me vê. Percebe que os observo.
Rápido, recolho o olhar, surpreendido e indiscreto. Os chegados não
bebem, menos um, que pede uma cerveja, enche o copo e finge. A cerveja é
esquecida no copo. Decorativa. Todos próximos dos oitenta anos. O de
bengala se instala com um sorriso de pedra, esfíngico, fixo. O outro,
moralista, critica com levantares de sobrancelhas. Penso que está para
retirar-se, envergonhado, pois os bêbados cantam alto, chamam atenção
mesmo dos que passam na rua Álvaro Alvin. Aparece outro vendedor. Este
vende óculos. É um oriental afeminado. Um dos cantores bêbados,
eufórico, experimenta os óculos escuros. Levanta-se, gesticula, no
"sento una forza indomita", de Il Guarany. Para horror de todos, convida
o vendedor afeminado para a mesa. Ele se senta, feliz. Como ninguém
estava perto dele, havia a cadeira vazia. O vendedor afeminado bebe do
copo do anfitrião. O outro velho bêbado dorme, queixo caído, boca
aberta. "Mia piccirella", entoa a pleno pulmões, o tenor. Mas estou de
saída.
2 comentários:
Rogel!
Você escreve bem demais. Fiquei passeando com a mente pelo centro do Rio que ADORO, depois, fui ao Lamas, e tudo descrito flui direto como uma estória em quadrinhos. Soube agora que a Pizzaria Guanabara, no Leblon, está lutando com as chamas de um incêndio desde a madrugada.
Uma cena que Vinícius faria uma música.
Beijos
Mirze
obrigado, não vi o incendio...
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