NEUZA
MACHADO - DO
PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL
Graças à
ficção, o Artista visita os recantos
do sertão, revê aspectos que
normalmente são olhados com pouca atenção, reflete
sobre o bem e o mal, acompanha o
personagem em seu retorno ao arraial do Murici, como se estivesse seguindo
"a Fada das Migalhas em sua carruagem grande como uma ervilha, com todas
as cerimônias dos velhos tempos"196, revelando um universo de intimidade bem
protegida.
Se consentimos
dar uma realidade primária à imagem, se não limitamos as imagens a simples
expressões, sentimos subitamente que o interior (...) possui o valor de uma
felicidade primitiva. Viveríamos felizes se reencontrássemos aí os sonhos
primitivos da felicidade, da intimidade bem protegida. Decerto, a felicidade é
expansiva, tem necessidade de expansão. Mas também tem necessidade de
concentração, de intimidade. Assim, quando a perdemos, quando a vida
proporcionou "maus sonhos", sentimos saudade da intimidade da
felicidade perdida. Os primeiros devaneios ligados à imagem íntima do objeto
são devaneios de felicidade. Toda a intimidade objetiva seguida em um devaneio
natural é um germe de felicidade.197
Para o homem
que venceu os obstáculos de origem, submetido às imposições da vida moderna, as
recordações do sertão da infância são devaneios de felicidade. Por isto, como
assinalo no capítulo "Sertão:
cenário da verdadeira representação do Artista", o narrador (alter ego do Artista) mostra apenas um determinado sertão, definindo
poeticamente a situação desse espaço. Em seus devaneios felizes não há lugar
para discutir a decadência do sertão geográfico, subserviente às imperfeições
do mundo moderno; quando muito, essas imperfeições são detectadas por um leitor-crítico, quase que intuitivamente, graças
às pequenas referências sócio-ideológicas, difíceis de serem eliminadas
totalmente do texto.
As lembranças
íntimas do passado sertanejo possuem o valor de uma felicidade primitiva e
perdida, simbolizam o retorno ao berço, aos primeiros passos protegidos em direção
ao futuro.
Aumentadas no
sonho da infância, vejo de muito perto as migalhas secas de pão e a poeira
entre as fibras de madeira dura ao sol.198
Aumentado pelas
recordações da infância, o sertão
real vai se transformar aos poucos em sertão
roseano, pelo prisma da perspectiva dialética do Criador. Graças a esta
questionadora lente de aumento, o minúsculo se dilatará, modificando o sentido
da narrativa. O personagem Nhô Augusto, nas páginas finais, retornando ao
arraial do Murici, "achava muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito,
como são todas as coisas nos caminhos do sertão"199. Guiado pelo narrador,
totalmente submetido aos devaneios de felicidade do Artista, pára, a cada
passo, para espiar/revelar cada
milímetro de intimidade da caminhada.
Parou, para
espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar um ananás
selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para tirar mel da caixa
comprida da abelha borá; para rezar perto de um pau-d'arco florido e de um
solene pau-d'óleo, que ambos conservavam muito de-fresco, os sinais da mão de
Deus. E, uma vez, teve de se escapar, depressa, para a meia-encosta, e ficou a
contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel de uma
boiada de duas mil cabeças, que rolava para o Itacambira, com a vaqueirama
encourada — piquete de cinco na testa, em cada talão sete ou oito, e, atrás,
todo um esquadrão de ulanos morenos, cantando cantigas do alto sertão.
E também fez,
um dia, o jerico avançar atrás de um urubu reumático, que claudicava estrada a
fora, um pedaço, antes de querer voar. E bebia, aparada nas mãos, a água das
frias cascatas véus-de-noivas dos morros, que caem com tom de abundância e
abandono. Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as pinturas do poente,
com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo
alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo. E viu voar, do
mulungu, vermelho, um tié-piranga, ainda mais vermelho — e o tié-piranga pousou
num ramo do barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu que o barbatimão todo
se alegrava, porque tinha agora um ramo que era de mulungu.
Viajou nas
paragens dos mangabeiros, que lhe davam dormida nas malocas, de tecto e paredes
de palmas de buriti. Retornou à beira do rio, onde os barranqueiros lhe davam
comida, de pirão com pimenta e peixe. Depois, seguiu.200
Sonhando
intimamente o sertão da infância e revelando substancialmente suas imagens, sem
abandonar as imagens poéticas, o Artista passa a aliar as duas forças
imaginantes (formal e material) de que dispõe. Nas fases seguintes, deixou que
as duas forças atuassem conjuntamente, mas houve um aprimoramento realçando a
imaginação material associada à imaginação criadora, valorizando mais os
aspectos íntimos do sertão, ligados a uma atividade material infinita; uma
imaginação saída dos devaneios infinitos, possuindo uma riqueza inesgotável,
muito próxima do autêntico lirismo.
Os contos de Sagarana (anteriores)
simbolizaram o momento dos sonhos móveis e metamorfoseantes, mas ainda assim
observa-se neles o já referido princípio de densidade assinalado por Bachelard.
Basta apreciar, por este aspecto, a narrativa "São Marcos",
apresentando já tal característica, mas ainda ressaltando as "exuberâncias
da beleza formal"201.
Valorizando posteriormente
a intimidade do sertão de origem, dando forma literária aos devaneios
infinitos, o Artista realça o seu poder de transformar uma realidade
historicamente deteriorada, sofrendo os abalos de uma mal-formação social numa
nova realidade, nascida da redescoberta
de uma intimidade vivenciada no passado, possuidora do poder misterioso e
contínuo dos sonhos bem sonhados. Essa intimidade foi resgatada do
infinitamente pequeno da realidade sertaneja. Ele revolveu a terra, posteriormente escavou a crosta, procurando a verdadeira raiz dessa realidade, e
conseguiu suplantar a matéria sem forma e sem vida das marcas exteriores que
pouco revelam.
Realçando o
infinitamente pequeno (o interior do sertão), sustentado pela tenacidade da
imaginação material, provou que este interior foi conquistado no infinito de sua própria profundeza de
indivíduo pensante, alcançando a seguir o infinito dos tempos.
II.10.3 Mudanças
no discurso narrativo
Ah! meu próprio
passado basta para me atrapalhar. Não preciso do passado dos outros. Mas
preciso das imagens dos outros para recolorir as minhas. Preciso das fantasias
dos outros para me lembrar que, eu também, fui um sonhador de vela".202
O Artista, em
sua primeira fase de transição criadora (A hora
e vez de Augusto Matraga),
busca na matéria terrestre e no fogo as imagens que formarão o seu particular
universo ficcional. Distanciando-se aos poucos da imaginação reprodutora de bem ver, procura sonhar novas imagens sob o domínio das lembranças da infância.
No início, o
real se faz presente com a reprodução do aspecto exterior do chefe político encarnado na figura do
personagem Nhô Augusto, senhor das propriedades denominadas Pindaíbas e
Saco-de-Embira. A vontade de poder203 do
Artista examina primeiro os signos da majestade: o majestoso e dominador
personagem submetendo o povo do arraial do Murici às suas próprias leis e
desmandos.
Nesse início
(as primeiras linhas da narrativa), realça a figura de Nhô Augusto, filho do
Coronel Afonsão, e, apresenta o major Consilva, inimigo político da família
Esteves, destacando, com esta atitude, a aparência dos chefes dos diversos núcleos comunitários (capitães, majores e
coronéis, de acordo com o poder de compra dos titulados), mostrando-se
temporariamente seduzido pelas lembranças do passado, reportando-se ao centro
do núcleo social sertanejo, amarrando-se
à memória ao invés de se utilizar das recordações.
Esgotando-se a vontade de poder, duas vezes explorada
(poder e carisma), nada mais lhe resta senão adotar a vontade de trabalho204,
abandonado o plano das aparências e assumindo a criação do personagem, agora,
totalmente reelaborado pela imaginação criadora. O personagem, depois de sua
fase carismática, adquire um aspecto universal, revigorado pelo poder da
Criação Literária.
O personagem
que abandona os pretos no sertão do norte de Minas, procurando retornar ao
arraial do Murici, não é o mesmo do início. A imaginação criadora
transformou-o, recriou-o a partir das imagens materiais que o sustentaram até
ali.
Para a
imaginação dinâmica há, com toda a evidência, além da coisa, a supercoisa, no mesmo estilo em que o ego
é dominado por um superego. Esse pedaço de madeira que deixa minha mão
indiferente não passa de uma coisa, está mesmo perto de não ser senão o
conceito de uma coisa. Mas se minha faca se diverte em entalhá-la, essa mesma
madeira é imediatamente mais do que ela mesma, é uma supercoisa, assume nela
todas as forças da provocação do mundo resistente, recebe naturalmente todas as
metáforas da agressão.205
Na verdade, a
começar por Nhô Augusto, todos os personagens roseanos se transformam. Até
então, o Artista esquadrinhara a
substância sertaneja, sob as diretrizes da imaginação formal aliada à
imaginação material, sensível às formas e às cores, e só depois da reelaboração
do personagem procurou atingir o fundo de sua matéria ficcional. A imaginação
formal e a imaginação material, detectadas nas narrativas de Sagarana, abriram as portas
secretas que ultrapassam a substância, permitindo a criação de um outro tipo de
realidade, administrada unicamente pelo imaginário, energeticamente ligada ao
plano das possibilidades existenciais da imaginação dinâmica.
O Artista
renovou a narrativa e renovou-se. O sertão da infância transforma-se no sertão
roseano, manipulado pela força criadora das metáforas bem elaboradas. A realidade sertaneja ficou para trás, nas
narrativas que antecedem A hora
e vez de Augusto Matraga. Agora o sertão se
universaliza, e mesmo assim não será demais admirar as narrativas anteriores,
repletas de um poder encantatório, próprio da imaginação formal, já que são o
ponto inicial para a imaginação dinâmica das fases posteriores.